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Reflexões acerca da legitimidade das cláusulas pétreas

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7. O PARADOXO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS

Abordaremos, no presente tópico, o que se pode designar como o paradoxo das cláusulas pétreas. Gilmar Ferreira Mendes, lecionando sobre o escopo das limitações ao poder de revisão, afirma que [23]:

"tais cláusulas de garantia (Ewigkeitsgarantie) traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento, ou impliquem profunda mudança de identidade do telos constitucional. É que, como ensina Hesse, a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, na medida em que impede a efetivação de um suicídio do Estado de Direito democrático sob a forma de legalidade".

Entretanto, na medida em que as cláusulas pétreas visam a engessar o comportamento político das gerações que se lhes seguem, pela sua imutabilidade, e considerando que os cidadãos poderão, em um determinado momento futuro, não mais se conformar aos valores expressos em normas estabelecidas por gerações anteriores, esse fato tende a conduzir à ruptura constitucional, haja vista que tais cláusulas só poderão ser extintas, modificadas ou substituídas através de uma nova Constituição. Logo, se propelem à ruptura, as cláusulas pétreas significam um obstáculo natural e conceitual à perenidade constitucional por elas próprias perseguida. Acerca do tema, afirma Paulo Bonavides [24]:

"A pretensão à imutabilidade foi o sonho de alguns iluministas do século XVIII. Cegos de confiança no poder da razão, queriam eles a lei como produto lógico e absoluto, válido para todas as sociedades, atualizado para todas as gerações. Dessa fanática esperança comungou um membro da Convenção, conforme nos lembra notável publicista francês, pedindo durante os debates do Ano III a pena de morte para todo aquele que ousasse propor a reforma da Constituição. (...). A imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la equivaleria a cerrar todos os caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução e ao golpe de estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei fundamental."

Novamente trago à baila as palavras de Gilmar Ferreira Mendes [25]:

"Aí reside o grande desafio da jurisdição constitucional: não permitir a eliminação do núcleo essencial da Constituição, mediante decisão ou gradual processo de erosão, nem ensejar que uma interpretação ortodoxa acabe por colocar a ruptura como alternativa à impossibilidade de um desenvolvimento constitucional legítimo."

O argentino Jorge Reinaldo Vanossi está entre os juristas que repudiam as cláusulas pétreas, por entendê-las inúteis e até contraproducentes. O referido jurista elenca uma série de argumentos contrários às mesmas, a saber [26]:

"a) a função essencial do poder reformador é a de evitar o surgimento de um poder constituinte revolucionário e, paradoxalmente, as cláusulas pétreas fazem desaparecer essa função; b) elas não conseguem se manter além dos tempos normais e fracassam nos tempos de crise, sendo incapazes de superar as eventualidades criticas; c) trata de um ‘renascimento’ do direito natural perante o positivismo jurídico; d) antes de ser um problema jurídico, é uma questão de crença, a qual não deve servir de fundamento para obstaculizar os reformadores constituintes futuros. Cada geração deve ser artífice de seu próprio destino."

O renomado professor Jorge Miranda, catedrático da Universidade Católica de Portugal e da Universidade de Lisboa, já propôs uma revisão periódica das cláusulas pétreas na Constituição portuguesa, e em qualquer outra Constituição que as tenha, com vistas a atenuar o multicitado paradoxo [27]. Há que se buscar uma solução quanto ao problema em apreço, pois, se é preciso conferir um mínimo de estabilidade às constituições, é igualmente necessário não aprisionar o pensamento político das gerações que se seguem à feitura de uma Constituição. Nesse ponto, a revisão periódica poderia constituir-se em meio efetivo de manifestação de soberania popular, e uma homenagem à observância e reafirmação do princípio democrático.


8. ANÁLISE DA LEGITIMIDADE DAS CLÁUSULAS DE IMUTABILIDADE NO REGIME DEMOCRÁTICO

Em face da situação adrede relatada, impõe-se um questionamento inevitável: justifica-se, dentro de uma perspectiva democrática, que uma decisão política tomada no passado – às vezes muito distante – possa bloquear perenemente o pensamento dos indivíduos por intermédio das cláusulas pétreas? Ou, no dizer do professor Vital Moreira [28]:

"E é fácil ver que neste ponto se liga uma das mais problemáticas das questões que o princípio democrático coloca ao constitucionalismo, nomeadamente a saber em que medida é que o poder constituinte pode constranger ad eternum a vontade democrática para o futuro."

Esmiuçando a questão, trago o ensinamento de Raúl Gustavo Ferreyra [29]:

"El ideal de la autodeterminación requiere que el orden social y jurídico sea creado por decisión de los ciudadanos, y que conserve su fuerza obligatoria mientras disfruta de la aprobación de ellos. La transformación del principio de autodeterminación política en la regla de la mayoría es otro paso singular en la metamorfosis de la idea de libertad.

(…).

Así definida, la democracia es una forma para la producción del ordenamiento. Puede leerse en Kelsen que la participación en el gobierno, es decir, en la creación y aplicación de las normas generales que constituyen la comunidad, es la característica esencial de la democracia. Por consiguiente, la democracia es esencialmente un gobierno del pueblo, donde el principal valor que la democracia intenta realizar es el de igual libertad política. El procedimiento democrático, en tanto predicable del procedimiento por intermedio del cual se genera el orden jurídico, se funda en la igual libertad política, cuya realización racional exige optar por el principio de la mayoría."

Registre-se que a previsão de procedimentos mais complexos para alteração das normas constitucionais (quórum qualificado e votação em dois turnos) não comprometem, e a nosso ver, até favorecem, a manutenção do regime democrático. Dessa forma, torna-se mais difícil que grupos organizados formem maiorias eventuais e precárias a fim de desfazer decisões fundamentais tomadas pela sociedade em assembléia constituinte. Isso não pode servir de base, entretanto, para a instituição de cláusula de proibição de qualquer discussão política sobre parte da Constituição, especialmente se esse procedimento é empregado de forma excessivamente ampla. Em suma, não existe incompatibilidade entre rigidez e democracia, mas entre vedação de discussão e democracia [30].

Pode-se ir além: em que medida a função de custodiar as gerações futuras deve ser entregue a um órgão sem legitimidade democrática direta, como o Supremo Tribunal Federal? É nessas perguntas que vamos nos concentrar.

Ao impor as indigitadas limitações às gerações futuras, o constituinte demonstrou um alto grau de desconfiança no sistema político que estava sendo produzido. Isso porque a existência e vigência das cláusulas pétreas constituem obstáculo deliberado à livre manifestação da soberania popular. Além disso, as cláusulas de imutabilidade geram a impossibilidade de modificação da Carta Magna para acompanhar as alterações constantes do mundo globalizado, cuja evolução se dá em uma velocidade sem precedentes. Miguel Reale, a propósito, cunhou a expressão autoritarismo normativo para designar a ausência de legitimidade na estipulação de cláusulas pétreas [31].


9. O PAPEL DO STF NA DELIMITAÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS

A delimitação do alcance e do sentido das cláusulas pétreas se dá por meio de sua interpretação, como bem esclarece José Joaquim Gomes Canotilho [32]:

"Realizar a Constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais. Qualquer constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através da sua realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos constitucionais que, na actividade legiferante, administrativa e judicial, aplicam as normas da constituição. Nesta ‘tarefa realizadora’ participam ainda todos os cidadãos - ‘pluralismo de intérpretes’ - que fundamentam na constituição, de forma direta e imediata, os seus direitos e deveres."

O defensor das cláusulas pétreas não é outro que não o guardião da Constituição Federal, ou seja, o Supremo Tribunal Federal. Então, a Excelsa Corte é quem define o conteúdo das cláusulas pétreas e os seus alcance, sentido e limites. Nesse sentido, observe-se a lição de José Eduardo Nobre Matta [33]:

"De fato, mais de uma vez foi intentado o controle de constitucionalidade de emenda constitucional, sob o argumento de contrariedade de cláusulas pétreas, já sob a égide da Carta de 1988. De seu turno, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se reiteradamente ressalvando para si tal mister".

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal está se transformando em uma constituinte permanente – na feliz expressão cunhada por Francisco Campos na década de 50 –, sem que tenha legitimidade direta advinda do povo para tanto. Acentuando o perigo dessa proeminência do Poder Judiciário como último intérprete da Carta Magna, e da crescente judicialização da política, Marcelo Casseb Continentino assevera [34]:

Pois se ela [a judicialização da política] significar a delegação da vontade do soberano a um corpo especializado de intérpretes da Constituição, essa "substituição do cidadão pelo juiz – enquanto fonte do conteúdo das normas jurídicas – não poderá ser favorável a uma política deliberativa fundada no autogoverno, nem ao desenvolvimento da Democracia regida por cidadãos ativos.

Em virtude disso, não se pode deixar de ter em mente que a interpretação das cláusulas pétreas deve ser restritiva, para dar maior valor ao princípio democrático, pois quanto maior o alcance das cláusulas pétreas, menores serão as possibilidades de mudanças introduzidas pelo Parlamento. Nesse diapasão, transcrevo a lição de Vital Moreira [35]:

"Porém, quatro revisões depois, tem de constatar-se que a Constituição Portuguesa mudou muito, e mudou em termos substanciais, mesmo em aspectos inicialmente vedados à liberdade da revisão. Como foi isso possível? Foi possível, por um lado, através de uma interpretação soft das cláusulas pétreas, que as reduziu à salvaguarda de princípios genéricos, mais do que à garantia do concreto regime estabelecido nas formulações constitucionais".

Esse ponto não é comumente observado pela doutrina e pela jurisprudência, que costumeiramente adotam interpretações demasiado extensivas do alcance das cláusulas pétreas.

Exemplo disso é a interpretação da cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, inciso IV, qual seja, "os direitos e garantias individuais". A fórmula utilizada pelo constituinte foi muito genérica, o que, por um lado, contribuiu para o surgimento de controvérsias entre os juristas, mas por outro, permite a evolução do sentido das cláusulas pétreas através da interpretação do Supremo Tribunal Federal. A doutrina e a Suprema Corte vêm entendendo que se enquadram nesse conceito, além dos previstos no art. 5º, os direitos e garantias sociais, os direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos e outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados – em suma, todo o conteúdo do título II da CF. A título ilustrativo, observe-se o julgamento da ADIN 939-07/DF, em que o STF considerou cláusula pétrea o princípio da anterioridade tributária, contida no art. 150, III, b, da CF/88 [36].

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Nesse exato sentido, trago à colação a lição de Ivo Dantas [37]:

"Assim entendidos, ao fixar o art. 60, §4º, inciso IV, os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, deverão estes ser interpretados não apenas como aqueles enumerados no art. 5º, mas, igualmente, todos os constantes do Título II da Constituição Federal.

Mas não é só.

Decorrência do §2º do art. 5º e do caput do art. 7º, fica reconhecida a existência de outros direitos individuais espalhados pela Constituição Federal, dentre os quais se poderá fazer referência a alguns incisos do art. 37, aos arts. 38, 39, 42.

Finalmente, citem-se direitos consagrados no Título VIII e que representam o desdobramento do que está dito no art. 6º, ao determinar que ‘são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição’.

Todas estas matérias, a partir da decisão do STF, incluem-se nas denominadas cláusulas pétreas, mais precisamente, no inciso IV do art. 60, não podendo ser, nem ao menos, objeto de deliberação qualquer proposta que atente contra eles."

Como se vê, o catálogo de cláusulas pétreas na Constituição brasileira é excessivamente genérico, deixando ao encargo do STF a definição do seu sentido e dos seus limites. É o que assevera Cláudia de Góes Nogueira [38]:

"As cláusulas pétreas existentes no ordenamento constitucional brasileiro, referentes à proteção absoluta dos direitos e garantias fundamentais, foram elaboradas de maneira excessivamente genérica, contribuíram muito mais para a criação de cizânia entre os juristas do que efetivamente para a justa resolução do problema."

Por esse motivo, surgem dúvidas as mais diversas sobre a sua aplicação cotidiana. Por exemplo: a pena de morte e a redução da idade mínima para imputabilidade penal (art. 228 da CF) são cláusulas pétreas?

O Pleno do STF já teve a oportunidade de decidir que a proibição da pena de morte é cláusula pétrea, no julgamento do MS 21.311-6/DF (Rel. Min. Néri da Silveira, Diário da Justiça, Seção I, 25 mai. 1999, p. 3).

Quanto à inimputabilidade penal, prevista no art. 228 da CF, é uma questão muito polêmica. Há um verdadeiro clamor de parte da sociedade para que a imputabilidade penal seja estendida aos menores de dezoito anos [39]. Sobre essa matéria, há que citar-se a lição de Eugênio Terra [40]:

"Com a presente exposição, procura-se demonstrar que o art. 228 da Constituição é uma cláusula pétrea e, portanto, insuscetível de modificação pelo Poder Reformador, pois erigida a tal condição por uma opção política do Poder Constituinte".

Na defesa da imutabilidade da idade de imputabilidade penal manifesta-se também Gercino Gerson Gomes Neto, no artigo "A inimputabilidade penal como cláusula pétrea" [41].

Podemos citar ainda outras questões hipotéticas que exemplificam o papel do STF na delimitação das cláusulas pétreas. No que tange à forma federativa de Estado, verbi gratia: não há dúvida de que pode haver mudança na configuração da Federação, com a extinção de Estados-membros e a criação de outros; mas quantos Estados-membros têm que existir para que seja mantida a forma federativa? Com relação à própria existência da democracia: a previsão do voto periódico seria lesionada caso fosse aprovado um mandato de 15 anos? A resposta para ambas as questões é a mesma: incumbirá ao STF decidir, quando for para tanto provocado.

Outro exemplo ainda pode ser elencado: o STF vinha entendendo sistematicamente que a criação de Conselhos Estaduais para o controle externo do Poder Judiciário era inconstitucional, pois violava o princípio da separação dos Poderes, como ocorreu, por exemplo, no julgamento da ADin 135/PB, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. em 21 nov. 1996, Informativo STF nº 54, e da ADin 98-5/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, Seção I, 31 out. 1997, p. 55.539 [42]. Esse entendimento foi cristalizado na Súmula 649 do STF, com o seguinte teor: "É inconstitucional a criação, por Constituição estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades".

Posteriormente, na primeira Sessão Administrativa do STF no ano de 2004, realizada em 5 de fevereiro de 2004, o Plenário do Tribunal fixou posição institucional sobre o denominado "Controle Externo do Poder Judiciário", à época ainda em tramitação no Congresso Nacional, nos seguintes termos [43]:

"Após a manifestação de todos os Ministros apurou-se: os Ministros Maurício Corrêa, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Cezar Peluzo são favoráveis à instituição de um Conselho Superior formado apenas por magistrados, podendo oficiar junto a esse Órgão, sem direito a voto, membros do Ministério Público e integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil; o Ministro Sepúlveda Pertence manifestou-se a favor, desde que limitada sua composição a Magistrados, representantes da OAB e do Ministério Público; e os Ministros Celso de Mello, Nelson Jobim, Carlos Britto e Joaquim Barbosa externaram sua concordância com a criação do Conselho nos termos em que previsto na PEC 29, em tramitação no Senado Federal, composto por nove magistrados, dois representantes da OAB, dois do Ministério Público e dois da sociedade, esses últimos indicados pelo Senado Federal e Câmara dos Deputados. Dessa forma, o Tribunal, por maioria, adotou posição institucional favorável à criação do Órgão, restrita sua composição, porém, a membros do Poder Judiciário, admitindo que perante ele oficiem representantes do Parquet e da Advocacia".

Contudo, o Excelso Pretório findou por mudar de entendimento, quando entendeu, por maioria, pela constitucionalidade da criação do Conselho Nacional de Justiça com representantes externos ao Poder Judiciário, como previsto na Emenda Constitucional nº 45/04, com os fundamentos seguintes [44]:

"remontando à matriz histórica e à evolução da doutrina política que inspiraram nosso sistema constitucional da separação dos Poderes, afirmou-se que o constituinte desenhou a estrutura institucional desses Poderes de forma a garantir-lhes a independência no exercício das funções típicas, por meio da previsão de autonomia orgânica, administrativa e financeira, temperando-a, no entanto, com a prescrição de outras atribuições, muitas de controle recíproco, cujo conjunto forma um sistema de integração e cooperação preordenado a assegurar equilíbrio dinâmico entre os órgãos, em benefício da garantia de liberdade, consistindo esse quadro normativo em expressão natural do princípio na arquitetura política dos freios e contrapesos. Afirmou, ainda, que o CNJ é órgão próprio do Poder Judiciário (CF, art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros desse mesmo Poder (CF, art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, assim, sem vestígios de representação orgânica, dois dos quinze membros, não podendo essa indicação se equiparar a nenhuma forma de intromissão incompatível com a idéia política e o perfil constitucional da separação e independência dos Poderes. Salientou-se, ademais, que a composição híbrida do CNJ não compromete a independência interna e externa do Judiciário, porquanto não julga causa alguma, nem dispõe de atribuição, de nenhuma competência, cujo exercício interfira no desempenho da função típica do Judiciário, a jurisdicional".

Aduz-se do exame do indigitado julgado que somente o Ministro Marco Aurélio julgou integralmente procedente a ação direta de inconstitucionalidade. Os Ministros Ellen Gracie e Carlos Velloso julgaram parcialmente procedente a ação, para declarar a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e XIII do artigo 103-B (i.e., retiravam do CNJ todos os membros externos ao Poder Judiciário). O Ministro Sepúlveda Pertence, por sua vez, julgou procedente a ação em menor extensão, entendendo pela inconstitucionalidade somente do inciso XIII (que prevê a presença de 2 (dois) cidadãos escolhidos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal).

A evolução da jurisprudência do STF a respeito dessa matéria demonstra o quão instável pode ser o posicionamento de nossa Corte Suprema, variando de acordo com fatores como o momento político vivido pelo país e a pressão popular.

O papel predominante do Excelso Pretório na definição das cláusulas pétreas torna-se ainda mais perigoso quando se percebe as mudanças do modo de atuação dos juízes nos tempos atuais. Andreas Krell demonstra bem essa ruptura nas funções clássicas dos juízes e a aproximação cada vez maior entre o Direito e a Política [45]:

"A concretização desses direitos sociais exige alterações nas funções clássicas dos juízes que se tornam co-responsáveis pelas políticas dos outros poderes estatais, tendo que orientar a sua atuação para possibilitar a realização de projetos de mudança social, o que leva à ruptura com o modelo jurídico subjacente ao positivismo, a separação do Direito da Política. A questão hermenêutica dos Direitos Fundamentais deixa de ser um problema de correta subsunção do fato à norma para se tornar um problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação conforme um projeto ideológico (e não lógico).

Segundo os defensores do "judicial ativism" nos EUA, o juiz deve assumir a nova missão de ser interventor e criador autônomo das soluções exigidas pelos fins e interesses sociais, tornando-se responsável ‘pela conservação e promoção de interesses finalizados por objetivos sócio-econômicos’. Isto significa uma mutação fundamental que transforma progressivamente o juiz em administrador e o convoca a ‘operar como agente de mudança social’." (grifos no original)

Gustavo Just cita o poder de reformar a Constituição como um instrumento por intermédio do qual o Poder Legislativo pode contrabalançar o poder do STF de interpretar em definitivo as normas constitucionais. Ao Congresso Nacional é dado, por exemplo, editar uma emenda à Constituição para afastar uma interpretação atribuída à norma constitucional pelo Excelso Pretório. Nesse sentido, o autor afirma [46]:

"Ademais, como dito acima, o poder reformador – no caso do Brasil inteiramente atribuído ao Congresso Nacional – tem sempre a possibilidade de afastar uma mutação considerada inconveniente, aprovando um novo texto frontalmente contrário ao sentido que tenha sido fixado, por exemplo, pelo tribunal constitucional."

Contudo, as próprias emendas constitucionais poderão ser interpretadas como inconstitucionais pela Suprema Corte, e certamente o serão, caso se oponham frontalmente à jurisprudência consolidada do tribunal. De qualquer forma, esse raciocínio do referido autor não se aplica às cláusulas pétreas, inatingíveis que são pelas emendas constitucionais. Nessa hipótese, como se percebe, o Congresso Nacional nada poderá fazer contra o entendimento adotado pelo STF, que se torna, de fato, o intérprete final dessas normas que regerão nossa sociedade até o fim dos tempos – ou até o advento da próxima Carta Magna.

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Sobre o autor
Frederico Augusto Leopoldino Koehler

Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife-PE. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor Substituto do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Faculdade Boa Viagem - FBV. Professor do Curso Espaço Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. Reflexões acerca da legitimidade das cláusulas pétreas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2233, 12 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13311. Acesso em: 26 abr. 2024.

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