ATAQUES AO CONTRATO PREVIDENCIÁRIO E IMPLICAÇÕES
Observando a enxurrada de interpelações judiciais promovidas contra as Entidades Fechadas de Previdência Complementar e as sentenças destes processos decorrentes, chega-se facilmente à conclusão de que Judiciário, participantes, assistidos, advogados e sociedade não entendem o conceito nem as relações jurídicas inerentes ao Contrato Previdenciário.
Uma série de ações com pedidos diversos acabam por debilitar o contrato aqui defendido, cuja finalidade única é garantir a manutenção do padrão de vida de trabalhadores e seus dependentes, por meio de pagamento de benefícios complementares aos ofertados pela Previdência Social nos momentos de maior fragilidade da vida (velhice, doença e morte).
Os ataques mais comuns têm como causa de pedir, mediata ou imediata, a aplicação de expurgos inflacionários sobre resgates de reservas de poupança; a aplicação de código de defesa do consumidor na relação jurídica existente entre participante ou assistido e o plano; revisão de benefícios concedidos com exclusão de cláusulas do regulamento; e, mais recentemente, inclusão de verbas previstas em Acordo Coletivo de Trabalho (no caso concreto, auxílio cesta alimentação) no benefício complementar. Em qualquer dos casos, as implicações são as mesmas, representando um incremento no que é devido a um indivíduo, em detrimento da coletividade vinculada ao plano de benefício.
A Constituição do Brasil foi expressa na determinação de que todo o sistema de previdência complementar deverá ser "baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado" (art. 202, caput). E a LC nº 108/2001 determina que o custeio dos planos de benefícios é de responsabilidade do patrocinador e dos participantes, inclusive assistidos (art.6º, caput). A LC nº 109/2001 afirma expressamente que o regime financeiro de capitalização e obrigatório para os benefícios de pagamento em prestações que sejam programadas e continuadas (art.18, $1º LC nº 109/2001). Cabe ao Estado determinar os padrões mínimos de segurança econômico-financeira e atuarial, a fim de preservar o equilíbrio dos planos de benefícios, além de fiscalizar, como dito anteriormente, a atuação das entidades.
No Contrato Previdenciário, a equidade é fundamental, defendendo Manuel Povoas que a prestação do participante deve ser adequada e suficiente para, juntamente com o aporte dos outros do mesmo plano, sustentar o pagamento futuro do benefício contratado. Não se tratando de equivalência individual, mas conjunta. [13] Deste modo, é em função da contribuição que se estabelece o benefício, no momento da aposentadoria.
O equilíbrio, ponto fundamental de todo Contrato Previdenciário, é defendido por Luiz Carlos Cazetta: "Em situações ordinárias, não pode o participante pleitear reajuste de seus benefícios em desacordo com o regime expressamente previsto no plano e sem a devida formação de reservas para tanto, sob pena de dar causa a desequilíbrio atuarial e econômico-financeiro do plano de que participa em conjunto com outras pessoas". [14]
Assim, em qualquer das hipóteses de ataque ao Contrato Previdenciário (quando um indivíduo participante de plano de benefício consegue judicialmente um incremento no seu quinhão sem haver formação da respectiva reserva de poupança para o pagamento do valor maior), está-se diante de hipótese de enriquecimento ilícito, manifestamente ilegal e proibida pelo ordenamento jurídico nacional. Não bastasse isso como argumento para a defesa da EFPC, deve-se ter em mente que o ataque tem por objeto o patrimônio de uma coletividade, alvo de zelo e proteção estatal.
Repita-se que, sendo vencedora a causa atentatória ao Contrato Previdenciário, a perda atinge a coletividade vinculada ao plano de benefícios, que deverá suportar o plus conseguido por outro participante por meio de ação judicial. Em se tratando de entidade fechada de previdência complementar, não há que se falar em patrimônio da pessoa jurídica, mas de patrimônio coletivo, em que cada participante possui uma parcela. Daí porque o Dr. Adacir Reis afirmou em entrevista à revista Fundos de Pensão que "atacar o contrato previdenciário é um tiro no pé" [15].
A própria legislação (LC nº 109/2001) impõe que o resultado deficitário nos planos ou nas entidades deverá ser rateado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção de suas contribuições. Caso haja insuficiência na constituição de reservas técnicas, provisões e fundos, ou na sua cobertura por ativos garantidores e reconhecida a inviabilidade de recuperação ou ausência de condição de funcionamento, a entidade deverá ser liquidada.
Presente o princípio do mutualismo, quaisquer superávits ou déficits apresentados pelo plano de benefícios serão distribuídos ou suportados pelo conjunto de seus participantes, inclusive assistidos, sob a forma de redução ou elevação dos níveis dos benefícios ou majoração ou diminuição do valor das contribuições contratadas, na forma prevista no regulamento. Significando que, muitas vezes, aqueles que demandaram judicialmente e venceram causas evidentemente atentatórias ao Contrato aqui defendido terão que suportar também o rateio das despesas, através, por exemplo, do aumento de contribuições. Por certo, não são de interesse de nenhuma das partes envolvidas nesta relação jurídica as consequências oriundas do desequilíbrio deficitário do plano.
Uma das principais dificuldades encontradas é fazer o julgador perceber que, considerando o caso individual, o impacto financeiro e atuarial pode parecer irrelevante perante a movimentação financeira da entidade e as reservas do plano; mas que há inúmeros outros participantes em condições semelhantes, podendo esta decisão se tornar precedente para outras questões com a mesma matéria, atingindo um número maior de participantes e até de entidades, gerando jurisprudências equivocadas e até a edição de súmulas, e, a longo prazo, ensejando equacionamento destas perdas nos próprios planos de benefícios.
Assim, segundo Leonardo Paixão [16], quando o julgador afasta a incidência de norma contida no regulamento do plano, deixa também de aplicar princípio previdenciário fundamental e consagrado na Constituição (art. 195, §5º e art. 202) que visa (1) garantir a proteção dos próprios participantes por meio da preservação do equilíbrio econômico-financeiro e atuarial dos planos de benefício e (2) estabelecer que o regime de previdência privada fechado seja obrigatoriamente baseado na constituição de reservas que garantam o benefício nas condições contratadas no regulamento.
ATO JURÍDICO PERFEITO, SEGURANÇA JURÍDICA, DIREITO ADQUIRIDO E DIREITO ACUMULADO NO ÂMBITO DA EFPC
O art. 17 da LC 109/01, que regulamenta os planos de previdência complementar, dispõe sobre a possibilidade de alteração nos regulamentos dos planos, medida adequada e relevante para a adaptação do Contrato às novas condições que lhes são impostas. Condições estas, muitas vezes, não previsíveis à época de formatação do regulamento, mas que foram sedimentadas no decorrer dos anos em que vigorou a relação contratual.
Como visto, tais alterações não poderão ser aleatórias e discricionariamente determinadas pela Entidade. Elas deverão se submeter sempre à legislação vigente; à ingerência dos interessados (participantes e patrocinadores) por meio do Conselho Deliberativo; à atuação do Estado por meio da Secretaria de Previdência Complementar; é obrigatório que a entidade dê publicidade e conhecimento a seus participantes sobre as alterações após a aprovação pelo órgão responsável (art. 24 da LC 109/2001) e deve respeitar o direito acumulado, conforme previsão do art. 17 supracitado, in verbis:
Art. 17 As alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante. [17] (grifo nosso)
Assim, é plenamente possível e legal a revisão e alteração do regulamento do plano de previdência privada. Tal possibilidade é fundamentada na evolução da legislação, na variação das condições inerentes aos contratos de execução sucessiva e na própria necessidade de adequação e aderência entre receitas e despesas, de modo a assegurar o pagamento de todos os benefícios contratados.
Na verdade, não há inovação na Lei Complementar em foco. Os contratos por prazo indeterminado e de trato sucessivo sempre admitiram o seu rompimento de forma unilateral, forma mais drástica de alteração da pactuação. [18]
No que tange à busca da necessária estabilidade das relações jurídicas, deve-se ter em vista que segurança jurídica não significa a estagnação dos contratos, o engessamento de suas cláusulas ou a inalterabilidade de seu conteúdo. Salutar que, em se tratando de Contrato Previdenciário, que se protrai no tempo, as modificações se impõem como mecanismos garantidores da solvência dos planos e, por este exato motivo, são indispensáveis à defesa dos interesses coletivos envolvidos.
Desta sorte, trata-se de hipótese de mitigação do pacta sunt servanda, princípio que norteia a maioria das relações contratuais e impõe força obrigatória das cláusulas contratuais para os contratantes, aduzindo ainda somente ser possível a alteração mediante expresso e mútuo acordo. Este princípio é fundamento dos inúmeros pleitos judiciais atentatórios ao Contrato Previdenciário e é utilizado com o escopo de afastar a incidência de regras introduzidas durante a vigência da relação contratual, não previstas quando da adesão. Entende-se, portanto, que o princípio do pacta sunt servanda deve ter efeitos modulados no que pertine ao Contrato Previdenciário.
Diante da modulação dos efeitos do Pacta sunt servanda, impende que seja defendida a aplicação da Cláusula Rebus sic stantibus. Esta pode ser definida como a cláusula que permite a revisão das condições do contrato de execução sucessiva. A alteração pode ocorrer se houver mudança imprevista, razoavelmente imprevisível e inimputável às partes na execução do contrato e deve ser posterior ao momento da celebração. Esta mudança deve gerar desproporção excessiva, de modo que uma das partes aufira vantagem exagerada em detrimento da outra. A cláusula analisada em conjunto com as disposições da LC nº 109/2001 possibilitam a alteração das disposições contratuais previstas para plano de benefício previdenciário.
Tais alterações, ainda que prejudiciais aos participantes, podem ser feitas sem a anuência deles e sem configurar violação aos princípios da segurança jurídica e do respeito ao ato jurídico perfeito, desde que a entidade dê publicidade às mesmas após a aprovação do órgão regulador e fiscalizador responsável. Considerando-se como ato jurídico perfeito, em se tratando de previdência complementar, aquele que se aperfeiçoou e reuniu todos os elementos necessários para a sua validade.
No momento de adesão ao plano de benefícios, há o compromisso de cumprimento de obrigações recíprocas pelas partes envolvidas nesta complexa relação jurídica, como visto anteriormente. Mas neste momento há apenas expectativa de direito para o participante de receber sua complementação nos termos pactuados. Não há que se falar em direito adquirido.
O ato jurídico só se aperfeiçoa, no âmbito do Contrato Previdenciário, no exato momento em que o benefício previdenciário complementar é concedido ou que o participante implemente todas as condições exigidas pelo plano para a obtenção do benefício. Isto porque esta espécie de contrato, por se prolongar no tempo sem prazo determinado e por possuir obrigações sucessivas, necessita de que as regras sejam cumpridas diariamente, podendo estas sofrer alterações, e só podendo ser concedido qualquer resgate ou benefício, com base no direito acumulado ou no direito adquirido [19].
Os princípios da segurança jurídica e do respeito ao ato jurídico perfeito, porque não são absolutos, podem também ser mitigados em face da prevalência do interesse coletivo sobre o interesse individual que configura este tipo de relação previdenciária, devendo ser preservado o inescusável equilíbrio do plano de benefício sobre a expectativa de direito individual. Isto decorre do fato de que a elevação dos custos do plano (leia-se o aumento das obrigações com o pagamento de complementações) não pode ocorrer ao ponto de inviabilizá-lo, atacando expressivamente o patrimônio coletivo gerido pela entidade.
No mesmo sentido, Wladimir Novaes Martinez aduz que a lei previdenciária que respeita o direito adquirido é aquela que preserva o equilíbrio do plano, seja moralmente sustentável e previdenciariamente legítima. Se um segmento da sociedade põe em risco o equilíbrio do regime porque recebe mensalidades muito acima do normal, ainda que legais, elas serão ilegítimas do ponto de vista da coletividade e devem ser revistas, adequando-se ao aludido equilíbrio. [20]
Deste modo, a alteração de regulamentos fundamentada em razões técnicas relevantes, devidamente comprovadas pela SPC, passa a valer a partir do momento de sua aprovação, atingindo a todos que não preencheram os requisitos para o exercício do direito pleno a determinado benefício [21]. Em relação àqueles que cumpriram todos os requisitos previstos para auferir a complementação antes da alteração do regulamento, há a incorporação, ao patrimônio jurídico individual, do direito ao benefício nos moldes estabelecidos antes da alteração. Há, neste caso, direito adquirido.
O art. 68, §1º da LC nº109/2001 dispõe que os benefícios se tornam direito adquirido do participante quando implementadas todas as condições estabelecidas para elegibilidade consignadas no regulamento do respectivo plano. Condições de elegibilidade são os requisitos legais/contratuais para a obtenção do benefício previdenciário. Atingidas tais condições, o direito ao benefício incorpora-se ao patrimônio jurídico do participante, sendo, a partir de então, considerado direito adquirido.
Assim também dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, no §2º do art. 6º, que considera adquirido o direito que seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo exercício tenha termo prefixado, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Assim, trata-se de direito adquirido quando as situações jurídicas já estão produzindo seus efeitos.
No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 17 da LC 109/2001, dispondo que o participante só tem direito à aplicação do regulamento mais favorável quando e se cumpridos os requisitos para obtenção do benefício previsto no plano. Ou seja, valem as regras do momento em que o participante conseguiu implementar todas as condições exigidas para a concessão do benefício.
Assim, diz-se que os participantes que preenchem as condições exigidas para passar à fase de inatividade da relação contratual previdenciária não são afetados com as alterações posteriores do regulamento, uma vez que o direito à percepção da complementação, nos patamares anteriores à alteração, é um direito adquirido. Aqueles que ainda não reuniram as condições de elegibilidade, por sua vez, terão respeitado o direito acumulado até o momento em que a alteração entrar em vigor. Salientando mais uma vez que estas alterações devem ser imprescindíveis para preservar os interesses da coletividade de participantes, principalmente no que diz respeito à manutenção do equilíbrio econômico, financeiro e atuarial do plano de benefício.
Sob o prisma do instituto do direito acumulado, há substancial diferenciação entre a Previdência Pública (oficial) e a Privada. Naquela, só há direito incorporável ao patrimônio individual quando implementadas todas as condições exigidas por Lei para a aposentadoria. Na Previdência Privada, há direito incorporável ao patrimônio desde a adesão a um plano de benefícios, através do aporte mensal de recursos, configurando uma poupança individual em formação, patrimônio jurídico do participante. [22]
O direito acumulado é figura de extrema relevância no âmbito da previdência complementar, uma vez que a formação da reserva de poupança do participante representa um direito incorporado, mês a mês, ao patrimônio jurídico do indivíduo. A bem da verdade, as contribuições vertidas ao plano, mesmo antes desta destinação, já pertenciam ao patrimônio individual do participante, posto que se tratam de privações momentâneas do usufruto desta pecúnia para capitalizá-la e gozá-la em momento futuro.
Assim, o direito acumulado corresponde às reservas constituídas pelo participante ou à reserva matemática, a depender do tipo de plano contratado. A preservação do direito acumulado dos participantes é integral, considerando o que foi reunido até o momento da alteração contratual, mantendo aquilo que é do patrimônio do participante, enquanto este ainda não implementou as condições para o início do gozo de complementação de aposentadoria.
A definição de direito acumulado deve ser dada com base no entendimento de que cada contribuição vertida ao plano corresponde a um quinhão do benefício a ser concedido futuramente. Por óbvio, o direito acumulado sempre será conversível em pecúnia e diz respeito às condições contratuais incorporáveis à reserva de poupança do participante. Diante desta conclusão, as regras do plano que não são aferíveis em termos monetários não são protegidas pelo instituto do direito acumulado, porque não foram incorporadas ao patrimônio jurídico financeiro do participante. [23]
Esta anotação se coaduna com o entendimento de ato jurídico perfeito aqui expensado. Se este só é configurado quando presentes as condições de elegibilidade e/ou quando ocorrer a efetiva concessão de benefício de complementação de aposentadoria, tem-se que não ocorrido este fato, não há falar em direito adquirido, ou seja, não há incorporação ao patrimônio jurídico do participante. Além disso, a própria legislação afirma que valem as regras do regulamento vigente no momento em que o participante implementou as condições para a concessão de benefício (art. 17, parágrafo único da LC nº. 109/2001).
Diante disso, inúmeras decisões jurisprudenciais no sentido de que não há direito adquirido, por exemplo, ao reajustamento de prestação conforme às regras do momento de adesão, à concessão de aposentadoria com idade mínima prevista em regulamento anterior ao em vigor no momento do pedido, entre outros.
Assim, o instituto jurídico do direito acumulado visa à preservação do direito constituído (reserva de poupança) pelos participantes ativos e à manutenção da finalidade última da entidade que é o pagamento de benefícios. [24] Repise-se que todo direito individual é limitado pelo direito de outrem, prevalecendo os interesses sociais sobre os individuais. Em última análise, não há direito contra os interesses superiores da ordem pública.
Evidentemente, o respeito ao direito coletivo deve se dá de modo que não sejam nem o plano de benefício nem a entidade obrigados a custear benefícios ilegítimos, ilegais ou excessivos, comprometendo a regularidade da gestão do plano e o pagamento dos benefícios futuros.
A questão da previdência complementar, porque submetida à extrema intervenção estatal, nos termos do art. 202 da Constituição Federal, faz com que os princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica passem a ser analisados à luz do interesse coletivo, prevalecendo este último, cerne dos planos geridos por EFPC, de modo que só se pode arguir a aplicação de tais princípios quando isto não representar atentado ao equilíbrio econômico, financeiro e atuarial do plano e respeitando-se, por óbvio, o patrimônio jurídico individual representado pelo direito acumulado por cada participante.