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Hermenêutica pós-giro linguístico

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23/07/2009 às 00:00
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3.A ciência do direito como Ciência Dogmática do Direito

Sob um enfoque filosófico o direito permite um sem número de aproximações gnosiológicas. Mas um aspecto parece ser possível afirmar que é ínsito a esse fenômeno cultural a que chamamos "direito": ele cuida de prescrever condutas para ordenar a vida social e, se houver perturbações nessa ordem social, estabelece os mecanismos para solucioná-las.

Por isso a professora Maria Helena Diniz afirma que a ciência do direito é um "saber tecnólogico" [35], e que seu problema central é a "decidibilidade", já que tem por escopo fundamental demonstrar que determinada decisão pode ser sustentada por uma determinada norma jurídica. As questões, continua Maria Helena Diniz, devem ser orientadas para uma solução.

Noutro dizer, os conflitos sociais devem ser, senão resolvidos, dado que o vencido provavelmente se manterá irresignado, ao menos encerrado. Trata-se de construir sistemas que permitam essa decibidilidade de forma pacífica, evitando que a situação se degenere mais ainda.

É por isso que o tema central dos ensaios de Paul Ricoeur são bastante sugestivos. Diz ele que a tese central de sua obra é que "a guerra é o tema lancinante da filosofia política, e a paz o da Filosofia do Direito". [36]

Não estou aqui assumindo uma postura ingênua. Claro que não se deve desconsiderar visões mais "realistas", ou "pessimistas", sobre o direito, como a que Leon Tolstói produziu ao afirmar que "as leis não foram feitas para atender à vontade da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder". [37]

No entanto, esta questão escapa aos limites deste trabalho, até porque é ideológica. Para o que nos interessa, nós temos uma ordem constitucional fundada, e é sobre ela que vamos trabalhar.

O direito, então, busca a paz social no sentido de decidir os conflitos intersubjetivos. Com esse desiderato, a Ciência do Direito se vale de dogmas, razão pela qual é também chamada de Dogmática Jurídica ou Ciência Dogmática do Direito [38].

O dogmatismo é considerado, neste passo, como uma proibição da negação dos pontos de partida. O direito tem certos pontos de partida que são aceitos como impossíveis de serem negados, sob pena de inviabilizar completamente o sistema.

Assim se dá, por exemplo, quando se considera a Constituição como a Lei Maior, que deve ser obedecida. Poderíamos, em sede filosófica, questionar o por quê, afinal de contas, de devermos obedecer à Constituição, considerando-a como lei suprema, à qual todas as outras devem amoldar-se. Mas a Dogmática Jurídica não faz isso. Aceita a supremacia da Constituição e o dever de obediência a ela como inegável ponto de partida da ordem jurídica.

Um dos dogmas de que a ciência do direito tem que valer-se, como aduz Tércio Sampaio Ferraz Junior [39], é a do "legislador racional". Não se trata do "legislador real", ou os homens e mulheres "de carne e osso" que foram eleitos para compor o parlamento, mas de um postulado dogmático, necessário e indispensável para a construção e funcionamento do sistema jurídico.

O "legislador real" pode sofrer críticas ácidas. O grande estadista alemão Otto Von Bismark, que capitaneou a unificação da Alemanha em fins do século XIX, disse em dura crítica ao parlamento que "leis são como salsichas; quanto menos as pessoas souberem como são feitas, melhor dormirão à noite". [40]

Mas se essas posições podem ser levadas à consideração da Política do Direito, não se aplicam, contudo, à Ciência Dogmática do Direito, que assume como inegável ponto de partida a racionalidade do legislador, e tem que trabalhar com o produto legislado.

Por isso o professor Tercio Sampaio Ferraz Junior aduz que, para a Dogmática Jurídica, o legislador é sempre uma figura singular, não importando a multiplicidade concreta dos parlamentos. Para o cientista do direito existe apenas o legislador, que é único também no sentido de que dele provêm todas as normas do ordenamento, independentemente das diferenças temporais e das diversas competências normativas, de sorte que se considera que todo o ordenamento deriva de uma única vontade.

Além disso, ele é uma figura permanente, que não desaparece com a passagem do tempo e com a morte das vontades concretas.

O legislador racional é consciente e onisciente, pois conhece todas as normas passadas e presentes, e tem ciência global do ordenamento. É finalista, pois ao editar uma norma sempre colima alcançar algum fim.

É ainda onipotente, pois só ele pode substituir suas próprias normas, e omnicompreensivo, pois o ordenamento por ele criado regula todas as condutas, explícita ou implicitamente, e é justo, pois jamais deseja uma injustiça. O que ocorre, por vezes, é que ele não é bem compreendido.

Na criação desse ordenamento o legislador é coerente, só havendo contradições e contraditoriedades aparentes, que são solucionadas pelas ferramentas da hermenêutica jurídica, bem como é operativo, pois todas as suas normas têm aplicabilidade, não havendo normas nem palavras inúteis. Nesse mesmo sentido, ele é econômico, isto é, nunca redundante, não usando palavras supérfluas, de sorte que ele também é preciso, pois sempre confere sentido técnico às palavras utilizadas.

Acrescento a essas idéias que também devemos admitir como inegável ponto de partida a figura do "juiz racional". Ocorre que o juiz também produz normas jurídicas, que poderão padecer também de contradições e contraditoriedades. Basta imaginar que uma conduta "p" pode ser tida por obrigatória em uma sentença que transite em julgado, decorrendo in albis o prazo para a rescisória, tornando-se, então imutável, enquanto que, em outro processo, com outras partes, versando sobre o mesmo tema, a sentença prescreva exatamente o contrário, ou seja, que aquela mesma conduta "p" não é obrigatória, transitando igualmente em julgado.

Teremos assim uma situação não tão incomum e que gera perplexidade, em que o sujeito S’ se viu obrigado à conduta "p", enquanto que o sujeito S’’ dela se viu desobrigado.

Tanto com relação a situações dessa natureza geradas pelo legislador quanto àquelas geradas pelo juiz, deve acudir em socorro o jurista, construindo um sistema que explique e organize essas contradições e contraditoriedades, como adiante procurarei demonstrar.

3.1.Teoria Geral do Direito

Na construção de um sistema ordenado qe explique e organize o direito positivado, tem o intérprete uma ferramenta não só útil como indispensável ao mister referido, que é a Teoria Geral do Direito e as construções por ela operadas.

Como aponta Tacio Lacerda Gama, reportando-se ao liame entre a Teoria Geral do Direito e o direito positivado,

[...] o vínculo entre esses dois planos de linguagem, porém, é mais próximo e intuitivo se comparado ao estabelecido entre a Dogmática e a Filosofia. Isso se deve ao fato de serem, ambas, espécies de linguagem jurídica descritiva, sendo a Teoria Geral do Dirieto composta por conceitos fundamentais, enquanto na Ciência Jurídica predominam os conceitos dogmáticos. Nesta relação, os conceitos do tipo B oferecem abstração e facilitam a sistematização das proposições de direito positivo, além de outorgarem maior legitimidade às proposições da Dogmática. [41]


4.Ordenamento e sistema

Em sua clássica obra intitulada "Teoria del Derecho: Fundamentos de Teoria Comunicacional del Derecho", Gregorio Robles Morchon aduz que o "ordenamento" é formado por textos normativos brutos, ou por "un conjunto de textos concretos que, añadiéndolos unos con otros, constituyen un gran texto, que es al que denominamos ordenamiento jurídico". [42]

Para este autor, então, o ordenamento é composto pelos textos jurídicos "brutos" (rectius: à espera de interpretação), em sua totalidade, ou seja, desde a Constituição, passando por leis ordinárias, atos oriundos do Poder Executivo, como decretos, até instruções normativas, provimentos, atos administrativos diversos, sentenças, que produzem normas individuais e concretas, e chegando até normas privadas, como os contratos. Enfim, toda a mais variada e ampla produção de textos prescritivos que ingressam em um grande conjunto chamado "ordenamento jurídico".

Assim, averba com precisão referido autor que

[...] Los textos concretos que componen el ordenamiento han ido surgiendo a lo largo del tiempo y han sido generados por distintos autores. El ordenamiento es un texto heterogéneo en cuanto a su origen, al tiempo y al próprio lenguaje utilizado. No es de extrañar que presente imperfecciones, lagunas, solapamientos, contradicciones, paralelismos infundados, disparidad de conceptos y concepciones. Téngase en cuenta que la maquinaria legislativa funciona todos los dias, y lo mismo sucede con la maquinaria judicial. Vivimos, ya desde hace decenios, una época de "motorización legislativa", de creación desmesurada de textos jurídicos que se van acumulando". [43]

Destarte, o "Diário Oficial" é publicado todos os dias úteis, e os variados boletins jurisprudenciais multiplicam-se. Com isso, todos os dias novas normas são introduzidas no ordenamento, ao passo que outras são dele expulsas. A cada momento, então, podemos falar em um ordenamento jurídico "vigente hoje", porque amanhã certamente teremos um ordenamento já algo diferente. Cabe, aqui, uma análise "sincrônica" e "diacrônica" do ordenamento, como apontaremos logo em seguida.

Por isso, Gregorio Robles Morchon afirma que o ordenamento é um texto "desorganizado", composto por todos os textos geradores de normas, colocados um depois do outro, sem conexão entre eles; [44] uma "mera acumulación de materiales normativos" tal como saem no Diário Oficial, ainda que possuam uma certa ordem, como a que encontramos nos códigos.

O que fazer diante desse acúmulo desorganizado de textos normativos?

Afirma o autor sob comento que

[...] La mente humana exige orden en al desconcierto, coherencia en la confusión. Ante el caos fenoménico del mundo de la naturaleza, se ha inventado la física, que pone orden y concierto en el mundo externo. La física permite que nos aclaremos con lo que sucede a nuestro alrededor, posibilita que presentemos el mundo de la realidad natural como un todo ordenado. Un cometido parecido desempeña en el Derecho la llamada ciencia jurídica [ou] dogmática jurídica. [45]

E é à ciência jurídica ou dogmática jurídica a quem cabe a tarefa de "interpretar el texto jurídico en bruto y presentarlo sistematizadamente y de manera depurada en un texto jurídico elaborado que se llama sistema". [46]

Ora, Vilém Flusser lembra que um sistema nada mais é do que um conjunto de elementos que se relacionam de acordo com certas regras. A soma desses elementos constitui o repertório do sistema, enquanto que a soma das regras constitui a estrutura do mesmo. [47]

Desta maneira, o sistema é resultado da elaboração doutrinal ou científico do texto jurídico "em bruto" (os elementos relacionados entre si de acordo com as regras de estrutura). O sistema jurídico reflete o ordenamento, mas ao refletir-lo diz muito mais coisas do que o ordenamento.

O sistema implica a organização do material jurídico e sua interpretação, depurando o ordenamento de suas contradições e ambiguidades. Se o ordenamento é produzido pelos vários atores com competência para tanto (o legislador, o juiz, o administrador, o particular), o sistema é produto do labor dos juristas.

Nessa linha de idéias Gregorio Robles Morchon pontifica, de forma lapidar, que

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[...] El legislador, al "definir" un concepto, puede cometer un error y definirlo mal; la doctrina lo corrige y elabora el concepto correctamente. El legislador, al regular una materia, puede hacerlo entrando en contradicción con otras decisiones tomadas previamente; frente a la contradicción de decisiones, la doctrina actúa disolviéndola o, al menos, revelando que existe y ofreciendo las distintas posibilidades alternativas que ofrecen los preceptos que entran en colisión. El legislador a veces emplea distintos términos para referir-se a la misma cosa, o la misma palabra em alusión a conceptos diferentes; otras veces deja aspectos sin regular que precisan de regulación, o se solapa con lo ya regulado. La doctrina viene en ayuda de todos estos problemas, introduce la racionalidad del sistema, que es coherencia y armonia entre sus partes, y disuelve de esta forma las imperfecciones. [48]

Por isso averba o autor que o sistema é "mais inteligente" que o ordenamento.

Por outro lado, o sistema deve "refletir" o ordenamento, no sentido de que o cientista do direito não pode inventar nada, mas apenas desentranhar os elementos presentes no ordenamento e organizá-los para alcançar um ajuste dos significados.

Tanto é assim, afirma ele, que normalmente juízes, advogados e demais profissionais do direito estudam nos cursos de graduação pelos livros da doutrina, muito mais do que pela letra seca das leis, e depois continuam seguindo o mesmo caminho, quando se defrontam com algum problema para o qual precisam buscar uma solução: sabem que provavelmente encontrarão essa solução com maior probabilidade nos escritos doutrinários do que no texto bruto do ordenamento.

Por isso, o ordenamento é o ponto de partida para chegar ao sistema, ou, noutra forma de dizer, o ordenamento é a matéria que a Hermenêutica do Direito usa para construir o sistema [49].

4.1 Abordagem sincrônica e diacrônica do sistema.

Riccardo Guastini ensina que os ordenamentos têm uma dimensão sincrônica e uma dimensão diacrônica, já que

[...] es evidente que un ordenamiento jurídico no es un conjunto de normas determinado de una vez por todas, sino más bien un conjunto cambiante de normas [...] Un ordenamiento jurídico puede ser observado desde dos ángulos visuales distintos: el punto de vista sincrónico y el punto de vista diacrónico. Denominaremos sincrónico al punto de vista de quien observa un ordenamiento en un momento determinado de su existencia histórica, haciendo abstracción de su cambio en el tiempo. Denominaremos diacrónico al punto de vista de quien observa un ordenamiento em su evolución histórica. [50]

Desta forma, sob o ponto de vista sincrônico, um ordenamento se apresenta como um conjunto de normas, enquanto que do ponto de vista diacrônico um ordenamento se apresenta como uma sequência de conjunto de normas. Pode-se dizer, então, que um ordenamento sincrônico é um ordenamento "estático", enquanto que um ordenamento diacrônico é um ordenamento "dinâmico", formado também por atos que modificam o sistema jurídico em um momento determinado.

Tacio Lacerda Gama, invocando lições de Oswaldo Ducrot e Tzvetan Todorov, explica que a investigação sincrônica e diacrônica de um dado ordenamento refere-se a uma perspectiva distinta de estudo, sendo que na primeira modalidade o fenômeno é analisado sem o transcurso do tempo, e na segunda o objeto de investigação é analisado com o auxílio da sucessão de momentos distintos. [51]

Continua referido autor aduzindo que

[...] São exemplos da investigação diacrônica os capítulos dedicados à "evolução histórica" de um determinado instituto jurídico. As percepções sincrônicas, por sua vez, consideram as normas jurídicas válidas num determinado momento histórico, abstraindo-se a sucessão do tempo. [...] A análise sincrônica do sistema jurídico possibilita a verificação da compatibilidade entre normas que se relacionam em nexos de subordinação e derivação. Mediante a abstração do tempo, é possível saber qual norma fundamenta a validade de outra e se há compatibilidade entre norma superior e inferior. Noutras palavras: a análise sincrônica é o que possibilita aferir se a norma inferior foi produzida de acordo com a norma superior. Já a observação diacrônica torna possível perceber a relação entre normas que entram no sistema de direito positivo em momentos distintos. As relações de coordenação possibilitam a compreensão das normas no curso do tempo. [52]

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Sobre o autor
Luciano Lopes Passarelli

Registrador Imobiliário, mestre e doutorando em direito civil (PUC-SP), professor de diversos cursos de pós-graduação em direito notarial e registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSARELLI, Luciano Lopes. Hermenêutica pós-giro linguístico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2213, 23 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13198. Acesso em: 25 abr. 2024.

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