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Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: campo de tensão

18/07/2009 às 00:00
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As cláusulas pétreas não têm representado um risco para a democracia brasileira; antes, elas têm possibilitado um ativismo judicial ainda necessário, comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais.

Resumo

O presente ensaio avalia as relações da inafastável tensão entre direitos fundamentais e democracia, no campo das cláusulas pétreas, a partir da experiência constitucional brasileira e do ativismo judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A tese central sustenta a idéia de que as cláusulas pétreas não têm representado um risco para a democracia brasileira; antes, elas têm possibilitado um ativismo judicial ainda necessário, comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais.

Resumen

Cet article analyse les relations de indubitable tension entre les droits fondamentaux et la democratie, dans le champ des clauses immuables, ayant comme réference l’experience constitutionnelle brésilienne et de l’ ativisme judiciaire, dans le contexte de la Court Constitutionnelle (Supremo Tribunal Federal). La thèse centrale défie l’idée dont les clauses immuables n’ont pas carácterisé un risque pour la démocratie brasilienne: mais, avant, elles ont rendu possible un ativisme judiciaire encore nécessaire, engagé avec l’exécution des droits fondamentax.

Palavras chaves

Direitos fundamentais – Cláusula pétreas – Democracia – Direito Comparado


Autores tão diversos como Robert Alexy [01], Konrad Hesse [02], Vieira de Andrade [03], Canotilho [04], Ingo Sarlet [05] e Perez-Luño [06], dentre outros, insistem que é preciso o desenvolvimento de teorias constitucionais concretas, voltadas a uma experiência historicamente situada, com a finalidade de desenvolver uma dogmática adequada para responder as demandas específicas da sociedade. Nada obstante a propagação cada vez mais intensa desta espécie de pensamento, parece certo que a existência de algum consenso em relação a necessidade de um constitucionalismo chamado de adequado, concreto ou estatalista não impede que se reconheça que grande parte dos problemas constitucionais, bem como de seus valores, alcançou uma dimensão global.

Não é sem razão que Bruce Ackerman [07], referindo-se a aceitação generalizada de alguns princípios políticos, admite a existência de um "constitucionalismo mundial". Horst Dippel, através de leitura histórica, enuncia catálogo de princípios que caracterizariam, em plano mundial, o constitucionalismo moderno [08]. No Brasil, embora assumindo postura crítica, José Eduardo Faria descreve o processo de universalização de alguns valores do constitucionalismo como forma de legitimação genérica do sistema político [09].

Nesta seara, dentre os valores que, hegemonicamente, costumam aparecer na pauta do constitucionalismo moderno ocidental como dotados de universalidade despontam os direitos fundamentais e a democracia.

Deveras, no mundo atual o reconhecimento constitucional de um rol mais ou menos extenso de direitos fundamentais é fenômeno facilmente constatável [10], sendo possível afirmar o mesmo em relação à democracia, invocada em não poucas constituições, mesmo antidemocráticas, como elemento de legitimação do poder [11]. Não sem razão, aliás, pensadores de tradições teóricas distintas sustentam que os direitos fundamentais integram o cerne do constitucionalismo moderno [12]. Os direitos fundamentais, não raro, são apontados como integrantes do núcleo principal das atuais constituições [13], que teriam se desenvolvido exatamente como instrumentos de tutela desses direitos [14].

Ao mesmo tempo em que não há grande divergência na afirmação de que direitos fundamentais e democracia assumiram uma dimensão mundial, parece também existir um concerto amplo no sentido de se reconhecer uma relação necessária entre esses valores. Carlos Bernal Pulido, neste sentido, leciona que "os direitos fundamentais representam, sem lugar para dúvidas, a coluna vertebral do estado constitucional. Igualmente ao seu antecessor, o estado liberal, o estado constitucional não se propõe como um fim em si mesmo, mas como um instrumento para que os indivíduos desfrutem de seus direitos na maior medida possível. Por isso os direitos fundamentais são a base do estado constitucional, o motor de sua ação e também o seu freio" [15]. Hans Peter Schneider, de modo mais incisivo, chega ao ponto de se sustentar que sem uma tutela adequada dos direitos fundamentais não existe democracia. Para este autor, "a democracia pressupõe os direitos fundamentais da mesma forma que, ao contrário, os direitos fundamentais só podem adquirir sua plena efetividade em condições democráticas" [16].

Se a correlação entre direitos fundamentais e democracia é um dado inafastável, por certo não se pode daí concluir que o diálogo entre eles seja sempre harmônico. Existe nesta relação também um campo conflitual.

Nos países em que se admite a supremacia da constituição escrita [17], onde existem mecanismos de controle de constitucionalidade e nos quais este controle pode se desenvolver numa perspectiva substancial, tomando-se como paradigma algum núcleo axiológico mais ou menos rígido, é comum a emergência de tensões entre direitos fundamentais e democracia. Observe-se que Robert Alexy, ao admitir três possibilidades para contemplar as relações entre direitos fundamentais e democracia, fazendo referência à concepção que ele designa como realista, afirma que a existência de proteção aos direitos fundamentais é uma experiência ao mesmo tempo profundamente democrática e antidemocrática. Democrática porque asseguram o desenvolvimento da democracia e de suas condições de deliberação e, antidemocrática, porque desconfia do processo democrático ao retirar, do plano deliberativo das maiorias, a possibilidade de algumas decisões ou ações [18].

Este aspecto conflitual, é preciso salientar, tem se mostrado ainda mais problemático nos sistemas constitucionais que admitem a existência de cláusulas de eternidade [19] e, em tais cláusulas, estão presentes os direitos fundamentais.

Isto porque a existência de uma constituição escrita e rígida, dotada de supremacia formal e também material, é por si só um mecanismo de tutela dos direitos fundamentais. A simples existência de um mecanismo mais complexo de produção, alteração e supressão do texto formal da constituição é capaz de retirar, do campo decisório de maiorias simplificadas, a afetação ordinária dos direitos fundamentais [20]. Todavia, quando os direitos fundamentais são tutelados através de cláusulas de intangibilidade, retira-se a possibilidade de que inclusive maiorias expressivas possam dispor sobre esses direitos. Ou seja, eles ficam afastados do âmbito deliberativo de qualquer maioria, criando, assim, um núcleo identitário ou essencial na constituição [21].

Neste quadro a relação entre direitos fundamentais e democracia determina a emergência de um paradoxo: quanto mais se busca proteger os direitos fundamentais, pressupostos da democracia, através de mecanismos rígidos de tutela, mais se autorizam a limitação e a constrição da manifestação do princípio majoritário. Embora a questão não seja nova [22], parece que o problema central não pode ser colocado em termos de "qual pólo deve ser o vencedor?". A questão central parece residir, antes, na localização de um ponto de equilíbrio [23]. E a resposta, neste sítio, não pode ser universal. A receita há de variar de acordo com cada experiência histórica, cada momento, contexto e espaços geográfico e político.

Por isso é necessário referir que a Constituição brasileira de 1988 assume, em seu texto, um modelo tipicamente compromissório. Ela expressa um amplo compromisso político-axiológico entre as mais diversas classes e frações de classes participantes do processo constituinte, refletindo, assim, a pluralidade existente na sociedade brasileira [24]. É, ademais, uma constituição preocupada e comprometida com a afirmação da democracia. Afinal, a sociedade brasileira vinha de longo período de experiência autoritária decorrente de um golpe militar levado a efeito em 1964 e que nada primou pelo respeito aos direitos fundamentais. Logo, a Lei Fundamental de 1988 buscou romper com um passado antidemocrático, marcado pela tortura, pelo medo e pela negação das liberdades constitucionais. Esta mesma constituição, igualmente, buscou garantir uns poucos direitos já incorporados ao patrimônio civilizatório nacional, bem como propor uma ampla gama de direitos sociais prestacionais e normas programáticas buscando a criação de um projeto emancipatório para a comunidade [25], o que implicou na tentativa de revisão do próprio papel do Estado.

É compreensível, assim, a preocupação que o constituinte brasileiro denota com a proteção dos direitos fundamentais. Eles vêm abrigados, por óbvio, em uma constituição escrita e rígida. A rigidez constitucional, no Brasil, pode ser observada através da leitura de seu art. 60, onde se verifica a emergência de um mecanismo mais complexo de produção, alteração e supressão do texto formal da constituição. De acordo com este dispositivo a constituição somente pode ser emendada mediante proposta (i) de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, (ii) do Presidente da República ou (iii) de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. No que tange com a discussão e aprovação, a proposta de emenda deve ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, separadamente, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos de cada casa parlamentar, três quintos dos votos dos respectivos membros. Logo, trata-se de procedimento mais difícil que aquele empregado para as normas infraconstitucionais: seu quórum de aprovação é superior ao das leis complementares (que demandam maioria absoluta - metade mais um em razão do número absoluto dos membros das Casas) e das leis ordinárias (que demandam maioria simples ou relativa - metade mais um em proporção ao quórum dos presentes). Peculiaridade do processo da reforma, no Brasil, é o fato da aprovação de emendas não exigir sanção presidencial, que é uma fase do processo legislativo quase sempre presente na produção de leis infraconstitucionais em que o Chefe do Poder Executivo pode aquiescer com a aprovação de projetos já aprovados no parlamento ou discordar com fundamento na ausência de interesse público ou inconstitucionalidade. Em se tratando de emendas à constituição, ocorre a promulgação do texto aprovado diretamente pela mesa da Câmara dos Deputados, pois reputa-se que o titular desse poder constituinte derivado é o próprio Poder Legislativo. Há ainda, no mecanismo de rigidez constitucional brasileiro, a previsão de limitações circunstanciais, que impedem a aprovação de emendas constitucionais durante estado de sítio, estado de defesa ou intervenção federal. Com efeito, diante da gravidade de uma reforma constitucional, demanda-se, para sua atuação, um quadro de normalidade, de estabilidade, o que não se encontra em tais circunstâncias. Ao contrário de alguns sistemas constitucionais, é de se registrar que inexiste, na Constituição Federal de 1988, qualquer limitação de ordem temporal. Finalmente, no plano das limitações ao poder constituinte derivado, encontra-se a cláusula implícita de proibição do duplo grau de revisão [26], aceita pela maioria da doutrina nacional e com abrigo em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. Consiste, o duplo grau de revisão, em alteração do próprio procedimento da reforma, de acordo com as exigências atuais, para torná-lo mais flexível e simples. De modo que, em um segundo momento, poder-se-ia operar reformas mediante procedimento facilitado. Logo, reforma-se em primeiro grau para mudar o procedimento e em segundo grau, com o procedimento mais simples, para modificar mais singelamente o conteúdo [27]. Evidentemente a proibição do duplo grau de revisão é compreendida como limitação implícita ao poder reformador eis que sua admissão representaria verdadeira fraude constitucional [28].

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Mas a rigidez não é o único mecanismo de tutela dos direitos fundamentais no Brasil. O texto constitucional, ainda, parece estabelecer um regime jurídico diferenciado de proteção aos direitos fundamentais. Deveras, a Constituição de 1988 define que os direitos fundamentais são auto-aplicáveis; prevê uma evidente cláusula de abertura desses direitos; cria imensa gama de garantias processuais para a proteção de posições jusfundamentais; insere tais direitos no rol das chamadas cláusulas constitucionais sensíveis (princípios e valores que, uma vez vulnerados, ensejam a deflagração de um processo de intervenção federal); declara esses direitos como invioláveis, dentre outras notas que expressam uma especial preocupação do constituinte brasileiro com a tutela dos direitos fundamentais.

Por fim o sistema de proteção dos direitos fundamentais no Brasil vem coroado com a inserção dos direitos fundamentais no rol das cláusulas pétreas, o que, somado à existência de uma experiência rica de controle de constitucionalidade, tem permitido a declaração de inconstitucionalidade, inclusive, de emendas à constituição. No Brasil, destarte, ao menos no âmbito formal os direitos fundamentais alcançam um grau de proteção máximo.

Insta perguntar, em outra dimensão, se este grau forte de proteção, que se verifica no campo formal, pode trazer - ou realmente traz - algum risco para a afirmação da democracia do Brasil e se este sistema de proteção tem sido suficiente para garantir efetividade aos direitos fundamentais.

É sabido que não poucas são as críticas que parte do constitucionalismo expressa em relação à existência de cláusulas pétreas. Rodrigo Brandão elenca tais críticas em quatro grupos: (i) a previsão de cláusulas pétreas cria uma artificial distinção entre poder constituinte originário e poder de revisão, na medida em que, na verdade, ambos são expressões da soberania popular; (ii) as cláusulas pétreas pressupõem a existência de uma distinção questionável de hierarquia entre normas constitucionais originárias e derivadas; (iii) a existência de limites materiais ao poder de reforma não impedirão a mudança caso esta seja a vontade efetiva do povo bem como (iv) podem fomentar a ruptura institucional [29]. Essas críticas expressam uma tríplice preocupação: com a preservação da própria democracia, a permanência constitucional e a efetividade de um mecanismo tão grave de tutela de direitos.

Reitere-se o que antes se afirmou: no campo relacional entre a tutela dos direitos fundamentais e a democracia, qualquer crítica há de ser compreendida a partir da experiência concreta. Considere-se, nesta seara, que diversas experiências históricas mostram que a simples existência de proteção de direitos fundamentais mediante cláusulas de intangibilidade nem sempre representa risco à democracia e nem sempre garante efetividade à axiologia jusfundamental. De idêntica forma a inexistência de cláusulas pétreas não implica, necessariamente, no reconhecimento de um grau de efetividade menor dos direitos fundamentais.

No sistema brasileiro, em vista de peculiaridades históricas antes referidas, é absolutamente compreensível e admissível a previsão de cláusulas pétreas. A tutela dos direitos fundamentais mediante o gravame da intangibilidade, na experiência constitucional de 1988, aparece mais como uma tentativa de afirmação e reforço da democracia do que como um desafio ao princípio democrático. Expressa, antes, uma certa e fundada desconfiança em relação aos poderes constituídos. Ademais, razões de ordem política, cultural e social têm justificado o reconhecimento da existência de uma crise de legitimidade do Poder Legislativo, que se expressa através da "crise de representatividade". Logo, em princípio, não tem sido compreendido como afronta à democracia o controle judicial da atividade legislativa, mesmo quando esta é manifestada mediante reforma constitucional. O risco de ruptura constitucional eventualmente imposta pela existência das cláusulas pétreas, também parece afastada no caso do Brasil. E isto se confirma pois não foram poucos os momentos de crise política, econômica e social que a sociedade brasileira atravessou nesses últimos vinte anos, tendo os direitos fundamentais, protegidos com o grau de intangibilidade, se prestado mais para criar um ambiente de estabilidade do que de instabilidade. Esta auto-vinculação às cláusulas pétreas aponta que na experiência brasileira a tutela formal máxima dos direitos fundamentais encontra uma ampla legitimidade, não justificando a oposição da "tese das gerações".

Até porque nos momentos de crise, eventuais objeções às cláusulas pétreas foram levantadas não com fundamento no argumento das gerações mas, em geral, com base em discursos de governabilidade ou discursos de cunho economicista vinculados à necessidade de relativização de direitos para buscar ampliação da empregabilidade, estabilidade do mercado, equilíbrio financeiro, equilíbrio previdenciário etc.

Por outro lado, historicamente, consoante consistente leitura de Rodrigo Brandão, o Judiciário brasileiro não tem representado grande risco à democracia quando do exercício do controle de constitucionalidade. Exceto uma mudança ainda muito recente, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, "tem mais contribuído para a lesão à democracia pela sua inação do que, propriamente, por uma postura ativista" [30]. E, no plano da práxis, mesmo quando tem assumido uma postura ativista equivocada, vindo a relativizar, por algumas vezes, o papel político do Legislativo e do Executivo através do controle de constitucionalidade, a intervenção do Supremo Tribunal Federal tem sido mais estabilizadora da democracia do que representado uma afronta. O Judiciário, considere-se esta ponderação política, apenas vem ocupando, no sistema brasileiro, um espaço vazio de decisões que vêm sendo reiteradamente omitidas ou adiadas pelos demais poderes. Antes de representar risco, o ativismo judicial que está se esboçando enquadra-se nos limites aceitáveis de tensão institucional inerente aos estados democráticos.

Finalmente, nem mesmo a eventual crítica da extensão muito alargada do rol de direitos fundamentais tem se mostrado, no sistema brasileiro, como fator de engessamento das decisões majoritárias. Embora na Constituição de 1988 o rol de direitos fundamentais seja, realmente, muito amplo, a dicção normativa da tutela das cláusulas pétreas não chega a impedir qualquer tipo de afetação dos direitos fundamentais. O enunciado do art. 60, § 4º, impede a deliberação de qualquer proposta "tendente a abolir" os direitos fundamentais. Supressões constitucionais dos direitos fundamentais de forma direta, mediante emenda, portanto, são vedadas. Se não se admite a supressão direta mediante emendas, que é procedimento mais complexo, não se admite igualmente, para se evitar fraude à constitucional e por razões lógicas, a supressão direta de direitos fundamentais mediante normatividade infraconstitucional. Não se admite, por conseguinte, nem que emenda e menos ainda lei infraconstitucional sequer tendencialmente venham a suprimir direitos fundamentais. E, neste campo, o pensamento jurídico brasileiro tem compreendido que a proteção constitucional dos direitos fundamentais mediante cláusulas pétreas não veda toda e qualquer intervenção restritiva ordinária neste sítio. As chamadas restrições de direitos fundamentais são, por certo, admitidas, desde que a limitação respeite o chamado "núcleo essencial do direito restringido". Assim, esta adequada interpretação do sentido e extensão da tutela dos direitos fundamentais como cláusulas de intangibilidade tem possibilitado – ou pode possibilitar – um calibramento do sistema, evitando o possível engessamento temido pelos opositores das cláusulas pétreas.

Tais considerações não querem expressar, evidentemente, que se está a assumir uma leitura excessivamente otimista do papel das cláusulas pétreas no Brasil. As tensões existem. Os problemas existem. A leitura ora proposta se dá no sentido de que, considerando aspectos mais gerais, ponderando problemas pontuais em face dos ganhos globais, as cláusulas pétreas, por enquanto, não têm representado um problema para a afirmação da democracia no Brasil.

Insta enfrentar, brevemente, por derradeiro, a segunda questão que anteriormente se propôs: a forte proteção formal dos direitos fundamentais tem encontrado correspondência na efetividade destes direitos, ou seja, os direitos fundamentais têm encontrado, na prática, o mesmo grau de realização que, no campo formal, está prometido?

A resposta a este questionamento, evidentemente, é bastante complexa. O presente ensaio não comporta uma resposta adequada a esta pergunta. Basta referir que, na doutrina constitucional brasileira, o tema da efetividade das normas constitucionais e, mais notadamente, dos direitos fundamentais, quiçá seja aquele que possua mais ampla produção bibliográfica. Seria, logo, temerário, querer enfrentar o problema de forma sistemática em trabalho despretensioso. Todavia, talvez seja necessário fazer alusão a pelo menos uma contribuição que a tutela dos direitos fundamentais como cláusulas de intangibilidade tem permitido desenvolver no Brasil.

A referência que ora se faz é à implementação judicial de alguns direitos sociais prestacionais. Como se afirmou, a Constituição de 1988 define um amplo – e aberto – rol de direitos fundamentais. Dentre esses direitos, grande parte integra a categoria dos direitos sociais nos seus mais variados sentidos, inclusive aqueles de natureza prestacional que são, por razões óbvias, os de maior dificuldade de realização.

A insuficiência de recursos, a omissão legislativa, a falta de definição de políticas públicas, o desvio ilícito de recursos do Estado, os limites ao poder de tributação, oposições de cunho ideológico, decisões políticas e quadro legislativo normalmente mais favoráveis à proteção e realização dos direitos individuais, a predominância de certa concepção teórica que sustentava a insindicabilidade de determinadas opções da Administração Pública, dentre inúmeros outros fatores, contribuíram para um contexto desfavorável para a realização dos direitos sociais prestacionais apesar da Constituição de 1988 não ser consagrada como uma carta liberal.

A proteção dos direitos sociais como cláusulas de intangibilidade, mormente em relação ao seu núcleo essencial, nada obstante as dificuldades citadas, fez aflorar importante debate em torno do próprio conceito de núcleo essencial dos direitos sociais, do conceito de mínimo existencial e do princípio da proibição de retrocesso social que, até pouco tempo, eram categorias jurídicas praticamente ignoradas no país, tanto no campo teórico como no jurisprudencial. Aliás, nesta seara, começa-se a constatar, mesmo, um esboço de ativismo judicial que tem gerado, inclusive, certa preocupação. Sabe-se que no contexto dos chamados estados constitucionais o Poder Judiciário desempenha papel relevante no quadro de afirmação dos direitos fundamentais, mormente os sociais. Mas nem por isso é que uma postura de ativismo judicial há de substituir o papel da democracia deliberativa na formação das políticas públicas.

Se há, portanto, um espaço de tensão em que as relações entre realização dos direitos fundamentais e democracia vêm crescendo no Brasil ele certamente reside na interpretação em torno dos limites da atuação do Poder Judiciário na implementação dos direitos fundamentais sociais vinculados ao mínimo existencial. Neste sítio, sim, a discussão da realização judicial desses direitos está sendo modulada sob o argumento da tensão direitos fundamentais versus democracia. Todavia o debate ainda é germinal e a preocupação com um excessivo ativismo parece ser mais ideológica e política do que propriamente uma preocupação com eventuais riscos que ele possa efetivamente causar à democracia. Logo, o problema parece estar mal colocado em parte da doutrina nacional. Em verdade, quiçá a teoria constitucional brasileira não devesse estar se perguntando sobre os riscos que o ativismo judicial pode representar à democracia, mas sobre a necessidade de revisão da concepção dominante de democracia, de Estado e das funções públicas. Considerando que as manifestações de ativismo judicial são ainda muito recentes – o que não dispensa uma necessária reflexão – e, quantitativamente, estão ainda projetadas a um campo bastante restrito de direitos, a "objeção democrática", no contexto histórico específico, talvez expresse mais um conservadorismo, a manifestação de uma ideologia inimiga dos direitos sociais, a percepção de perda de um espaço de poder e de decisão, que um problema real.

A questão é complexa e demandaria uma abordagem mais ampla. Mas o intento do presente ensaio, mais que proporcionar um estudo da difícil discussão do grau de proteção dos direitos fundamentais no Brasil, pretendeu, em verdade, somente expor um panorama ou, melhor, fazer um inventário, dos debates mais correntes, mormente buscando enfatizar que a realidade histórica daqui não comporta, de forma acrítica, a importação de objeções desenvolvidas a partir de modelos teóricos construídos sob bases e experiências que nem sempre podem ser compartilhadas.

Por esta razão é de se arriscar a conclusão de que, ao invés de focar as preocupações num eventual e improvável risco efetivo para a democracia que a tutela dos direitos fundamentais como cláusulas pétreas possa representar– afinal, com todos os problemas inerentes a uma democracia germinal, o Brasil, neste campo, parece caminhar bem-, é preciso focar as preocupações na efetivação desses direitos. É nesta área que o Brasil ainda apresenta carências mais graves.


Notas

  1. . ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzon Valdés. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2002, p. 27
  2. . HESSE, Konrad. Elementos de direitos constitucional da República federal da Alemanha. Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1998, p. 25-6.
  3. . ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 2004, p. 37 e seguintes.
  4. . CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, 5ª ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 506.
  5. . SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 75.
  6. PEREZ-LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 3º ed., Madrid: Tecnos S.A., 1988, p. 26-7.
  7. . ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitucionalism. In: Virginia Law Review, n. 83, 1997, p. 771-797.
  8. . DIPPEL, Horst. História do constitucionalismo moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 2007, p. 10.
  9. . FARIA, José Eduardo. O Brasil pós-constituinte. São Paulo: Graal, 1989, p. 11.
  10. . DIPPEL, Horst. Op. Cit., p. 23-35.
  11. . LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución, Barcelona: Ariel, 1976, p. 218-222.
  12. . Hans Peter Schneider assinala que "a lei fundamental pode ser considerada como a Constituição dos direitos fundamentais, e interpretada e desenvolvida sempre em função destes direitos fundamentais; e o Estado existe para servir aos indivíduos e o não o indivíduo para servir o Estado" (SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y constitucion, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1991, p. 17). Carl Schmitt sustenta que "Em todas as constituições modernas encontramos catálogos de direitos fundamentais, nos quais os direitos das pessoas, dos indivíduos, são protegidos frente às pretensões que se justificam por razões de Estado. O Estado não deve poder fazer tudo o que em um momento determinado lhe é mais cômodo e lhe aceite um legislador complacente. A pessoa deve possuir direitos sobre os quais tampouco o Estado possa dispor. Os direitos fundamentais devem reger a Lei Fundamental; não devem ser apenas um adorno da Lei Fundamental" (SCHMITT, Carl apud SCHNEIDER, Hans-Peter. Op. Cit., idem).
  13. . SCHIER, Paulo Ricardo. Comissões parlamentares de inquérito e o conceito de fato determinado. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 11-14.
  14. . NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito – do estado de direito liberal ao estado social e democrático de direito, Coimbra: Coimbra, 1987, p. 16-17.
  15. . PULIDO, Carlos Bernal. Prefácio à obra Três escritos sobre los derechos Fundamentales, In: ALEXY, Robert. Três escritos sobre los derechos fundamentales y la teoria de los principio. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2006, p. 13.
  16. . SCHNEIDER, Hans Peter. Op. Cit., p. 19.
  17. . Há quem sustente que toda constituição escrita é necessariamente rígida. Neste sentido conferir: PACE, Alessandro & VARELA, Joaquin. La rigidez de las constituciones escritas. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1995, p. 115-129.
  18. . ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales em El estado constitucional. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Torino: Editorial Trotta, 2003, p. 37-38. Na mesma linha: SANCHÍS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial. In: CARBONELL, Miguel. Op. Cit., p. 124.
  19. . Ou cláusulas de intangibilidade, que no Brasil são designadas como cláusulas pétreas.
  20. . BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo de la moral. In: CARBONELL, Miguel. Op. Cit., p. 260.
  21. . SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 417.
  22. . Thomas Jefferson, em 1789 e em 1816, sustentou que os mortos não têm direitos! De tal sorte que nenhuma sociedade poderia produzir um constitucionalismo perpétuo. Jefferson chegava a preconizar a fórmula de revisões constitucionais sistemáticas a cada 20 anos.
  23. . BRANDÃO, Rodrigo. Direitos fundamentais, democracia e cláusulas pétreas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 146-179.
  24. . Clèmerson Merlin Clève. A teoria constitucional e o direito alternativo - para uma dogmática constitucional emancipatória, IAB: COAD, 1994, item 2.1.
  25. . Basta verificar o apontamento dos objetivos fundamentais da República, enunciados no artigo 3º, que expressam o cariz emancipatório da Constituição de 1988.
  26. . Jorge Miranda. Manual de direito constitucional, Tomo II, 3ª ed., Coimbra: Coimbra, 1991, p. 206 e ss.
  27. . Idem, p. 207.
  28. . J. J. Gomes Canotilho. Op. cit., p. 1138.
  29. . BRANDÃO, Rodrigo. Op. Cit., p. 21-22.
  30. . Idem, p. 174.
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Sobre o autor
Paulo Ricardo Schier

advogado militante, doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná, professor de Fundamentos de Direito Público e Direito Constitucional na Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades do Brasil (UniBrasil) e do Instituto de Pós-Graduação em Direito Romeu Felipe Bacellar, membro honorário da Academia Brasileira de Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHIER, Paulo Ricardo. Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: campo de tensão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2208, 18 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13169. Acesso em: 20 abr. 2024.

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