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Criminologia: a mudança do paradigma etiológico ao paradigma da reação social.

O que isso tem a ver com política criminal?

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4. O novo paradigma: a reação social.

Um novo paradigma para a Criminologia é construído a partir dos estudos, nos Estados Unidos da América, de etnometodologia, uma corrente da sociologia que surgiu na Califórnia no final da década de 1960, tendo como seu principal marco fundador a publicação do livro "Studies in Ethnomethodology" [Estudos sobre Etnometodologia], em 1967, de Harold Garfinkel.

Conforme apontado por Guesser, Garfinkel desconsidera existir uma passividade reflexiva, afirmando que o indivíduo não é um "idiota social", regido apenas por coerções externas ¾ no que contradiz, no mínimo parcialmente, as noções de "super-ego", em Freud, e a idéia de "coerção externa" e a correspondente "solidariedade mecânica", em Durkheim. Garfinkel se posiciona como revisor do pensamento parsoniano. [23] Com efeito, Talcot Parsons ¾ um dos autores engajados na "Teoria da Ação Social", a exemplo de Max Weber, e tantos outros ¾ exerceu forte influência sobre o pensamento de Garfinkel, tendo sido inclusive seu orientador durante anos. A teoria parsoniana da ação se constituiu basicamente como uma teoria da motivação da ação. Parsons, indiscutivelmente influenciado por Durkheim, acreditava que as motivações dos atores sociais são integradas em modelos normativos que regulam as condutas e as apreciações recíprocas. Desta maneira, estaria explicada a estabilidade da ordem social e sua reprodução em cada encontro entre os indivíduos, porque estes compartilhariam valores que os transcendem e os governam. Em outras palavras, para Parsons, o ator está regido por normas sociais, a que se submete, e pelas quais tem suas ações determinadas, sendo privado de reflexividade e, portanto, sendo incapaz de analisar sua relação de dependência a esse conjunto de normas. Garfinkel, por outro lado, passou a discordar de Parsons, por entender que Parsons não teria construído uma teoria da ação (apesar de seu nome), possível de descrever como os indivíduos agem, mas ao revés, desenvolvera tão-somente uma teoria das disposições para agir, de maneira que, ainda na visão de Garfinkel, a teoria desenvolvida por Parsons não era capaz de identificar a ação em si, mas suas motivações, que poderiam impelir os agentes desta ou daquela maneira. As normas estariam, inquestionavelmente, presentes na análise do indivíduo, inclusive influenciando-o, dispondo-o para agir, porém, para Garfinkel, o indivíduo interage com tais normas, interpretando-as, ajustando-as e modificando-as. Outro ponto de discordância entre Garfinkel e Parsons, está na questão da linguagem. Para Garfinkel, os símbolos utilizados em nossa comunicação não se encontram estabelecidos em conjuntos de regras e normas de comunicação preexistentes, como desejara Parsons, mas, ao contrário, são construídos e produzidos por processos de interpretação, no que se funda a passagem de um paradigma normativo (parsoniano) para um paradigma interpretativo (etnometodológico) na Sociologia norte-americana. [24]

Este novo paradigma da Criminologia também sofreu, além das influências da etnometodologia, os impactos do interacionismo simbólico, da Escola de Chicago. Para os teóricos da Escola de Chicago, a cidade em si era de extremo valor como laboratório para explorar as interações sociais, já que a natureza humana poderia ser melhor observada no complexo social artifical (ecologia humana), na busca de modelos ecológicos resultantes da análise dos paralelos entre sistemas naturais e sociais. Outras pesquisas se desenvolveram no sentido de descobrir por que certas áreas da cidade atraíam populações específicas e exibiam particulares padrões de comportamento. Para os pesquisadores da Escola de Chicago, existiram "áreas naturais", que seriam áreas específicas da cidade que melhor se adequavam a uma função em comparação com outra, e estas áreas naturais raramente existiam em isolamento, mas, ao revés, estavam em constante relação competitiva ou simbiótica. A Escola de Chicago também se ocupou de estudar os guetos, os grupos sociais fechados, em regiões da cidade, os chamados "mundos sociais" ("social worlds").. Em palavras mais precisas, a Escola de Chicago tendia a visualizar as interações do mundo social de maneira aprofundada, onde variados mapeamentos de mundos em cooperação e conflito se somariam no mosaico da experiência urbana. [25]

Fazendo comparação entre etnometodologia e interacionismo simbólico, Vergara e Caldas assim discorrem:

Burrell e Morgan (1979, p. 271) apresentam a sutil diferença entre a etnometodologia e o interacionismo simbólico. Ela diz respeito ao grau de atenção dado à maneira segundo a qual a realidade é negociada por meio da interação. A etnometodologia geralmente focaliza o modo como os indivíduos se responsabilizam por seu mundo e lhe dão um sentido. O interacionismo simbólico focaliza o contexto social no qual os indivíduos, ao interagir, empregam uma variedade de práticas para criar e manter definições particulares do mundo; realidades e fatos são criações sociais. [26] (Nossos grifos)

É importante para o presente estudo, então, a observação que faz Giddens entre a relação da tradição interacionista e a análise sociológica do crime:

Os sociólogos que estudam o crime e o desvio na tradição interacionista concentram-se no desvio como um fenômeno construído socialmente. Rejeitam a idéia de que haja tipos de conduta que sejam inerentemente "desviantes". Em vez disso, os interacionistas questionam como os comportamentos vêm a ser inicialmente definidos como desviantes e por que certos grupos, e não outros, são rotulados de desviantes. [27]

Ou seja, Giddens alude ao "etiquetamento", de intrínseca relação com o novo paradigma da Criminologia que daí surge.

Conforme De Andrade, a introdução do "labelling approach", devido, sobretudo, à influência das correntes de origem fenomenológica na sociologia, acima citadas (como o interacionismo simbólico e a etnometodologia), do desvio e do controle social e de outros desenvolvimentos da reflexão histórica e sociológica sobre o fenômeno criminal e o Direito penal é que determinaram, no seio da Criminologia contemporânea, a constituição de um paradigma alternativo relativamente ao paradigma etiológico: o paradigma da reação social ("social reation approach") do "controle" ou da "definição". Sua tese central: a de que o desvio e a criminalidade não são qualidades intrínsecas da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. Uma conduta não é criminal "em si" (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio-ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a "definição" legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a "seleção" que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. [28] Ou seja, "mais apropriado que falar da criminalidade (e do criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado) e esta é uma das várias maneiras de construir a realidade social". [29] Ou ainda:

Relativizando e problematizando a definição da criminalidade do paradigma etiológico, o labelling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das "causas" do crime (e, pois, da pessoa do criminoso e seu meio e mesmo do fato-crime) para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal, como conjunto articulado de processos de definição (criminalização primária) e de seleção (criminalização secundária) e para o impacto que produz o etiquetamento na identidade do desviante. [30]

De Castro discorreu sobre a significação da "reação social" e do labelling, afirmando que a reação social determinaria que a prática do controle seria responsável pela seleção de algumas pessoas ¾ e, conseqüentemente, não outras ¾ para denominá-las de delinqüentes, "criando a delinquência também por essa via". Conforme a autora, ao aplicar uma etiqueta sobre a imagem e a auto-imagem da pessoa rotulada, se ampliaria e aprofundaria nessa pessoa o status delitivo. Para De Castro, "essa tendência expôs um conceito novo: a criminalização". [31]

Por tudo isso é que, em palavras mais simples, Coelho e Mendonça escreveram:

A teoria do labelling approach parte da premissa de que a criminalidade não existe na natureza, não é um dado, mas uma construção da sociedade, uma realidade que decorre de processos de definição e de interação social. O crime passa a ser compreendido não como uma qualidade intrínseca, determinada, e sim como uma decorrência de critérios seletivos e discriminatórios que o definem como tal. [32]

Embora o "labelling approach" por si só tenha representado grande avanço na Criminologia, inclusive alterando o seu paradigma (no sentido kuhniano), ainda não se pode dizer que com o "labelling approach" tenha "nascido" a criminologia crítica.


5. Criminologia crítica: os motivos do surgimento e suas influências na Política Criminal.

Lembremos que o Paradigma da Reação Social centra o desenvolvimento de sua tese em dois pontos fundamentais: a "conduta desviada" e a "reação social". [33] Neste sentido, são relevantes as palavras escritas por Becker:

(...) os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um ofensor. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etiqueta); a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente. [34]Podemos inserir livremente um exemplo neste texto: o aborto é o alvo da afirmação. A conduta de causar aborto não é um crime por si só, mas um desvio culturalmente criado, adotado pela legislação penal brasileira, que trata o aborto como conduta desviante. Ao direito de disposição do próprio corpo pela mulher é imposto um limite legal: "recomenda-se" à mesma que suporte alguns meses de gravidez indesejada, somados a anos de criação de um(a) filho(a) imposto(a) pela força do acaso, ou terá que amargar alguns anos outros na prisão. A tipificação penal do aborto nada mais é que a consumação da etiquetagem por conduta desviada: à mulher que aborta atribui-se uma etiqueta de útero maldito, de conteúdo criminal.

Contudo, é preciso fazer esclarecimentos sobre a passagem do paradigma etiológico ao paradigma da reação social, sua relação com o labelling approach e o surgimento da criminologia crítica.

Na verdade, a criminologia crítica surge a partir de concordâncias e também de insurgências referentes à teoria do etiquetamento. É que os teóricos do "labelling approach" foram acusados ¾ justificadamente, entendemos ¾ de abstração do enfoque político em relação ao enfoque econômico. Ou seja, concentram-se no processo de criminalização em si, sem questionarem-se a respeito das condicionantes estruturais, da distribuição desigual das oportunidades sociais. Além disso, pecaram pela radicalização do antideterminismo. [35] Claro que, dentre os próprios teóricos do etiquetamento, houve quem tenha enxergado tais deficiências. A notícia nos é trazida por Tieghi:

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(…) debemos reiterar que ya entre los teóricos del labelling no faltaron quienes propusieran fundir el análisis de la estructura de clases y de poder de la sociedade capitalista partiendo de una teoría global histórica materialista; tal la posición de Sack. [36]

Apesar da exceção no pensamento de Sack, fato é que a teoria do labelling approach, como categoria de pensamento, ignorou os aspectos relevantes de que acima se tratou, e sofreu críticas em face das quais De Andrade dirá que:

A Criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes (a chamada criminalidade de colarinho branco, dos detentores do poder econômico e político, a criminalidade organizada, etc.) [37]

Note-se bem que este novo comportamento da Criminologia inaugura nova concepção de Política Criminal, ambas ciências autônomas, porém integradas. Como ressaltado por Galvão, "(…) a criminologia é irrestritamente vinculada à realidade social, enquanto a política criminal transcende essa realidade". [38]

Segundo Zackseski:

As políticas criminais que produzem mais impacto na atualidade permanecem direcionadas ao controle social de tipo penal. Elas estão representadas por questões que

alternam basicamente a penalização e a despenalização. Em contrapartida, as novas políticas de prevenção desviam-se da ilusão do primado da lei penal (embora existam projetos no sentido de estabelecer uma ordem jurídica condizente com as novas perspectivas, mas que não ocupam o lugar central das políticas, nem recaem exclusivamente sobre a esfera penal), procurando firmar a atenção sobre estratégias políticas, sociais, culturais e econômicas que possibilitem responder às necessidades de segurança da sociedade e que possam ser utilizadas no futuro.

(…)

No Brasil, quando surpreendentemente são aventadas estratégias de segurança que não sejam tipicamente repressivas, imediatamente vemos diversas tentativas de desqualificá-las em sua capacidade de contribuírem para a segurança a partir da imposição do rótulo "políticas sociais", como se qualquer medida não repressiva ou não jurídico-formal fosse incapaz contribuir para a composição de um quadro de alívio do sentimento de insegurança e dela própria. É a concepção conservadora de segurança que está sendo exposta nestes momentos. [39]

Um bom exemplo do controle social de tipo penal está na política de "tolerância zero", cara aos "Movimentos de Lei e Ordem". Com efeito, o debate acadêmico atual sobre concepções de políticas de segurança pública no meio urbano divide-se praticamente em dois principais modelos em destaque: a política denominada "tolerância zero" ― desenvolvida em algumas cidades dos Estados Unidos da América―, e a política desenvolvida em alguns municípios europeus ― conhecida por "Nova Prevenção".

Um método pode auxiliar-nos na compreensão de algumas das diferenças existentes entre essas duas concepções de política de segurança urbana: é a tipologia weberiana. Segundo Max Weber:

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que podem ocorrer em maior ou menor número ou mesmo nunca, e que se ordenam segundo pontos de vista unilateralmente acentuados, formando um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia. [40]

Como bem esclarecido por Souza, o tipo ideal nada tem de "exemplar", nem de "dever ser"; [41] também não é uma hipótese, ainda que possa apontar caminhos para a sua formulação. O tipo ideal não interessa como fim em si mesmo, mas como um modelo, como um meio de conhecimento em relação ao qual se analisa a realidade, que permite ao investigador, em cada caso particular, aproximar-se cognitivamente do fenômeno em análise, examinando a proximidade ou o afastamento da situação concreta pesquisada (tipo real), em relação ao tipo ideal correspondente. [42]

Com base nos "tipos ideais" de Weber, Letícia Almeida, em excelente dissertação de mestrado, apresentou uma tipologia referente a cada uma dessas duas concepções de segurança pública.

Para Almeida, a Tipologia da Política de Segurança "Tolerância Zero" engloba: I - Combate de pequenos delitos e atos entendidos como agressores aos padrões morais da sociedade; II - Manutenção da ordem nas ruas pela polícia; III - Combate à aparência de desordem da cidade, em função da mesma ter relação direta com a delinqüência; IV - Limpeza das ruas, entendendo como sujeira os mendigos, bêbados, prostitutas, pequenos traficantes, menores abandonados e emigrantes ilegais; V - Policiamento não está dirigido à causa do crime, mas à proteção e defesa de determinados segmentos da sociedade; VI - Repressão dos pequenos e grandes delitos, assim como de seus agentes, é a principal estratégia no combate à criminalidade urbana; VII - As ações entendidas como preventivas estão relacionadas ao controle da desordem e à limpeza das ruas, explicadas no item IV; VIII - Investimento em armamento de fogo, recursos humanos e planejamento estratégico voltados à segurança urbana; IX - Vigilância constante de (possíveis) criminosos; X - Estratégias anticrimes dirigidas à apreensão de armas e drogas; XI - Não há participação da população na construção das políticas de combate à criminalidade urbana. Por outro lado, ainda conforme Almeida, a Tipologia da Política de Segurança "Nova Prevenção" possui os seguintes elementos: I - Estratégias caracterizadas pela pluriagencialidade e interdisciplinaridade de ações e de instituições envolvidas; II - Planejamento, a partir de um diagnóstico ou de pesquisas de vitimização, de um plano de intervenções voltados à prevenção da criminalidade urbana; III - Policiamento comunitário dirigido à elaboração de iniciativas junto da população, e a polícia como ator central na constituição de uma rede de prevenção; IV - Elaboração de ações no intuito de identificar e buscar soluções às principais demandas da população em relação à segurança urbana; V - Participação da sociedade nas ações do governo municipal, atendendo à diversificação de demandas e evitando o emprego de instrumentos do direito penal; VI - Medidas de prevenção situacional que intervêm nas características físicas do local, de acordo com as necessidades dos seus moradores; VII - Estratégias de prevenção social, que objetivam a transversalidade da problemática da segurança urbana em políticas sociais, culturais e econômicas; VIII - Viabilização da convivência democrática entre grupos distintos em um mesmo espaço territorial, no intuito de afirmar a tolerância entre diferentes ideologias e modos de entender a segurança urbana; IX - Ações que visam atender às expectativas de segurança de todos os segmentos da sociedade: do jovem ao idoso, do motorista e do pedestre, da prostituta, do policial, do comerciante, do usuário de drogas, etc.; X - Sincronia entre ações policiais e governamentais, na prevenção da criminalidade urbana. [43]

A política de "Tolerância zero" ("Zero Tolerance") também é conhecida como "Qualidade de Vida" ("Quality of life") e "Teoria das Janelas Quebradas" ("Broken Windows Theory"), e se liga ao eficientismo penal. Vieira muito bem observa que o "eficientismo penal representa a essência do Racionalismo, eis que objetiva tornar a relação entre meios (investigação, processo e execução) e fins (condenação, repressão e prevenção do delito) menos custosa econômica e politicamente". [44]

Como o próprio nome já diz, a política de "Tolerância Zero" é absolutamente repressiva. Baseada no artigo "broken windows", de James Wilson e George Kelling, publicado em 1982, a política de "Tolerância Zero" parte da metáfora de que se as janelas quebradas de um edifício não são consertadas, as pessoas que gostam de quebrar janelas admitirão que ninguém se importa com seus atos de incivilidade e continuarão a quebrar janelas. Ou seja, uma pequena infração, se tolerada, pode levar a uma situação de anomia e ao ensejo de crimes mais graves. [45]

O problema maior está em que, como denuncia Belli, "A teoria das janelas quebradas reflete uma criminologia que deixa de investigar as causas sociais dos crimes para ressaltar o produto final, ou seja, o criminoso e o crime". [46] Prender pessoas é visto como sucesso; gera-se aumento da população carcerária, numa sistemática semelhante àquela denunciada pelos teóricos do labelling approach, de criminalização e estigmatização. Lotke desmembra os ingredientes da "receita", ao analisar o sistema penal dos Estados Unidos da América:

Como é que se pode obter um enorme crescimento na taxa de encarceramento enquanto a taxa de criminalidade se mantém estável? A resposta é que o ingresso nas prisões tem sido facilitado. Pessoas que hoje lotam as prisões, há um tempo atrás nem mesmo teriam sido processadas. [47]

Aliás, a própria expressão "população carcerária" é altamente estigmatizante, como observa Tijoux:

El mismo término "población penal" remite al concepto de "población", con toda la historia de estigma que conlleva. Por una parte va a referir a las características estructurales de los sectores de vida de los presos: arquitectura concentracionaria, lugares vetustos y húmedos, piezas pequeñas, hacinamiento, carencia de espacios verdes, lejanía de los centros de intercambios ¾ entre otras ¾ ; y por la otra, su sola pronunciación hará visible toda la subjetividad que encierra por la funcionalidad de su significación: floreja, maldad, desconfianza, promiscuidad, desajuste familiar, anarquía, ignorancia. [48]

É exatamente na necessidade de menor repressão que residem influências importantes da Criminologia Crítica sobre a Política Criminal (embora não as únicas). Em entrevista concedida a Zackseski, o criminólogo italiano Massimo Pavarini deixou claro que as estratégias de governo para uma segurança urbana, em termos democráticos não repressivos, pertencem à cultura da Criminologia Crítica. Escreve Zackseski que: "No seu [Pavarini] convencimento, a Criminologia é uma ciência que não existe somente numa dimensão de reflexão acadêmica, pois cada teoria criminológica se traduz, de alguma forma, em uma política criminal". [49]

Esta democracia não passa, evidentemente, apenas pela mídia, ainda mais quando esta se tenha comprometido com os "Movimentos de Lei e Ordem". Observe-se, porém, que o sentido de democracia de que acima se tratou não é vontade da maioria, pura e simplesmente,

(…) mas de democracia como possibilidade de inclusão, mesmo daqueles que estão longe de ser maioria, sem a preocupação de virem a ser ou não, mas simplesmente pelo fato de que há possibilidade e necessidade de participação de todos para que haja uma perspectiva de entendimento na resolução de conflitos. [50]

A Política Criminal, ademais, após assistir à derrota da dogmática penal do consenso e ciente da existência do conflito como elemento fundamental de abordagem, não pode permitir diferenciação com outras políticas sociais. Baratta é contundente: "Decir que la política criminal deba elegir entre una política de seguridad y una política social, es establecer una falsa alternativa". [51]

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Sobre o autor
Thiago Cássio D'Ávila Araújo

Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (PGF/AGU) em Brasília/DF. Foi o Subprocurador Regional Federal da Primeira Região (PRF1). Ex-Diretor Substituto e Ex-Diretor Interino do Departamento de Contencioso da Procuradoria-Geral Federal (DEPCONT/PGF), com atuação no STF e Tribunais Superiores; Ex-Coordenador do Núcleo de Assuntos Estratégicos do Departamento de Contencioso da Procuradoria-Geral Federal (NAEst/DEPCONT/PGF); Ex-Coordenador-Geral de Matéria Finalística (Direito Ambiental) e Ex-Consultor Jurídico Substituto da Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente (CONJUR/MMA); Ex-Consultor Jurídico Adjunto da Matéria Administrativa do Ministério da Educação (MEC); Ex-Assessor do Gabinete da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça. Desempenhou atividades de Procurador Federal junto ao Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dentre outras funções públicas. Foi também Conselheiro Titular do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/2001) e Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/2010). Em 2007, aos 29 anos, proferiu uma Aula Magna no Supremo Tribunal Federal (STF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Thiago Cássio D'Ávila. Criminologia: a mudança do paradigma etiológico ao paradigma da reação social.: O que isso tem a ver com política criminal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2225, 4 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13269. Acesso em: 29 mar. 2024.

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