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Da repetição de indébito tributário referente a tributo lançado por homologação.

Uma síntese da crítica doutrinária e consolidação jurisprudencial após a edição da Lei Complementar n° 118/2005

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20/07/2009 às 00:00
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3 da lei complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005

Traçadas as linhas gerais acerca da decadência e prescrição no Direito Tributário, passa-se agora à abordagem do quadro temporal que, após a edição da lei complementar n° 118, circunscreve a ação de repetição de indébito tributário. Para tanto, repisar-se-á aqui as manifestações doutrinárias e, primordialmente, jurisprudenciais manifestadas após a sua vigência.

Pois bem, de autoria do deputado federal Antonio Carlos Magalhães Neto, a Lei complementar nº 118, Diário Oficial da União de 9 de fevereiro de 2005, veio à lume no proscênio jurídico para adaptar o Código Tributário Nacional à nova Lei de Falências, tendo introduzido alterações nos seus artigos 133, 174, 185, 186, 187, 188 e 191, bem como acrescentado os artigos 155-A, 185-A e 191-A.

No entanto, o legislador federal aproveitou-se do texto legal em questão para veicular norma aparentemente interpretativa em seu bojo, no seu art. 3º, ao qual foi conferido efeito retroativo pelo art. 4º da mesma lei, modificando regramento atinente à prescrição da ação de repetição de indébito tributário a ser manejada pelo contribuinte (Arts. 150, § 1º, e 168, I, do CTN).

Prescindindo da análise respeitante às adaptações relativas ao novo regime falimentar ora vigente, os supramencionados artigos 3º e 4º da LC 118/05 consubstanciam-se, segundo uníssonas manifestações doutrinárias, em instrumentos de interferência do Poder Legislativo no exercício da função jurisdicional, constitucionalmente atribuída, enquanto típica, ao Poder Judiciário (Art. 2º, da CF/88).

Isto porque, ao estabelecer que a extinção do crédito tributário, no que tange aos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, ocorre no momento da efetivação do pagamento antecipado de que trata o § 1º, do artigo 150, do CTN, o legislador manifestamente prejudicou a interpretação anteriormente consolidada no colendo Superior Tribunal de Justiça [33], segundo a qual, como já mencionado, a extinção do crédito tributário somente se daria após o transcurso do lapso temporal atinente à homologação tácita prevista no § 4º do mesmo artigo (Tese dos "cinco mais cinco").

De fato, publicada a lei em comento, vociferaram os doutrinadores contra esta, ressaltando o seu real objetivo: privilegiar o Poder Executivo (Fazenda Pública), reduzindo o prazo prescricional posto ante a pretensão do contribuinte lesado pelo adimplemento de indébito tributário, resguardando, de forma reflexa, a arrecadação tributária e, conseqüentemente, a busca incessante por superávits primários.

Kiyoshi Harada insurgiu-se nos seguintes termos:

Entretanto, o fisco acionou o astuto legislador que, por meio da chamada interpretação autêntica, tentou reduzir o prazo prescricional da ação de restituição do indébito, invariavelmente, para cinco anos, fixando o seu termo inicial para a data do pagamento antecipado, independentemente de sua homologação que resultaria na constituição do crédito tributário. [34]

O trecho transcrito expõe a contrariedade da majoritária doutrina [35] ao objetivo colimado pelo legislador quando da edição do diploma legislativo em tela, repita-se: resguardar os cofres públicos contra o legítimo exercício do direito de ação pelo contribuinte que fora prejudicado pelo pagamento de tributo em desacordo com os critérios constantes da regra matriz de incidência, dispostos na respectiva norma legal.

3.2 Do Quadro Prescricional Anterior à Edição da LC nº 118/05

No escopo de mais bem aclarar as conseqüências do texto de lei objeto desta análise, cabe tecer maiores considerações a respeito do fenômeno da prescrição da ação de repetição de indébito tributário antes e, em tópico subseqüente, depois da publicação da lei complementar nº 118/05.

Como já afirmado (item "2.3.2"), a tese que reinava absoluta no colendo Superior Tribunal de Justiça era a chamada dos "cinco mais cinco"; isto porque, mediante simples interpretação literal (a ser mais bem explicada em seguida) dos artigos 156, VII, 168, I, e 150 §§ 1º e 4º, todos do CTN, concluíram os doutos Ministros especializados na seara do Direito Público que a extinção do crédito tributário só ocorreria quando da formalização da homologação expressa (art. 150, § 1º) ou tácita (art. 150, § 4º) do pagamento antecipado, iniciando–se a partir deste momento (Art. 168, I, c/c art. 156, VII) o prazo prescricional. Tal posicionamento jurisprudencial foi consequência de um árduo processo dialético doutrinário, forma legítima de solução das controvérsias jurídicas, que não deve ser malferida pela via transversa da interpretação autêntica.

Deveras, anteriormente coexistiam duas teses acerca do prazo prescricional a ser observado no que tange à manifestação, perante o Judiciário, da pretensão à repetição de indébito tributário pago pelo contribuinte:

A primeira corrente, sustentada pelo professor luso-brasileiro Alberto Xavier e pelo professor paulista Marco Aurélio Greco, afirma que o prazo para se pleitear a repetição de indébito seria de 05 anos contados da extinção do crédito tributário (art. 168 do CTN), no entanto, para esta corrente, a extinção do crédito tributário se daria com o efetivo pagamento. A segunda corrente, sustentada pelo professor Sacha Calmon Navarro Coelho e pelo mestre Paulo de Barros Carvalho, sustenta que realmente o termo inicial para contagem do prazo decadencial seria da extinção do crédito tributário. Todavia, nos casos dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, a extinção do crédito tributário sempre se dá com a homologação tácita, ou seja, após o decurso de 05 anos da ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4º, do CTN). [36]

A primeira das teses era a que outrora predominava no Supremo Tribunal Federal, quando ainda investido na função de guardião do ordenamento infraconstitucional, sendo também posteriormente sustentada pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça [37].

Entretanto, a Segunda Turma da referida Corte, em leading case apreciado no ano de 1994, passou a aplicar o prazo de 10 (dez) anos [38].

Em solução à controvérsia instaurada no seio da Corte, a sua Primeira Seção de Direito Público, em julgamento de Embargos de Divergência, consolidou a tese mais condizente com a literalidade dos dispositivos do Código Tributário Nacional que versam sobre a matéria, restando pacificada a "tese dos Dez anos" para a propositura de ação de repetição de indébito tributário relativo a tributo lançado por homologação [39].

Destarte, tendo em vista que a controvérsia em questão dizia respeito à legislação infraconstitucional, encontrou-se definitivamente solucionada pela Corte constitucionalmente competente para a interpretação daquela, o STJ, quedando-se afastada a primeira das teses supracitadas (prescrição em cinco anos), obviamente a defendida pela Fazenda Pública.

3.3 Da Situação Configurada Após a Edição da LC nº 118/05

Solidificado o posicionamento do colendo Superior Tribunal nos termos expostos no tópico anterior, as representações judiciais das Fazendas Públicas federal, estaduais e municipais viram-se de mãos atadas, haja vista que a alegação da prejudicial de mérito sob análise (prescrição), em ação de repetição de indébito de tributo sujeito a lançamento por homologação, passou a ser de toda infrutífera, uma vez que certamente sempre afastada em última instância.

Ante a tal situação, de acordo com o exposto pela doutrina, o Poder Legislativo, solidário para com o Poder Executivo e seu objetivo de manutenção da arrecadação tributária, editou a lei complementar ora em discussão. Pertinente a transcrição, uma vez mais, do que dispõe o seu artigo 3º, in fine:

Art. 3º Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei.

Como claramente se vê, a pretexto de solucionar controvérsia jurídica já devidamente resolvida pelo Poder estatal competente (o Judiciário), supostamente interpretando os dispositivos do Código Tributário Nacional que menciona, a lei complementar nº 118 inovou no universo jurídico, restabelecendo o vetusto entendimento do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, que sufragava o prazo prescricional de cinco anos para a repetição de indébito tributário.

Ana Carolina Dias Lima Fernandes, promotora de justiça no Estado de Sergipe, ao expor seu entendimento a respeito, afirma:

Percebe-se, portanto, nitidamente, que o comando normativo em tela inova no plano normativo, na medida em que retira da disposição interpretada o sentido até então extraído pelo STJ. Resta claro o propósito de alterar, pela via legislativa direta, o entendimento até então dominante na Corte guardiã da legislação federal pátria. Retoma-se, assim, através dessa lei, o anterior entendimento do STF (quando ainda detinha a função de tutor da legislação federal), inicialmente acatado pelo STJ, de que a contagem do prazo prescricional para a ação de restituição de indébito, no caso do autolançamento, se iniciaria a partir da data do pagamento. [40]

Pois bem, com a edição da lei em comento, via de conseqüência, restou inserto no ordenamento jurídico-tributário nacional o prazo prescricional de cinco anos para a formalização de pleito restituitório referente a tributo sujeito ao lançamento por homologação, uma vez que expressamente disposto que a extinção do crédito tributário dar-se-á no momento da antecipação do pagamento devido (art. 150, § 1º, do CTN). Em assim sendo, "... os contribuintes deverão estar atentos à nova legislação, para que não percam seus créditos junto às Fazendas Públicas da federação." [41]

Foi esta a situação jurídica efetivamente objetivada pelo legislador complementar. No entanto, como será mais bem aclarado em seguida, o Superior Tribunal de Justiça já logrou modificar a situação ora exposta, mediante a delimitação do alcance do artigo 3º do texto legal em tela.

3.4 Do Suposto Caráter Interpretativo

Agora adentrando no ponto fomentador da discórdia circundante à lei complementar nº 118/05, cuja análise não se poderia aqui prescindir, seu artigo 3º (terceiro), já transcrito, foi editado supostamente no intuito de conferir mera interpretação aos artigos 150 e 168 do Código Tributário Nacional. Com base nessa arrevesada delimitação de alcance e sentido, o artigo 4º (quarto) da mesma lei pretendeu conferir efeito retroativo à modificação legislativa veiculada, fulminando os prazos prescricionais cujo transcurso havia iniciado antes da publicação do texto complementar em comento.

Principiemos dizendo que a esmagadora maioria dos juristas pátrios discorda da legitimidade da interpretação legislativa ou autêntica, qualidade supostamente caracterizadora da lei complementar nº 118. Aliás, muitos deles negam até mesmo a existência de tal modalidade de interpretação.

Carlos Maximiliano, já na primeira metade do século XX, manifestou a sua discordância em relação ao labor interpretativo em comento:

Não há propriamente interpretação autêntica; se o Poder Legislativo declara o sentido e alcance do texto, o seu ato, embora reprodutivo e explicativo de outro anterior, é uma verdadeira norma jurídica, e só por isso tem força obrigatória, ainda que ofereça exegese incorreta, em desacordo com os preceitos basilares da Hermenêutica.

É feita a lei, seja qual for a sua espécie, a fim de concretizar o Direito. Torná-lo claro, expressivo, visível, positivo; se o não consegue por defeito de redação, falta-lhe o seu primeiro requisito, e a que lhe explica o conteúdo é a que realiza o objetivo colimado; portanto, constitui uma lei nova, mais do que a precedente, que resultara quase inútil, falha na prática.

Por outro lado, é quase impossível fazer uma norma exclusivamente interpretativa, simples declaração do sentido e alcance de outra; em verdade, o que se apresenta com esse caráter, é uma nova regra, semelhante à primeira e desta modificadora de modo quase imperceptível. [42]

Roque Antonio Carraza, em comentário ao artigo 106 do Código Tributário Nacional, também se posiciona pela impropriedade e inexistência das leis interpretativas:

Há quem queira – seguindo na traça do art. 106, I, do CTN – que a lei tributária interpretativa retroage até a data da entrada em vigor da lei tributária interpretada. Discordamos, até porque, no rigor dos princípios, não há leis interpretativas. A uma lei não é dado interpretar uma outra lei. A lei é o direito objetivo e inova inauguralmente a ordem jurídica. A função de interpretar leis é cometida a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica a lei aos casos concretos submetidos à sua apreciação, definitivamente e com força institucional. [43]

Pode-se também trazer à colação, apesar de vencido, o voto proferido pelo ilustre Ministro Sepúlveda Pertence na Ação Direta de Inconstitucionalidade na qual restou assentada a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do artigo 106, I, do CTN, bem como, via de conseqüência, a posição da Corte em relação à higidez das leis interpretativas, senão vejamos:

Para mim, no sistema brasileiro, lei interpretativa ou é inócua ou é lei nova. Se é mera interpretação de lei preexistente e veicula – se isso é possível – a única interpretação admissível dessa lei preexistente, a lei interpretativa vale exatamente o que valer a interpretação que traduz, isto é, nada vale, porque, evidentemente, se é a única interpretação, ou não, a afirmação, no caso concreto, continuará entregue ao Poder Judiciário. Se, no entanto, a título de lei interpretativa, a segunda lei extrapola da interpretação, é lei nova, que altera a lei antiga, modificando-a ou adicionando-lhe normas inexistentes. E assim há de ser examinada. [44]

Pois bem, com fulcro no posicionamento doutrinário supra-exposto, parece ser correto o entendimento segundo o qual, em verdade, não há leis substancialmente interpretativas, haja vista que, ou simplesmente declarará o que já está contido na lei interpretada, sendo de todo vazia, ou alterar-lhe-á o conteúdo normativo, inovando no ordenamento jurídico; não podendo, neste último caso, retroagir para atingir casos pretéritos (art. 5º, XXXVI, CF/88). Concluindo, mais uma vez valendo-se do ensinamento de Carlos Maxiliano:

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(...) se a lei tem defeitos de forma, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o caráter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado, a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juízes; não tem mais razão de ser, coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje. [45]

Entretanto, não obstante a manifesta predominância do posicionamento retromencionado, o Supremo Tribunal Federal, como já mencionado, declarou a constitucionalidade das leis interpretativas (art. 106, do CTN), restando assente a subsistência da interpretação autêntica no cenário jurídico brasileiro. É com base nessa decisão que, mercê de amplamente criticada pela doutrina, o Poder Legislativo ainda lança mão desse expediente.

Aclarada a possibilidade jurídica de edição de leis interpretativas na ordem jurídica nacional (STF), cumpre discorrer sobre o suposto caráter interpretativo do artigo 3º da lei complementar nº 118/2005.

Em verdade, mercê do pretendido pelo legislador, o artigo em comento nada tem de interpretativo. Muito pelo contrário. Foi responsável por uma considerável alteração no plano jurídico-tributário, haja vista que determinante de um novo prazo prescricional (cinco anos) para as ações de repetição de indébito tributário, manifestamente prejudicando a interpretação anteriormente consolidada no Superior Tribunal de Justiça.

Em artigo recentemente publicado, Maria Beatriz Conde Pellegrino e Alisson Thomaz Bretas Leôncio expuseram o entendimento ora predominante na doutrina, posteriormente proclamado pelo STJ, corroborando a tese aqui em exposição, senão vejamos:

Nos termos do entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, o § 1º, do art. 150 do Código Tributário Nacional estabelece uma condição para a extinção do crédito tributário, qual seja a ulterior homologação do pagamento antecipado por parte do fisco. Daí que enquanto pendente tal condição resolutiva, definitivo não é o pagamento e, portanto, inviável a repetição. Já a norma do inc. I, do art. 168, é clara no sentido de que a extinção do crédito tributário é o ato que possibilita a ação de repetição de indébito, pelo quê se a norma pretensamente interpretativa acaba por "revogar" parte do § 1º, do art. 150, tem-se certo que de norma interpretativa não se trata. (...) [46]

De fato, "temos que o artigo 3º editado não pode ser norma de caráter interpretativo, uma vez que modificou substancialmente o dispositivo que pretendia interpretar (no caso, o inc. I do art. 168, do CTN)" [47], podendo falar-se, nos temos do artigo 2º [48], § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, em revogação do § 1º, do artigo 150, do Diploma Tributário Nacional.

Destarte, resta clara a insubsistência do caráter interpretativo do artigo 3º da lei complementar nº 118/2005, intentado pelo legislador, uma vez que as alterações na disciplina da prescrição em pleito restituitório são manifestas, não havendo como sustentar mera interpretação dos artigos 168 e 150 do Código Tributário Nacional. Importante deixar assente tal noção, uma vez que nesta se fundamentou a declaração de inconstitucionalidade, em controle difuso pelo STJ, do artigo 4º da lei complementar sub examine.

3.5 Do cotejo da Lei Complementar nº 118/05 com a Constituição Federal

3.5.1 Da constitucionalidade formal da lei complementar nº 118/05

Principiando por uma abordagem geral acerca da adequação da lei complementar nº 118 ao texto constitucional, deve-se assentar que, do ponto de vista formal, a lei em tela encontra-se em conformidade com os ditames da Constituição Federal.

Deveras, a doutrina é quase que uníssona no que tange à recepção do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), pela nova ordem constitucional de 1988, com o status de lei complementar, haja vista que a disciplina das normas gerais em matéria tributária, especialmente no que tange à decadência e prescrição, compete à esta modalidade de lei (artigo 146, III, "b", CF/88).

Mercê da discordância do professor Roque Antonio Carraza em relação à tese em questão, divergência esta fulcrada no ensinamento construído pela "corrente dicotômica, liderada por Geraldo Ataliba" [49], aquele mesmo doutrinador aclara que o seu posicionamento não é sustentando pela doutrina tradicional [50], entendendo esta que

(...) se o Código Tributário Nacional (lei ordinária) regulava, por exemplo, a matéria de normas gerais de direito tributário, e se a Constituição de 1967 (como continua fazendo a atual) passou a exigir lei complementar para regular essa matéria, resulta que o Código Tributário Nacional só pode ser alterado por lei complementar. Não porque ele seja uma lei complementar, mas porque a Constituição, agora (desde 15-1-1967) exige lei complementar para cuidar do assunto. [51]

Outrossim, com relação à competência para legislar, não se pode deixar de reconhecer a observância ao artigo 24, inciso I, da Constituição Federal, que estabelece competir à União legislar em matéria tributária, estando tal competência adstrita ao regramento geral (§ 1º do mesmo artigo).

Feitas estas considerações, inafastável que, sob o enfoque exclusivamente formalístico, a lei complementar nº 118/2005 é constitucional, uma vez que, tendo alterado, via suposta interpretação, dispositivos do Código Tributário Nacional, adequou-se aos supramencionados dispositivos constitucionais (Arts. 24, I, e 146, III, "b") [52].

3.5.2 Da inconstitucionalidade do seu artigo 4º

Exposta a real intenção do Legislador, bem como a primordial conseqüência da edição da lei complementar nº 118/05 - alteração, via suposta interpretação, de dispositivos do CTN, prejudicando jurisprudência outrora consolidada -, necessário abordar o seu artigo que fomentou as mais ásperas críticas por parte da doutrina.

O artigo 4º da lei complementar em testilha expressamente dispõe:

Art. 4º. Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional. (grifo nosso)

Pertinente a transcrição do citado artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, in fine:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados. (grifo nosso)

Pois bem, da análise dos artigos acima colacionados se percebe que o legislador intentou atribuir efeito retroativo ao artigo 3º da lei complementar nº 118, isto com base no suposto caráter meramente interpretativo - já devidamente afastado (Item "3.4") - deste dispositivo. Mercê da subsistência do artigo 106 do Código Tributário Nacional no ordenamento jurídico pátrio, e, em conseqüência, também das leis interpretativas (STF. Item "3.4"), a doutrina e a jurisprudência não demoraram a apontar a inconstitucionalidade da pretensão retroativa estampada no suscitado artigo 4º da lei complementar em análise.

3.5.2.1 Das manifestações da doutrina

Não obstante o pretendido caráter interpretativo já ter sido objeto de análise (Item "3.4"), importante destacar a contrariedade da doutrina pátria em relação ao escopo retroativo da lei complementar em tela, trazendo à colação, em tal mister, o ensinamento de R. Limongi França, jurista responsável pela elaboração de obra de peso sobre a irretroatividade das leis e o direito adquirido.

De fato, o suscitado autor, após assentar a natureza constitucional, na ordem jurídica brasileira, do princípio da irretroatividade das leis [53], aborda a controvérsia atinente às leis interpretativas sob o enfoque decorrente de cinco indagações:

a saber: a) é possível ao nosso Poder Público fazer leis interpretativas? b) a lei interpretativa, para assim ser considerada, deve ter conteúdo igual ao da lei interpretada? c) existe a possibilidade de conflito entre ambas? d) que sucede com as leis aparentemente interpretativas? e e) existe Direito Adquirido, de acordo com uma interpretação infirmada pela lei interpretativa? [54]

A primeira das questões já foi devidamente respondida (Item "3.4"), sendo certo que o autor também se posiciona pela subsistência da interpretação autêntica no cenário jurídico nacional.

Com relação ao segundo questionamento, afirmando, em síntese, a necessidade de afastamento da obscuridade da lei interpretada, preleciona que "... o texto interpretador, por sua própria natureza, será sempre diverso do que aquele que visa elucidar" [55], sob pena, é o que parece, de ser absolutamente inócuo. Não obstante a maestria do ensinamento, este parece desaguar na tese da inexistência da lei efetivamente interpretativa, sustentada por Carlos Maximiliano [56] e Roque Antonio Carazza [57].

No que tange à terceira problemática, o jurista, após assentar a noção de impossibilidade de confronto da lei interpretada para com a lei interpretativa [58], sustenta, ao que tudo indica, a desnecessidade de se considerar a possibilidade de regramento dos fatos pretéritos pela nova interpretação, uma vez que "... se nada faz de novo, não há como falar em retroação, pois o que existe é a própria ação ex nunc da lei interpretada, e não a força ex tunc da lei interpretativa" [59].

Deveras, se realmente meramente interpretativa, não há porque pensar em retroação da lei veiculadora da interpretação, massim em eficácia da lei interpretada, com base no alcance e sentido tidos como corretos pelo legislador quando do exercício do labor interpretativo via construção legislativa.

Outrossim, ao tratar das leis aparentemente interpretativas, "a resposta é evidente. Não se trata de lei interpretativa, senão de lei nova. O conflito se instaura e se resolve pelos princípios especializados referentes à matéria" [60].

Por fim, pede-se vênia para transcrever a análise do autor acerca da existência de direito adquirido à "interpretação" que prevalecia anteriormente à edição de eventual lei interpretativa:

Com efeito, uma lei está em vigor até que outra a modifique ou revogue (Lei de Introdução, art. 2º). Ora, o pressuposto é de que a lei é clara e de que, portanto, é válida a interpretação que se lhe dá. Por outro lado, é comum ser uma lei passível de mais de uma interpretação e, uma vez que esta se processe dentro das regras de hermenêutica que as informam, não há como desconhecer o Direito Adquirido segundo essa perspectiva. (...)

Mas distinguimos.

É preciso que, efetivamente, a interpretação se tenha processado dentro das boas regras de hermenêutica, regras essas da própria lei, da Doutrina e da Jurisprudência. Com efeito, não pode haver Direito Adquirido, segundo uma possível compreensão estapafúrdia e arbitrária, ainda que de norma acentuadamente obscura. [61]

Com fulcro nas lições supra-expostas, resta reafirmar que de forma alguma o artigo 3º da lei complementar nº 118/05 é passível de ser considerado meramente interpretativo, haja vista que, em síntese, conflita com os artigos do Código Tributário Nacional que pretensamente interpretou, tendo tacitamente os revogado (Art. 2º, § 1º, da LICC), sendo, de forma inconteste, apenas aparentemente interpretativa. Ademais, como bem exposto na lição de Limongi França, é absolutamente lícito se falar em violação a direito adquirido (Art. 5º, XXXVI, CF/88) do contribuinte à interpretação anteriormente vigente, haja vista que esta era a tida como a mais correta pela Corte Judicial competente (STJ), uma vez que decorrente da literalidade dos dispositivos ora supostamente interpretados (Arts. 150 e 168 do CTN).

Em conclusão, é nessa fundamentação que a moderna doutrina buscou supedâneo à sua insurgência contra a pretensão retroativa do artigo 3º da lei em comento, encartada no seu artigo 4º, vergastando, de forma ferrenha, a constitucionalidade destes dispositivos [62][63].

Ademais, como já exaustivamente ressaltado, afora a questão do fictício caráter interpretativo da norma, esta padece de vícios atinentes à observância à independência dos Poderes da República (Art. 2º, CF/88), uma vez que é manifesta a intenção do legislador em prejudicar a atuação do Poder Judiciário na matéria (prazo prescricional para repetição de indébito), à segurança jurídica dos contribuintes e à efetividade da administração [64].

Estes os argumentos sobre os quais se assenta o inconformismo do meio jurídico-científico em relação à lei complementar ora em análise; fundamentos estes que, com todo o respeito às opiniões em contrário, entremostram-se de todo corretos.

3.5.2.2 Das manifestações jurisprudenciais relativas à lei complementar nº 118/2005

Publicada a lei complementar nº 118/2005, as representações judiciais das Fazendas Públicas passaram, de imediato e legitimamente, a lançar mão de suas disposições (Arts. 3º e 4º), sustentando a prejudicial de mérito em questão (prescrição) nas ações de repetição de indébito tributário relativas a tributos sujeitos ao lançamento por homologação.

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, guardião máximo da legislação infraconstitucional brasileira, não demorou a escoimar, na medida do juridicamente possível, os vícios até aqui incessantemente destacados.

De fato, ante a pretensão de fazer retroagir os efeitos do seu artigo 3º aos casos ainda pendentes de julgamento, a colenda Corte se posicionou, em um primeiro momento, pela aplicação do novo regramento (Art. 3º) tão–somente às ações ajuizadas após a entrada em vigor da lei complementar nº 118. O acórdão ora transcrito ilustra este primeiro entendimento sufragado:

PROCESSUAL CIVIL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO DEMONSTRADO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ, NA APRECIAÇÃO DO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF. COMPENSAÇÃO. TRIBUTOS DE DIFERENTES ESPÉCIES. SUCESSIVOS REGIMES DE COMPENSAÇÃO. APLICAÇÃO RETROATIVA OU EXAME DA CAUSA À LUZ DO DIREITO SUPERVENIENTE. INVIABILIDADE. JUROS. SELIC. LEGALIDADE. PRECEDENTES

(...)

3. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).

(...)

5. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a "interpretação" dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.

6. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Todavia, no julgamento do ERESP 327.043/DF, a 1ª Seção entendeu que o dispositivo é aplicável às ações propostas a partir da data da sua vigência, com o que ficava dispensada a declaração de sua inconstitucionalidade. Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF.

(STJ - REsp 818336 / SP – PRIMEIRA TURMA – MIN. TEORI ALBINO ZAVASCKI – DJU 17/04/2006. Grifo nosso)

Como bem se observa, o STJ principiou determinando a aplicação da lei complementar nº 118 às ações posteriores à sua vigência, no que dispensou a análise de sua constitucionalidade [65]. Contudo, a ressalva feita pelo ilustre relator, Min. Teori Albino Zavascki, foi determinante para a afetação da controvérsia à apreciação da Corte Especial do guardião da legislação infraconstitucional pátria.

Deveras, em meados do ano-calendário de 2007, frente a toda insegurança proporcionada pela publicação da lei complementar aqui vergastada, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de argüição de inconstitucionalidade formulada em embargos de divergência interpostos em recurso especial, sustentando ser apenas aparentemente interpretativo o artigo 3º da lei em comento, posicionou-se definitivamente pela inconstitucionalidade do seu artigo 4º, restando consolidada a impossibilidade de retroação do novo prazo prescricional (Art. 3º) aos casos anteriores à vigência do texto complementar em testilha. Importante a colação de trecho da ementa do julgamento em questão:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI INTERPRETATIVA. PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A REPETIÇÃO DE INDÉBITO, NOS TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA.

(...)

4. Assim, tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.

5. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).

6. Argüição de inconstitucionalidade acolhida.

(STJ - AI nos EREsp 644736 / PE – CORTE ESPECIAL – REL. MIN. TEORI ALBINO ZAVASCKI – DJU 27/08/2007. Grifo nosso)

Com o pronunciamento acima colacionado, a Corte delimitou a abrangência do novo prazo prescricional, para as ações de restituição de indébito relativas a tributos lançados por homologação, às situações concretizadas - leia-se: fatos geradores - após a sua vigência [66] (Art. 105, CTN). Ressalte-se que a declaração de inconstitucionalidade em tela se circunscreveu, infelizmente, tão-somente ao efeito retroativo pretendido pelo artigo 4º da lei, restando hígido o novo prazo prescricional constante do artigo 3º.

Pois bem, as decisões posteriores à declaração de inconstitucionalidade supramencionada têm se pautado no entendimento em questão. No entanto, ante a subsistência do artigo 3º da lei, surgiu a dúvida atinente à contagem do prazo prescricional quando se tratar de pagamento indevido (fato gerador do dever de restituir) concretizado anteriormente à publicação da lei complementar em tela (art. 105, do Código Tributário Nacional). A solução já fora proclamada pelo Superior Tribunal de Justiça.

De fato, declarada a inconstitucionalidade nos termos do acórdão supra-exposto, os Ministros que compõem as Turmas especializadas em Direito Público vêm delimitando o prazo prescricional das ações de repetição de indébito tributário, em se tratando de tributo lançado por homologação, nos seguintes termos:

(...)

Assim, na hipótese em exame, com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição do indébito é de cinco anos a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova.

(...)

(Voto proferido pelo Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, no julgamento do REsp 1038117 / PE – PRIMEIRA TURMA – DJU 24/04/2008. Grifo nosso)

Em conclusão, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça assentou a aplicação tão-somente prospectiva do novo prazo prescricional estabelecido no artigo 3º da lei complementar nº 118/2005, devendo ser atingidos pelos seus termos apenas os fatos geradores do dever de restituir (pagamentos indevidos) consolidados (Art. 105, do CTN) a partir de 9 de junho de 2005.

Em verdade, no que tange à aplicação do novel prazo, a solução preconizada pelo Ministro, supracitada, é a mais consentânea para com os ideais de justiça que informam a ordem jurídica nacional, sendo, deveras, a técnica interpretativa diuturnamente aplicada aos conflitos decorrentes do surgimento de prazo fatal mais estreito do que o outrora em vigor.

3.6 Das Conseqüências Para o Contribuinte e Para o Fisco

A título de complemento pragmático, com relação às conseqüências advindas da publicação da lei complementar nº 118, no que tange ao contribuinte, identificá-las não é labor dos mais tormentosos.

Deveras, em um primeiro momento, visualiza-se a principal delas, aquela que se manifesta em concreto perante o cidadão: a redução, via lei supostamente interpretativa, de um prazo fatal (prescrição da pretensão repetitiva de indébito) estabelecido em lei a seu desfavor. Com base nisto, cabe ao contribuinte, como já mencionado, permanecer alerta, zeloso para com a eventual necessidade de manifestação da suscitada pretensão em juízo, uma vez que até o presente momento o artigo 3º do texto legal em testilha permanece vigente, ainda tido como amoldado ao texto constitucional.

Afora a conseqüência concreta supramencionada, vislumbra-se uma mediata, qual seja: a instabilidade decorrente do exercício da atividade legislativa divorciado dos cânones principiológicos atinentes à segurança jurídica e à moralidade no desempenho das funções estatais; o primeiro deles, um verdadeiro princípio geral de Direito, o segundo, uma norma-princípio inferida do artigo 37 [67], caput, da Carta Magna.

Lançando mão, uma vez mais, do ensinamento de Kiyoshi Harada, este, ao expor a sua indignação em relação ao escopo do legislador quando da edição da lei em comento, textualmente afirmou:

O princípio da segurança jurídica pressupõe normas jurídicas estáveis, regulares e previsíveis, porque conformadas com os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Carta Política em nível de cláusula pétrea. A previsibilidade de normas jurídicas futuras é inerente ao sistema de segurança jurídica. Normas casuísticas e imprevisíveis, ditadas por legisladores idiossincráticos, que surgem do nada, na calada da noite, com toda a certeza, não se harmonizam com o sistema jurídico fundamentado na Constituição Federal, pelo contrário, são normas bastardas que devem ser repelidas e expurgadas do mundo jurídico. [68]

Realmente, a falta de lealdade do legislador para com o cidadão, que também não deixou de ser captada pelo jurista supracitado, acarreta um clima de insegurança no meio jurídico, haja vista que a noção de que nada se encontra consolidado, de que todo e qualquer instituto jurídico é passível de ser alterado pelo legislador, quando e como melhor lhe aprouver, coloca o jurisdicionado numa situação de absoluta incerteza quanto à higidez de seus direitos.

Outrossim, o desprestígio à moralidade administrativa é manifesto [69], haja vista que o ato legislativo em comento fora levado a cabo em prol da cupidez daqueles que administram os cofres públicos, em prejuízo, como já afirmado, da segurança jurídica do contribuinte.

Em verdade, vários outros exemplos podem ser trazidos à colação para ilustrar a reiteração do comportamento no mínimo censurável do legislador brasileiro: (i) a Emenda Passos Porto (EC nº 23/83), que "sepultou três teses de natureza constitucional proclamadas pela Corte Suprema" [70]; (ii) a Lei nº 11.051/04, que, por meio de seu artigo 6º, "a pretexto de explicitar o alcance da norma do caput do art. 40 da Lei 6.830/80, veio introduzir sorrateiramente o § 4º, dilatando o prazo de prescrição intercorrente, procurando driblar a jurisprudência dos tribunais" [71]; (iii) não obstante se tratar de ato do Poder Executivo, a Medida Provisória nº 2.183. de 2001, que intentou prejudicar três súmulas das Cortes Superiores (n° 164 e n° 618, ambas do STF e n° 69, do STJ) acerca dos juros compensatórios devidos no processo de desapropriação, em caso de imissão na posse [72]; estes dentre vários outros passíveis de menção.

Destarte, clara a perniciosidade da lei complementar nº 118 não apenas ao cidadão/contribuinte, mas também a ordem jurídica nacional como um todo, haja vista que, como bem sentido pela doutrina especializada, absolutamente em descompasso com a Constituição Federal e os princípios gerais de Direito, positivados estes ou não.

Por outro lado, pondo em foco a esfera de interesses da Fazenda Pública, inconteste o benefício decorrente do texto legal em exame, haja vista que, uma vez diminuído o prazo prescricional a ser observado pelo contribuinte quando da potencialidade do exercício do seu direito de ação (repetição de indébito), certamente o número de ações prejudicadas, e em vias de sê-lo, em virtude da alegação de prescrição com base nas disposições da lei complementar em tela será enorme. O intuito de resguardo à arrecadação fiscal e, via de conseqüência, aos superávits primários é indisfarçável.

Entretanto, despendendo uma análise mais acurada, é possível extrair decorrências não tão benéficas ao Fisco, ainda que sub color de meras especulações doutrinárias.

A título de ilustração, haja vista que descompromissado com um maior rigor conceitual (exposição do item "2.3.1"), interessante a conseqüência referente ao obstáculo anteposto à atividade fiscalizadora do Poder Público, uma vez que, ao estabelecer que a extinção do crédito tributário dá-se no instante da antecipação do pagamento, efetivado pelo contribuinte, o legislador acabou por extinguir a figura da homologação e, em conseqüência, do lançamento de ofício de eventual saldo devedor, haja vista que, obviamente, estando o crédito tributário extinto, nada há o que fiscalizar.

André Malta Martins, ao externar as suas conclusões a respeito da lei complementar em discussão, em artigo já trazido à colação, corrobora a tese supra-exposta:

Ao estabelecer que a extinção do crédito – antes provisória e agora definitiva – ocorre com o pagamento, assinalando o "dies a quo" do prazo prescricional da repetição de indébito, o legislador acabou com a figura da homologação do crédito e, portanto, impôs óbice à atividade fiscalizatória tendente a apurar tributo não pago. [73]

Em verdade, o raciocínio merece críticas, uma vez que a figura da homologação não se quedou extinta. De fato, o pagamento antecipado feito pelo contribuinte possui o condão de constituir, de forma imediata, eventual crédito declarado e não pago, ou pago a menor. Em tendo havido omissão quanto a valor que deveria ter sido declarado e não o foi, a respectiva Fazenda Pública ainda terá a seu favor o prazo decadencial para a constituição do crédito tributário a ser futuramente cobrado do contribuinte infrator (Item "2.3.1"). No entanto, como mencionado, a título de exemplificação, interessante trazer à exposição a tese do autor.

Além disso, há quem sustente que a mesma construção jurídica que culminou na redução do prazo prescricional para a ação de repetição de indébito tributário pode ser usada em relação à cobrança de crédito tributário, isso em homenagem ao princípio da isonomia:

se o pagamento feito fixa o início do prazo para a repetição daquilo indevidamente recolhido, o não pagamento há de demarcar o início do lapso para que a Fazenda Pública proceda à formalização da obrigação tributária (constituição do crédito tributário), já que se trata de condutas simetricamente antagônicas em relação ao mesmo fato, verso e anverso de um mesmo proceder. Restaria, pois, em situação de idêntica paridade a Fazenda Pública e o contribuinte, impondo-se, a partir do advento da Lei Complementar 118 de 2005, a eliminação da regra dos "cinco mais cinco" para ambos. Interpretação diversa escamotearia a preponderância dos interesses arrecadatórios do Estado, sobre o direito individual do contribuinte. [74]

Posta a tese em questão em cotejo com as teorias que circundam a decadência do direito atribuído ao Fisco de constituir eventual crédito tributário contra o contribuinte devedor, não se apresenta como imune a contestações. Contudo, louvável a intenção da autora de fazer valer o princípio da isonomia substancial entre as partes (Estado e contribuinte) da relação jurídico-tributária.

No entanto, reafirme-se que, tendo em vista a ausência de uma maior fundamentação teórica, as teses supramencionadas ainda encontram guarida tão-somente na incipiente doutrina a respeito da lei complementar objeto do presente estudo. Aguarda-se por alvissareira mudança de rumo, uma vez que o desânimo do contribuinte ante as investidas do Poder Público já há muito reclama uma reviravolta de nossos doutrinadores e, via de consequência, de nossos Pretórios.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CÂNDIDO, Elton Luiz Bueno. Da repetição de indébito tributário referente a tributo lançado por homologação.: Uma síntese da crítica doutrinária e consolidação jurisprudencial após a edição da Lei Complementar n° 118/2005. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2210, 20 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13176. Acesso em: 25 abr. 2024.

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