Desde a Emenda Constitucional 45 de 2004, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho, tem se discutido a intenção de se transferir para esta Justiça especializada a competência para julgar os crimes resultantes da relação de trabalho.
As posições manifestadas, contrárias e a favor, possuem, cada qual, suas razões sociais e fundamentos legais. O objetivo deste artigo não é confrontar as opiniões e nem mesmo exaurir o assunto, mas trazer um breve relato do que vem ocorrendo nas esferas jurídica e legislativa, além de algumas considerações sobre tema tão relevante.
No âmbito do Poder Judiciário, a matéria é abordada na ADI 3.684-0/DF, proposta pela Procuradoria Geral da República, contra três incisos inseridos ao art. 114 da Constituição Federal, pela EC 45. Entre os pedidos da ADI está o de conferir interpretação ao dispositivo que afaste da Justiça do Trabalho a competência criminal.
Segundo a Procuradoria, na inicial da ADI, o inciso IX do art. 114 - que expressa a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar "outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei" - é vago e possibilita interpretações incompatíveis com outros preceitos constitucionais e com o próprio sentido pretendido pelo legislador. Destacou a interpretação, que vem sendo sustentada por alguns órgãos jurisdicionais, de que o inciso abrange questões de natureza penal decorrentes da relação de trabalho.
No julgamento da medida cautelar da ADI, restou decidido, de forma unânime, que a nova redação do art. 114, da Constituição Federal, não atribui à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais. Vale transcrever parte do Voto do Ministro Marco Aurélio, que ressaltou a impossibilidade de lei ordinária dispor sobre a matéria, in verbis: "Peço vênia, diante desse contexto, para assentar que não há risco em se manter o quadro constitucional delineado, não existe lugar, considerada uma sadia política judiciária, para emprestar-se, desde logo, interpretação conforme a Carta ao disposto nos incisos I, IV e IX do artigo 114 e já sinalizar ao legislador ordinário que não poderá vir à lume uma lei prevendo a competência criminal da Justiça do Trabalho" (sem grifos no original).
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) participaram do processo, na qualidade de amicus curiae, contrários à ADI. A ação aguarda julgamento final.
Na esfera legislativa, tramitam no Congresso Nacional Propostas de Emenda Constitucional e Projetos de Lei, que conferem competência penal à Justiça Trabalhista. Constava na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, na última semana antes do recesso parlamentar, Requerimento de Audiência Pública para debater o PL 2.636/07, do deputado Eduardo Valverde (PT/RO).
O PL 2.636/07 estabelece a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar os crimes oriundos de relação trabalhista, à exceção dos crimes contra a organização do trabalho quando praticados contra o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores.
O projeto já foi analisado pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP), que examinou o mérito da proposição e aprovou parecer pela rejeição da matéria, sob o argumento de que a competência penal sobrecarregaria a Justiça do Trabalho, trazendo dificuldades para o trabalhador na obtenção de seus créditos.
Na CCJC, o relator do projeto, deputado Régis de Oliveira (PSC/SP), designado para examinar a constitucionalidade e juridicidade do projeto, apresentou parecer pela inconstitucionalidade da matéria; mas a seguir o retirou, por entender que a matéria necessita ser debatida, motivo pelo qual requereu a realização de Audiência Pública, com a presença da ANAMATRA e da ANPT.
Ambas as entidades defendem a competência penal da Justiça do Trabalho e organizam, em conjunto, uma frente trabalhista em prol de seu reconhecimento, por entenderem que tanto a Justiça trabalhista quanto o Ministério Público do Trabalho têm maior afinidade para cuidar das questões de relações de trabalho, ainda que envolvam crimes. Sendo assim, não haverá debate na Audiência Pública a se realizar na CCJC, mas tão somente a defesa do PL 2.636/07. Espera-se que novos Requerimentos sejam apresentados, convidando outros membros da Sociedade com opinião contrária à proposta, para que se conheçam também as desvantagens e implicações em se conferir competência penal à Justiça laboral.
Dentre os pontos a serem considerados está o de que, ainda que o inciso IX, do art. 114, da Constituição Federal, atribua à lei ordinária a regulamentação de outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, tal lei não teria o condão de atribuir competência criminal à Justiça Trabalhista, pois somente emenda à Constituição Federal poderia trazer essa alteração, como bem ressaltou o Ministro Marco Aurélio em seu Voto na ADI 3.684-0/DF.
No mais, não se deve olvidar que o conteúdo do inciso IX não é novo. Sua redação constava na redação original do caput do art. 114, sem que se suscitasse a interpretação de que competiria à Justiça do Trabalho o exame de matéria penal. Assim como, na tramitação da PEC 29 de 2000, que resultou na EC 45, o Senado Federal rejeitou emendas com vistas à inclusão de competência criminal à Justiça do Trabalho em relação a crimes contra a administração da justiça e contra a organização do trabalho.
Ainda que uma nova proposta de emenda constitucional pretenda estender a competência da Justiça Laboral para processar e julgar crimes vinculados à relação de trabalho, a exemplo da recente PEC 327/09, as complicações da medida seriam muitas.
É preciso notar que a Justiça do Trabalho apresenta um processo simplificado, voltado para a proteção e satisfação rápida dos direitos do trabalhador. Suas normas processuais conferem tratamento privilegiado à parte que considera hipossuficiente (trabalhador), como a inversão do ônus da prova por meio de presunções; ou seja, cabe ao réu provar a inverdade do alegado pelo autor, podendo o empregador ser condenado com base na primazia da realidade.
A estrutura e os princípios da Justiça do Trabalho são incompatíveis com as garantias do Direito Processual Penal, este norteado pelo princípio constitucional da presunção de inocência do réu, além de um complexo ordenamento, no qual a configuração do crime depende de elementos subjetivos como dolo ou culpa - a intenção, negligência, imprudência ou imperícia do autor da conduta são elementos essenciais a serem considerados no veredicto de condenação ou absolvição e na aplicação da pena.
É a liberdade do réu que está em jogo - bem erigido a direito fundamental pela Constituição. Por isso, o processo penal é extremamente formal e dotado de garantias, o que o difere em muito do simplificado, célere e informal rito trabalhista.
Não obstante o choque de princípios e garantias entre o Direito Processual do Trabalho e o Direito Processual Penal, é preciso atentar para a finalidade da Justiça Laboral, que é a efetivação dos créditos decorrentes da relação de trabalho, a contraprestação pelos serviços prestados. A ampliação de matérias a serem processadas e julgadas pela Justiça Trabalhista desvirtuará em muito sua especialidade, acabando por comprometer sua efetiva função social.
Espera-se que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Câmara dos Deputados, realize Audiências Públicas com a oitiva de outros setores da sociedade, de modo a considerar também as implicações da medida, para que aquela Casa não aprove a competência criminal da Justiça do Trabalho sem antes atentar para as incompatibilidades entre os Sistemas Penal e Trabalhista e, sobretudo, para o vício de constitucionalidade já erigido pelo Ministro Marco Aurélio na ADI 3.684-0/DF.