A responsabilidade e o devaneio travam uma relação extremamente interessante no imaginário coletivo humano, e mais ainda na mente jurídica. O lugar da responsabilidade, compreendida enquanto dicotomia que antagoniza o devaneio, é representado pelo "racional", pelo espaço público, pelo "mínimo ético", pela convergência, pelo senso comum. Em sentido diametralmente oposto, no devaneio moram os sonhos, os desejos, a criatividade, o impulso, o "irracional", o redondo (em oposição ao "quadradinho"), a loucura, o impossível, a bobagem, o ridículo, o indizível.
Os juristas receberam por gênese histórica e matriz positivista o dever de lidar primordialmente com essa relação, buscando com toda a obsessão das suas forças a "prudência", posicionando-se invariavelmente ao lado da responsabilidade. Formaram-se e formam-se como metáforas mortas (ou, como preferirá Warat, corpos mortos, sem desejo). São os instituidores do que se quer instituído, não importa o que se institua nem as vozes indizíveis que marcham contra.
"Fechar o sistema", como diria Luhmann, tornou-se nosso carma desde os glosadores pré-modernos, os quais nos legaram a dogmatização como defesa de um ponto de partida (ou, no mais das vezes, também de chegada!) necessário e pré-estabelecido, de um "fêcho": "Seu mister, Ó Jurista, é interpretar os textos romanos, resolvendo as contradições por meio da hierarquia das fontes e da exclusão recíproca dos significados".
Embora, como propõe Viehweg, a dogmática sempre necessite da zetética, esta se restringe ao questionamento da aplicabilidade dessa ou daquela norma a esse ou aquele "caso concreto" – um "dado fático" que não pode nem deve ser problematizado: Direito e pluralidade não se combinam jamais nas mentes do fêcho. Para o jurista, o fêcho é a reza de todos os dias: "Dei-me Deus, por fim, ignorância suficiente para jamais me sensibilizar; livre-me de toda criatividade; ponha minha inteligência a serviço da tradição. Amém".
Para os juristas do fêcho, o que importa é fixar o limite, sendo de nenhuma importância tanto o que fica dentro como quem ficará fora. Nossa arte é limitar; praticamos a "Ciência Jurídica do Fêcho".
Se por um lado o positivismo nos libertou das ordenações divina e "natural", conferindo ao humano a ingerência sobre os processos de criação e mutação do Direito, por outro nos deixou obcecados pelo fêcho. Se Deus e a Natureza não mais existem, então criamos um Deus e uma Natureza no meio de nós. O nome do antropo-divino-natural no Direito é "fêcho".
Chegou a hora de fechar o fêcho, de romper com ele, e a democracia está ao nosso lado, exigindo novos movimentos. É ora de deixar de lado o paradigma da "auto-limitação", a obsessão por um fim. A democracia nos oferece o caminho de flores que nos levará a novos campos.
Sigamos as estradas vicinais do devaneio, da loucura e do irracional. Ao contrário do que nos ensinaram, o fêcho não é o único caminho para a harmonia social, nem muito menos é o melhor deles. Não há harmonia sem ouvir as vozes dos que clamam por inclusão. Não se resolve os problemas fingindo que eles não existem. A pluralidade é nossa única salvação contra o fêcho, mas precisamos aprender a lidar com ela.
Walt Withman, famoso poeta americano, pensava na democracia como a união de amantes. Em "For you, O Democracy", presente na coletânea "Leaves of Grass", Withman evoca: "Come, I will make the continent indissoluble,/ I will make the most splendid race the sun ever shone upon,/ I will make divine magnetic lands/ With the love of comrades,/ With the life-long love of comrades." O poeta americano pensava no seu país como o mais alto grau de corporificação da sua própria visão de democracia. Em "America", fala da sua nação como: "Centre of equal daughters, equal sons,/ All, all alike endear’d, grown, ungrown, young or old,/ Strong, ample, fair, enduring, capable, rich,/ Perennial with the Earth, with Freedom, Law and Love, […]" (destaque nosso).
O Direito do fêcho preocupou-se, e assim ocupou a nós, jurista, com uma suposta dicotomia entre responsabilidade e devaneio. Withman, no entanto, nos ensina que liberdade, Direito e amor podem e devem andar juntos. A responsabilidade concilia-se com o devaneio num complexo jogo de auto-implicação.
Contudo, não culpo apenas ao Direito por isso. Afinal, a ciência moderna é a ciência do fêcho e da exclusão. A verdade, para o Direito obcecado pela ciência moderna, é sinônimo de assepsia, e não resultado de encontros livres, abertos e democráticos.
Nem de longe sugiro que seja tarefa fácil superarmos o paradigma do fêcho, assim como não atribuo responsabilidade aos que até hoje se "fecharam" por falta de alternativa. Também não sei bem ao certo que pés, braços, enfim, que "corpo" terá essa alternativa. Isso tudo vai depender da nossa disposição em repudiar o fêcho e nos engajarmos na construção do incerto, que de já se anuncia plural e democrático. Transformações existenciais são sempre complexas.
Talvez, num mero exercício de futurismo, um dos primeiros movimentos do Direito aberto (que ocupará o lugar do Direito do fêcho) será a construção de novas compreensões sobre a formação do jurista. Se até hoje somos educados como escavadores de livros, a partir da nova proposta cultivaremos a phronesis no lugar da theoria, ou seja, os encontros livres e abertos serão os substitutos ideais às horas de escrivaninha. Não que estas se tornarão dispensáveis, mas não aprenderemos com nossa tradição mais do que aprendemos com nossa contemporaneidade. Não haverá hierarquia, apenas diálogo.
Continuando com minha bola de cristal, e agora me ocupando brevemente do pensamento jurídico na era da abertura, não estou bem certo de que ainda estaremos tentados a pensar em termos "científicos". Se compreendermos por ciência não o "caminho metódico para a verdade", mas tão somente a boa prática social cujos resultados são obtidos por consensos maiores ou menores, em oposição às lutas corporais, certamente estaremos interessados em ser científicos. Entretanto, não teremos nenhum lugar para preocupações sobre qual seja o "objeto" da Ciência do Direito, nem muito menos definiremos nossa ciência por meio de subterfúgios como o que propõe Tércio Sampaio, para o qual ela consiste numa atividade que subordina modelos diversos que se ocupam do comportamento humano e dos seus conflitos, tendo em vista a questão da decidibilidade. Por certo que o Direito aberto ocupa-se primordialmente do ser humano, das suas angústias, conflitos etc (e não da "norma" ou do que lhe valha), mas não o faz com vistas a subordinar coisa alguma, muito menos mantém obsessão pelo fim dos conflitos. É comum que, em sociedades democráticas, os conflitos não precisem ser encerrados, e sim estimulados. Pôr fim à contenda será apenas uma das alternativas possíveis, aplicáveis primordialmente quando sua manutenção causar riscos a valores e princípios sociais tomados como mais importantes do que o desenvolvimento das posições em jogo.
O Direito aberto estimula a criatividade, o conflito de ideias, a pluralidade de posições, pois coloca o desenvolvimento do ser humano (mais ou menos nos moldes propostos pelos direitos humanos) em primeiro lugar, compreendendo tudo o mais como parte do seu mundo cultural (economia, o próprio Direito, o Estado etc.) e como tal servindo primordialmente a seu desenvolvimento.
Poetas como Walt Whitman e prosadores como Warat nos ensinam que não há democracia sem encontros, e nenhum encontro é possível sem abertura. Tendo o Direito como espaço privilegiado de discussão dos problemas e conflitos sociais – ou seja, encontros –, cultivar a compreensão representa substituir a obsessão do fêcho pela "obsessão" do entendimento. Não que este seja sempre possível nem muito menos que se transforme numa obsessão, como é a do Direito atual pelo fecho. "Obsessão", para o Direito aberto, tem a ver com aquele engajamento sincero e às vezes até angustiante na busca por acordos possíveis, mesmo reconhecendo-se que às vezes a única solução, ainda que temporariamente, é evitar o conflito – não resolvê-lo – ou dar a cada qual ao menos parcialmente o que pede.
Indo um pouco mais além no exercício de futurismo, penso no processo como um encontro de histórias, necessariamente dinâmico e aberto. O Direito do fêcho projeta no processo sua obsessão através da exigência de um corte na histórica, representado pela construção artificial – e pouquíssimo útil para confrontação de conflitos complexos – de um ponto de partida (a narração "fática" na petição inicial). Do corte necessário surgem os pedidos impreterivelmente pré-definidos e coerentes.
Ocorre que, por vezes, atribuir a melhor solução a um conflito (seja permitindo que ele se prolongue, seja resolvendo-o) exige compreender reminiscências histórias que as próprias partes desconhecem ou às quais davam pouca importância no inicio da lide. Penso num exemplo complexo, mas prático. Um menino abandonado logo após o nascimento pela mãe, rejeitado por orfanatos e que se vê, desde tenra idade, lançado à rua. Imaginemos que esse menino, certo dia, pratique um assalto a um transeunte. Para o Direito do fêcho, a solução da questio é muito simples: aplicação cumulativa e subsuntiva do ECA e do CP. Mas aí emerge a questão: será que segregar essa pessoa significa resolver o problema? E a responsabilidade do Estado e da sociedade que se omitiram quando deveriam prestar condições dignas para que esse ser humano se desenvolvesse? Ou seja, a resolução do problema exige a atribuição de responsabilidade não apenas ao "indivíduo" que teve sua história propositalmente "recortada", mas igualmente ao Estado e à sociedade. Atribuir responsabilidade não é sinônimo de punir, mas de tratamento, reeducação, formação de novas posturas (inclusive políticas públicas e relações sociais) que tencionem formar cidadãos, e não meninos na rua. Em outras palavras, um processo, por mais simples que pareça ser, é sempre e inexoravelmente o retrato de um contexto social e histórico em movimento que, se não sofrer intervenção, continuará a gerar mais e mais confrontos "pseudo-recortáveis". Não que os conflitos entre direitos individuais inexistam e que a melhor forma de resolvê-los ainda seja preservando-se a vida privada, mas o próprio surgimento dos processos de massa (envolvendo interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos), paradigma ainda não absorvido em toda sua complexidade e possibilidades pela nossa formação jurídica, confessa que algo precisa mudar.
Enfim, para que possamos atingir a democracia enquanto amor (encontros livres e abertos), precisamos dar corpo a um Direito aberto. Para tanto, faz-se necessário juntar responsabilidade e devaneio, formando uma mistura complexa, plural e, acima de tudo, compreensiva (e não "normativa", "hierarquizante" ou preocupada com a "decidibilidade").