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O procedimento de julgamento de recursos repetitivos e o princípio da disponibilidade da demanda no processo civil

03/08/2009 às 00:00
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Na questão de ordem analisada no RESP nº 1.063.343 – RS, houve a discussão acerca do cabimento de pedido de desistência do recurso interposto após já instaurado o regime dos recursos repetitivos, previsto pelo art. 543-C do Código de Processo Civil.

No referido caso, após verificada a existência de inúmeros recursos que versavam sobre a mesma matéria [01], foi instaurado o procedimento de recursos repetitivos, tendo havido a comunicação aos Presidentes do STF, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça da aludida instauração, bem como com a determinação da suspensão do processamentos dos Recursos Especiais que versassem sobre a mesma matéria. Igualmente houve a participação, na qualidade de amicus curiae, de diversas entidades, com a juntada de pareceres atinentes à questão.

Após a inclusão dos processos em pauta para julgamento, mas antes de iniciada a sessão, fora protocoladas petições de desistência dos recursos interpostos.

Ante a constatação de colisão de interesses entre o pedido de desistência recursal e o interesse coletivo caracterizador dos processos submetidos à sistemática do art. 543-C, CPC, o Superior Tribunal de Justiça houve por bem indeferir os pedidos de desistência mencionados.

O instituto da desistência recursal é previsto no art. 501 do Código de Processo Civil, que assim dispõe: O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso. Ele constitui expressão do princípio da disponibilidade da demanda, manifestação da autonomia privada das partes no processo, configurando regra de aplicação no processo civil, haja vista a proeminência, em tal âmbito, de causas que versem sobre matérias de natureza disponível.

Como não poderia deixar de ser, o princípio da disponibilidade da demanda sobre atenuações sempre que o direito material versado possua natureza de direito indisponível, bem como quando o interesse público prevalecer sobre o privado.

Da mesma forma, o instituto da desistência recursal também pode ser atenuado, caso se verifique hipótese de abuso por parte do recorrente, configurando burla ao dever de lealdade, que deve reger as relações processuais.

Justamente por desobediência ao dever de lealdade processual e, conforme apontado na decisão proferida na Questão de Ordem do RESP supramencionado, o STJ tem-se manifestado no sentido de que não se pode deferir o pedido de desistência recursal quando formulado após o início do julgamento do recurso.

A doutrina também sinaliza nesse mesmo sentido. Senão vejamos o que se diz acerca da desistência:

"Pode ser efetuada a partir da efetiva interposição do recurso, até o momento imediatamente anterior ao julgamento do recurso, inclusive deduzida oralmente na sessão de julgamento. O termo final é o da sustentação oral no tribunal, para os recursos que a admitem. Após o pronunciamento na corte, a parte encerra sua participação na causa, sendo-lhe vedada a prática de qualquer outro ato processual. Proferido voto pelo relator, a causa está julgada, ainda que parcialmente, não mais sendo possível desistir-se do recurso (Nery, Recursos, 355)" [02]

Com a introdução no ordenamento processual civil da regra constante no art. 543-C, houve a possibilidade de se dirimirem, via Recurso Especial, numa única decisão, os conflitos decorrentes de recursos que possuam idêntico fundamento de questão de direito. Vejamos o que dispõe o mencionado dispositivo, in verbis:

Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 1º  Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 2º  Não adotada a providência descrita no § 1º deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 3º  O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 4º  O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 5º  Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o disposto no § 4º deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo prazo de quinze dias. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 6º  Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 7º  Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 8º  Na hipótese prevista no inciso II do § 7º deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

§ 9º  O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial nos casos previstos neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).

Diante desse novo instrumento processual, que tem como fundamento, entre outros, a garantia do direito à razoável duração do processo e a efetivação do direito à isonomia, o STJ teve de enfrentar, no RESP acima mencionado, o conflito entre o direito da parte de desistência recursal e a resolução de mérito de uma demanda que superava os limites individuais.

Como solução para tal controvérsia, entendeu o STJ ser incabível o pedido de desistência de recurso submetido ao regime previsto no novel artigo 543-C, CPC.

Ousamos, todavia, discordar do posicionamento daquela egrégia Corte Superior.

No caso apresentado, o pedido de desistência ocorrera imediatamente após a designação de data para a sessão de julgamento, mas bem antes do início da aludida sessão.

Ora, é certo que o art. 543-C, CPC não consiste em norma derrogadora do art. 501, CPC, haja vista não haver qualquer disposição nesse sentido. Nesse sentido, percebe um "silêncio contundente" do legislador; uma clara opção legislativa.

Diante de tal circunstância, entendemos não poder o STJ afastar a aplicação da norma que confere a possibilidade de desistência recursal à parte sempre que o Recurso Especial estiver submetido ao regime representativo de controvérsia (art. 543-C, CPC).

Noutro dizer, não se pode, por via transversa, negar vigência ao art. 501, CPC, negando ao recorrente o direito de desistir da pretensão recursal, sob pena de o Judiciário invadir a esfera legislativa.

O pedido de desistência do recorrente, por se encontrar sob a proteção do princípio da disponibilidade da demanda, não deve ser desconsiderado, sob o argumento de prevalência do interesse público sobre o privado, justamente porque, além da desistência configurar faculdade a ser exercida pela parte, não há, com a desistência, prejuízo ao interesse público.

A decisão em comento acabaria por demonstrar a fragilidade da técnica inserida pelo art. 543-C, CPC, posto que levaria o Tribunal a restringir a autonomia privada do recorrente, modificando o alcance do instituto da desistência, sob o argumento de prevalência do interesse público sobre o privado.

A prevalecer a tese vencedora na Questão de Ordem do RESP nº 1.063.343 – RS, desaparece do ordenamento a hipótese de desistência recursal nos casos de Recurso Especial representativo de controvérsia. Sob o mesmo argumento de prevalência do interesse público chega-se à conclusão de que não haveria também o direito à desistência recursal nos casos de interposição de Recurso Extraordinário.

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Explica-se.

Pela nova redação conferida pela EC nº 45/2004, fora acrescido o § 3º ao artigo 102 da Constituição Federal. Por essa nova disposição, acresceu-se o requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário de comprovação de existência de repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso.

Seguindo a mesma linha de raciocínio apontada pelo STJ no RESP em discussão, onde se considerou justamente a repercussão da causa em comento como fundamento para denegar o pedido de desistência recursal, chegar-se-ia à conclusão de que também não caberia mais o instituto da desistência no âmbito de Recurso Extraordinário, haja vista que, em razão do requisito de repercussão geral, esse tipo de recurso sempre transcenderia o mero interesse entre as partes.

Como alternativa à questão posta no RESP em estudo, vislumbra-se a seguinte solução: o pedido de desistência recursal deveria ser acolhido, produzindo seus regulares efeitos. A fim de não prejudicar a solução em massa da questão de mérito repetitivamente posta nos recursos sobrestados, poderia ser determinada a extração de cópia de todos os documentos contidos nos autos do RESP original e necessários ao deslinde da causa (ou mesmo o desentranhamento de tais documentos) e o traslado dos mesmos a um dos demais Recursos Especiais cuja suspensão fora determinada e, a partir daí, ser proferido o seu julgamento.

Tal decisão serviria de paradigma a ser seguido pelos demais tribunais, assim como iria repercutir nos recursos sobrestados para julgamento.

Dessa forma, harmonizam-se os interesses contrapostos, na medida em que permite a definição da tese jurídica a ser adotada nos casos similares, ao tempo em que não prejudica a perda de interesse superveniente do recorrente, prevista no art. 501 do CPC.

Assim, não se perderia o objetivo da lei que estabeleceu o procedimento de julgamento dos recursos repetitivos, qual seja a efetivação dos princípios da duração razoável do processo e da isonomia, da mesma forma que se resguardariam os direitos individuais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CINTRA, Antônio Carlos Araújo etti alli. Teoria geral do processo. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2009.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2008.

_________________. Instituições de direito processual civil. Vol I. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2009.

NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº 1, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico. com.br>. Acesso em 20 de julho de 2009.


Notas

  1. Legalidade ou não da cláusula que, em contratos bancários, prevê a cobrança da comissão de permanência na hipótese de inadimplência do consumidor.
  2. NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 3. ed. ver e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 730.
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Sobre a autora
Ana Cristina Adad Alencar

Procuradora da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR, Ana Cristina Adad. O procedimento de julgamento de recursos repetitivos e o princípio da disponibilidade da demanda no processo civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2224, 3 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13266. Acesso em: 23 nov. 2024.

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