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O Supremo Tribunal Federal durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.

A influência comunitarista

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14/07/2009 às 00:00
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3 – Considerações finais

Desta feita, vislumbra-se a atuação do STF no campo político durante os trabalhos da ANC, ao defender seu papel como ator "jurídico", utilizando uma retórica de autonomia absoluta, de neutralidade e de universalidade.

A análise da luta que se desenvolveu entre os diversos atores envolvidos no processo constituinte descortinou uma contradição: apesar de se atribuir um caráter comunitarista a Constituição de 1988, no tocante ao controle de constitucionalidade e ao Supremo, o processo de lutas entre os atores não torna perceptível a preocupação com a "ideologia comunitarista", nem mesmo como instrumento de legitimação de seus interesses. A adesão ao discurso comunitarista se dá apenas quando e na medida em que não coloca em risco os interesses dos atores. Um exemplo é a proposta apresentada pela OAB.

Assim, a legitimidade não foi obtida nem por adesão ao "ideal comunitarista", nem por adesão aos interesses dominantes. Ela é fruto da lógica interna autônoma do campo jurídico: a preocupação é com o poder simbólico dentro do próprio campo e não na relação com os demais. Esta lógica proporciona um novo sentido à análise do texto constitucional, e permite uma justificativa para a ausência de ruptura com o modelo anterior que não se restringe aos "interesses dominantes", mas à dinâmica do campo jurídico.

A título de balanço final, podemos apontar os seguintes atores e seus respectivos posicionamentos e interesses, destacando que a designação "comunitarista", ou "liberal", se restringe aos debates quanto ao desenho institucional do Supremo:

- os constituintes "comunitaristas" defendem a criação do Tribunal Constitucional e, consequentemente, uma abordagem de caráter mais "político" ao exercício das funções jurisdicionais, espelhando-se em modelos europeus e no discurso dos constitucionalistas comunitaristas com vistas a se apresentar perante a sociedade como "progressistas";

- os constituintes "liberais" são contra a ruptura com a tradição, defendendo a manutenção da ordem e dos interesses de atores jurídicos, como o Conselho Federal da OAB, a AMB e o próprio Supremo;

- os constitucionalistas "comunitaristas" defendem a criação do Tribunal Constitucional e a "comunidade de intérpretes", com vistas a equiparar o texto constitucional brasileiro a tendências internacionais, e, portanto, demarcar uma nova abordagem constitucional por ocasião da retomada democrática;

- os atores jurídicos "liberais" defendem a manutenção do Supremo conforme o modelo da Constituição anterior, pois representam a tradição conservadora avessa a rupturas e buscam a função jurídica do Supremo, sem nenhum tipo de intervenção de caráter "político";

- os atores jurídicos "institucionalizados": a OAB defende a criação do Tribunal Constitucional com composição incluindo representantes da classe; e a AMB é a favor da manutenção do Supremo, mas incluindo-se na sua composição uma reserva a magistrados de carreira. Estes atores deixam claros seus interesses "particularizados".

Podemos concluir que os constituintes "liberais" e os atores jurídicos "liberais" foram vitoriosos no tocante à manutenção do Supremo Tribunal Federal e a não criação do Tribunal Constitucional. Entretanto, os constituintes "comunitaristas" e os constitucionalistas "comunitaristas" conseguiram uma vitória significativa ao incorporar a ideia da comunidade de intérpretes e a própria função "precípua de guarda da Constituição" para o Supremo, com a criação do Superior Tribunal de Justiça. Esta vitória é reconhecida como a "marca comunitarista" por Cittadino (2000) e como "ideologia da intelligentsia jurídica" por Luseni Aquino (2002).

Os "derrotados" durante o processo constituinte foram os atores jurídicos institucionalizados, a OAB e a AMB, mas a primeira o foi parcialmente, pois foi considerada parte legítima para propor a ADIn. Ademais, conforme buscaremos apontar no próximo capítulo, a OAB será "privilegiada" na interpretação concedida ao artigo das partes legítimas a propor a ADIn pela jurisprudência do Supremo.

Entretanto, para a nossa análise o importante não é a "marca comunitarista" ou a "ideologia da intelligentsia jurídica". Para os fins da presente análise, os diferentes atores envolvidos no processo constituinte se apropriaram do discurso quando lhes era oportuno, naquilo que permitia a manutenção de seus interesses "particularizados" dentro do próprio campo jurídico, e os constituintes representaram estes interesses da mesma forma.

A nosso ver, o discurso comunitarista possui, de certa forma, um caráter ideológico e simbólico, mas é preciso ir além desta abordagem. O discurso comunitarista escamoteia a dinâmica de luta interna no campo jurídico na medida em que é apontado como uma conquista da sociedade, uma abordagem mais cidadã do texto constitucional. Quando as pesquisas utilizam a judicialização da política, e apontam o aumento da demanda como um reconhecimento do novo papel desempenhado pelo Direito na ordem democrática brasileira, fechamos o ciclo que permite que os interesses "particularizados" dos atores jurídicos não venham à tona. Assim, a análise dos "bastidores" do "teatro" permite visualizar interesses que não se coadunam com o discurso utilizado para legitimar a nova ordem.

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Uma Assembleia Constituinte representa um momento de alta complexidade, expressando momentos de tensão e de conflitos tendo em vista que seu objetivo é instituir uma nova ordem jurídica e de poder: um campo em que os diferentes atores buscam maximizar suas estratégias, visando às novas configurações diante do novo desenho político-institucional que o documento constitucional irá prover. Ademais, "a percepção sobre o passado político recente, vivido pelos atores responsáveis pela formulação de um novo arranjo constitucional, consistirá num dos marcos de referência primordiais em suas ponderações." (M.T.SOUZA, 1991, p. 39) E estas ponderações também resultam de "escolhas reflexivas" que os atores fazem, tendo como pano de fundo os riscos e os esforços com os quais se comprometem para alterar ou manter o status-quo.


4 – Referências Bibliográficas

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Notas

  1. Utilizaremos a expressão "institucionalizado" e "não institucionalizado" para fazer referência aos atores jurídicos que possuem um vínculo com uma instituição jurídica, seja OAB, AMB, STF, Ministério Público, etc.. e atores jurídicos que não estejam, no discurso analisado, necessariamente vinculados a uma instituição jurídica. Trata-se de classificação meramente metodológica para fins de facilitar a compreensão do mapeamento do campo e seus atores.
  2. Cumpre destacar que esta pesquisa utilizou apenas o discurso dos atores jurídicos durante o processo constituinte, não incluindo referências a outros atores.
  3. As lutas simbólicas se definem a partir da percepção do mundo dos diferentes atores e constituem lutas pelo poder de produzir e impor a visão de mundo legítima, tendendo a reproduzir e reforçar as relações de força que constituem a estrutura do espaço social (BOURDIEU, 1990).
  4. Esta Comissão, presidida pelo jurista Afonso Arinos de Mello Franco, iniciou seus trabalhos em 1985, com a presença de quarenta e nove pessoas, das quais 30 eram juristas. Seu objetivo era realizar estudos e oferecer sugestões à Constituinte quando esta fosse instalada. O projeto acabou por ser apresentado a ANC apenas em abril de 1987, a título de colaboração, mas circulava informalmente pelos bastidores do Congresso, e influenciou o processo constituinte. Ademais, vários dos membros da Comissão participaram também do processo constituinte como especialistas convidados a se pronunciar nas audiências públicas ou como assessores e consultores dos constituintes.
  5. Utilizar-se-á a idéia de interesses "particularizados", específicos e inerentes aos campos dos diferentes atores, como contraponto aos "direitos republicanos" (Bresser Pereira, 1997): direitos relacionados com a defesa do interesse público e de direitos individuais universalizáveis. São direitos que não deveriam ser apropriados por indivíduos ou grupos de interesse.
  6. Expressão que designa os defensores de um documento constitucional mais preocupado em definir as liberdades "negativas", ou seja, os limites da intervenção do Estado na esfera privada.
  7. As Emendas apresentadas e suas justificativas foram analisadas no Centro de Documentação da Câmara dos Deputados – Arquivo e no site do Senado Federal (www.senado.gov.br) ícone Legislação, Bases Históricas. Os demais documentos, anteprojetos, projetos, pareceres, substitutivos, estão disponíveis no site da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br ), ícone Publicações e Estudos.
  8. Canotilho (2001) defende a noção de uma constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade.
  9. No decorrer do próprio debate o constituinte afirma que a criação do Tribunal se apóia em vários constitucionalistas brasileiros, dentre eles José Afonso da Silva, responsável pelo projeto do constituinte Mário Covas. A proposta do relator é de autoria da Ordem dos Advogados do Brasil.
  10. Interessante notar que interpelado pelo constituinte Adolfo Oliveira, que lembrou Ministros que foram cassados pelo regime militar, como Hermes Lima, o relator aponta que "não é uma expedição punitiva contra o Supremo Tribunal Federal", que não se trata de revanchismo.
  11. Professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, membro do Conselho Federal da OAB, onde representava também aquele Estado, e advogado militante. Autor de uma das formulações acerca da composição do Tribunal Constitucional apresentada, cuja preocupação era evitar um novo tribunal vitalício.
  12. O professor cita quatro exemplos específicos: Itália, Alemanha, Portugal e Espanha.
  13. Em audiência pública junto a Comissão de Sistematização, o presidente do Conselho Federal da OAB, Márcio Thomaz Bastos, assim se posicionou: "Não adianta, como foi dito, que tenhamos uma grande Constituição, que tenhamos uma Constituição moderna, contemporânea, provida de todos os elementos que nos possam levar a uma democracia social, se não tivermos uma Corte Constitucional, que não é o Supremo Tribunal Federal. Tal como se encontra estruturado e articulado hoje, mas uma corte diferente, um tribunal com outra filosofia, com outros princípios, um tribunal de vocação política; um tribunal que não seja nomeado, que não seja recrutado, que não seja designado e formado pela vontade do Sr. Presidente da República, mas um tribunal que seja eleito pelo Congresso Nacional, um tribunal onde os mandatos não sejam vitalícios, onde as pessoas não fiquem lá toda a vida, mas que os mandatos tenham um termo, que foi fixado aqui, na nossa proposta, em nove anos." (Suplemento ao DAN nr. 114, de 04.08.1987, p. 14). Salienta, entretanto, que não se trata de órgão fora do Poder Judiciário.
  14. Sugestão nr. 10.965, assinada pelos Ministros Moreira Alves, Djaci Falcão, Rafael Mayer, Néri da Silveira, Oscar Corrêa, Aldir Passarinho, Francisco Rezek, Sidney Sanches, Octávio Gallotti, Carlos Madeira e Célio Borja.
  15. "Os próprios magistrados querem o Supremo atuando vigorosamente no campo do Direito Constitucional. Mas os próprios magistrados não querem que demorem mais as demandas com a criação de um tribunal intermediário, um Tribunal Superior de Justiça. Mais uma instância, justamente quando estamos falando que os processos demoram!" (p. 131)
  16. Para se ter uma idéia da pressão "conservadora", das 42 emendas apresentadas e analisadas sobre o tema Supremo Tribunal Federal ou Tribunal Constitucional ao anteprojeto do Relator da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público (Etapa 2, Fase B), 29 se manifestaram contrários a criação do Tribunal Constitucional, apenas 13 eram favoráveis. Na etapa subseqüente, na Comissão Temática III, foram duas fases de apresentação de emendas, a fase E com 22 emendas, e a fase F (ao substitutivo do Relator da Comissão, constituinte Egídio Ferreira Lima), com 18 emendas. Deste total de 40 emendas, 11 defendem a criação do Tribunal Constitucional e são basicamente propostas por três constituintes que defenderam a criação do Tribunal durante as duas Etapas iniciais: Vivaldo Barbosa (Emendas 301304-9, 3S0029-2, 3S0961-3), Vilson Souza (Emendas 300811-8, 3S0460-3) e Nelton Friedrich (Emenda 3S0671-1). As demais emendas versam basicamente sobre as funções do Supremo, em especial as partes legítimas para proporem a ação direta de inconstitucionalidade. Percebe-se que a pressão "comunitarista" foi se esvaindo na medida em que o processo constituinte foi prosseguindo.
  17. "Temos que botar na cabeça que aqui estamos agora, com a Corte nova, e que essa Corte nova deverá ter um novo critério de recrutamento. E por que um novo critério de recrutamento? Por que essa corte, que antes era quase que exclusivamente técnico-jurídica, hoje é, sobretudo, política, técnica e jurídica." (DANC, de 7 de abril de 1988, nr. 220, p. 9062, Requerimento de Destaque D2009)
  18. O primeiro projeto de Constituição apresentado pela Comissão de Sistematização, na Etapa 4, cujo relator foi o constituinte Bernardo Cabral designa 16 Ministros para o Supremo: cinco indicados pelo Presidente da República, seis pela Câmara Federal, e cinco pelo Presidente da República dentre os integrantes de listas tríplices, organizadas para cada vaga pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
  19. Haberle (1997) rejeita uma interpretação constitucional como um "evento exclusivamente estatal", inserindo todos, mesmo aqueles que não são diretamente afetados por ela.
  20. António de Araújo (1997) em análise sobre o Tribunal Constitucional Português, destaca que os juízes não são juízes de um qualquer tribunal, mas do Tribunal Constitucional Português, e "nessa medida, acabam por ser marcados pela ‘cultura’ dominante no seio desta instituição" (p. 174)
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Sobre a autora
Julia Maurmann Ximenes

Advogada, Mestre em Direito, Doutora em Sociologia Política pela Universidade de Brasília, professora da Pós-Graduação e do Mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

XIMENES, Julia Maurmann. O Supremo Tribunal Federal durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.: A influência comunitarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2204, 14 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13152. Acesso em: 23 nov. 2024.

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