4. Conclusão
Aclarada toda a injustiça concretizada por meio da lei complementar nº 118/05, bem como o quadro doutrinário e jurisprudencial posteriormente consolidado, cumpre relembrar o ensinamento de Norberto Bobbio, para quem é perfeitamente possível uma norma jurídica ser válida sem ser justa:
Aqui não é preciso ir muito longe para buscar exemplos. Nenhum ordenamento jurídico é perfeito: entre o ideal de justiça e a realidade do direito há sempre um vazio, mais ou menos grande, dependendo dos regimes. Certamente o direito, que em todos os regimes de um certo período histórico e em alguns contemporâneos que consideramos civilmente ultrapassados, admite a escravidão, não é justo, mas nem por isso é menos válido. Não faz muitos anos vigoravam leis raciais que nenhuma pessoa racional estaria disposta a considerar justa e, não obstante, eram válidas. Um socialista dificilmente conceberá como justo um ordenamento que reconhece e protege a propriedade individual; assim como um reacionário dificilmente admitirá como justa uma norma que considere a greve lícita. E ainda, nem o socialista nem o reacionário terão dúvidas sobre o fato de que, em um ordenamento positivo como o italiano, tanto as normas que regulam a propriedade individual quanto as que reconhecem o direito de greve são válidas. 75
Com base no ensinamento do jurista peninsular, é inconteste a possibilidade de vigência de uma norma veiculadora de disposições absolutamente em descompasso com os ideais de justiça que devem, ou ao menos deveriam, guiar o mister legislativo.
Pois bem, no que tange à lei complementar em discussão, já é mais do que pacífico na doutrina especializada que a deslealdade do legislador em relação ao cidadão/contribuinte fora manifesta, e, ao que tudo indica, tal vício não decorreu dos "erros, impropriedades, atecnias, deficiências e ambigüidades (...)" 76 do legislador, mas sim do claro objetivo de garantir a sanha arrecadadora do Estado, manifestada, sem dúvida, através de lobby do Poder Executivo junto ao Congresso Nacional.
De fato, a completa ausência, por parte do legislador complementar, de racionalidade e observância a um mínimo de técnica quando da edição da lei complementar nº 118/05 decorreu do claro intuito de prejudicar a jurisprudência até então consolidada acerca da prescrição da ação de repetição de indébito tributário (tese dos "cinco mais cinco"), diminuindo o prazo prescricional em questão via canhestra interpretação. A sobreposição do interesse do Fisco, prescindindo às estampas de um mínimo de moralidade administrativa, sobre o legítimo direito individual do contribuinte foi gritante.
Ademais, o menosprezo a princípios do jaez da independência dos Poderes da República (Art. 2º, CF/88) e, principalmente, da segurança jurídica é ultrajante, e, em se repetindo a edição de leis dessa natureza, o cidadão ver-se-á cada vez mais inserto num ambiente jurídico pautado pela instabilidade, haja vista que posto na mira de um legislador absolutamente descompromissado com os princípios basilares que informam a ordem jurídica nacional, plenamente disposto a atender aos interesses escusos de um Poder Executivo preocupado apenas em garantir e aumentar a arrecadação tributária e, via de conseqüência, seus superávits primários.
Deveras, a incorreção, para se dizer o menos, do labor legislativo aqui guerreado resta ainda mais exposta quando cotejado com o ensinamento de Ricardo Aziz Cretton, para quem:
As idéias de razão, racional, racionalidade e razoável, razoabilidade, em suas variadas acepções, imbricam-se e se entrecuzam, desde os primórdios do pensamento jusfilosófico, com as de justo, justiça e equânime, eqüidade.(...) 77
Pondo-se em foco a jurisprudência por enquanto firmada a respeito, como se intentou demonstrar, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça assentou o seu posicionamento pela inconstitucionalidade do pretendido efeito retroativo (artigo 4°) a ser conferido ao artigo 3° da lei complementar n° 118/2005, sendo que, em vista disso, a tese que hodiernamente paira tranquila no âmbito fiscal é a de que o novo regramento só se aplica aos fatos geradores ocorridos após a vigência da lei complementar que o instituiu (LC 118/2005). No que respeita aos fatos geradores concretizados anteriormente à suscitada vigência, os prazos a ser observados obedecerão à vetusta "tese dos dez anos", entretanto, limitado ao novel limite de cinco anos imposto pela lei complementar n° 118.
Por outro lado, aguarda-se a possível manifestação do egrégio Supremo Tribunal Federal a respeito, rogando-lhe, aos ilustres Ministros, obstinação, firmeza e clareza de princípios, qualidades que sem dúvida ostentam, para que impinjam a pecha de inconstitucional não apenas ao artigo 4° da lei complementar epigrafada, já declarada no controle difuso, mas também ao seu artigo 3°, por violador dos princípios da independência dos Poderes da República, da segurança jurídica e, por sem dúvida, da moralidade administrativa.
Concluindo, até que se concretize a reação judicial aventada, só resta lamentar os objetivos imorais que deram azo à edição da lei complementar nº 118/2005, torcendo para que no futuro o Poder Legislativo, antes de se curvar aos anseios da "Máquina Administrativa", não prescinda do controle prévio de constitucionalidade e moralidade de eventual projeto de lei posto à sua apreciação, sob pena de se eternizar o discurso, infelizmente ainda marcado pela sua atualidade, de Celso Antonio Bandeira de Mello, para quem:
O Estado Brasileiro é um bandido. O Estado Brasileiro não tem o menor respeito pela outra parte, pelo cidadão. O Estado Brasileiro atua com deslealdade e com má-fé, violando um dos primeiros e mais elementar princípios do Direito, que é o princípio da lealdade e da boa-fé. O Direito abomina a má-fé. 78
Só resta aguardar, desejando a obsolescência das palavras do supracitado autor, isto sem nunca reservar-se ao silencio parcimonioso, permanecendo sempre em prontidão, ávidos por lançar tintas fortes sobre eventuais expedientes normativos desmoralizantes do ordenamento jurídico pátrio, infelizmente tão utilizados pelos Poderes Legislativo e Executivo das Pessoas Políticas integrantes da República Federativa do Brasil.
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