Artigo Destaque dos editores

A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.

Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

Exibindo página 3 de 3
25/08/2009 às 00:00
Leia nesta página:

5. O PROBLEMA DA DEFESA TÉCNICA EFETIVA

Neste tópico, discorre-se sobre o problema da defesa técnica efetiva. Fernandes (2005, p. 287) afirma que a defesa técnica "deve ser efetiva, não sendo suficiente a aparência de defesa". E completa: "O fato de ter o réu defensor constituído, ou de ter sido nomeado advogado para sua defesa, não é suficiente. É preciso que se perceba, no processo, atividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado." (p. 287) Para fins deste trabalho, far-se-á uma diferenciação entre (a) defesa técnica formalmente efetiva e (b) defesa técnica realmente efetiva. Ambas têm em comum a plena regularidade perante o ordenamento jurídico. Contudo, a defesa técnica realmente efetiva vai além da mera formalidade jurídica. É nela que se tentará desenvolver a aplicação da doutrina de Amartya Sen ao direito de defesa técnica. Certamente, nem tudo é construído de certezas absolutas, ou divisões entre paridades incompatíveis e inexoravelmente díspares. Então, pode haver defesa técnica que seja, ao mesmo tempo, formal e realmente efetiva, o que, no nosso entender, seria a defesa técnica ideal.

5.1. A Súmula 523 e o Princípio do Prejuízo

Há momentos em que os órgãos de atuação jurisdicional não aceitam a defesa técnica formalmente efetiva [08]. Para tentar dirimir o problema o Supremo Tribunal Federal promulgou a Súmula 523: "No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu." A Súmula 523 do STF consagra o brocardo pas de nullité sans grieff, o princípio do prejuízo como ensinam Grinover et al (2006, p. 29). Deve haver prova do prejuízo para o réu, mesmo que a defesa seja deficiente. Encarando do ponto de vista formal-jurídico, a defesa deficiente que não causa prejuízo ao réu é nulidade relativa, devendo ser provada pela parte, pois "somente uma análise do conjunto de provas, alegações etc., ou até uma nova prova de circunstância que poderia ter sido deduzida, levarão à conclusão sobre a efetividade do prejuízo ao direito de defesa". (GRINOVER ET AL, 2006, p. 32) Abaixo, exemplos favoráveis e contrários da aplicação do princípio do prejuízo:

TACRSP: Quando a defesa técnica, em sua manifestação, não é benéfica ao réu, em sua sorte processual, defesa não é. Vale dizer, é inexistente, nula, prejudicial ao ofendido, nulificando a garantia constitucional, a promessa estatal pro cive. (RT 575/396. (MIRABETE, 2004, p. 661).

Processual penal – Defesa ineficaz – Inocorrência – Improvimento do apelo. Se houve intervenção do procurador do réu em todas as fases do procedimento, manifestando-se nos momentos próprios e de acordo com a conveniência da teses esposada, não há de se cogitar de falta de defesa ou de deficiência apta a anular o processo, máxime se nas razões recursais o próprio apelante afirma que sua condenação guarda coerência com a prova existente nos autos, posto que essa concordância mostra não ter sofrido qualquer prejuízo decorrente da atuação do seu patrono, tenha sido este brilhante, ou não, e, conseqüentemente, afasta o reconhecimento de nulidade (inteligência da Súmula n. 523, do STF) (TJAP, Acr n. 372.95-Santana, Rel. Des. Mário Gurtyev, Câmara Única, j. 6/6/1995, DOE n. 1.105 de 30/06/1995). (MOSSIN, 2005, p. 302)

A mesma Súmula 523 do STF foi interpretada, como visto nos dois exemplos, ora conforme a real efetividade (mas segundo o princípio do prejuízo), ora de acordo com a mera formalidade. Certamente, os julgadores têm seus motivos diante de cada caso concreto, porém, não se poderiam passar desapercebidas as posições de interpretação com relação à defesa técnica.

5.2. Defesa Técnica Formal e Realmente Efetiva

Na ementa contida na obra de Mossin, há uma clara demonstração do que seria a defesa técnica formalmente efetiva. Houve atendimento das exigências legais para a configuração de defesa técnica, sem que se considerasse a eficiência da atuação do advogado. O defensor técnico, aquele que deveria suprir a deficiências de "vetores de funcionamentos" do acusado, não agiu para realmente compensá-las. O acusado, se teve oportunidade de escolher seu advogado, o fez pela relação de confiança que deveria existir entre ambos, na esperança de que – na qualidade de técnico qualificado – desempenhasse a melhor defesa possível. Contudo, no caso em tela, o resultado foi o mesmo que se o acusado não tivesse oportunidade de escolher seu defensor. A defesa técnica foi considerada somente num plano formal, não num plano real. O "vetor de funcionamento" que seria suprido pelo seu advogado não ocorreu efetivamente, o que prejudicou o seu "conjunto capacitário" considerado no plano real. Não lhe foi dada a devida oportunidade de defesa técnica, embora no âmbito técnico-jurídico, tudo tenha transcorrido na mais perfeita legalidade e normalidade. O acusado, em tese, foi ludibriado em sua defesa técnica, pois, ao escolher seu advogado, o fez na crença de tê-lo constituído como o melhor procurador para gerir seus interesses no processo-crime no qual era perseguido. Não tendo suprido esse "vetor de funcionamento", não teve como completar seu "conjunto capacitário", deflacionando seu rol de "capacidades", em prejuízo da sua liberdade substantiva.

Mais outro adendo. Para ter validade no ordenamento jurídico, toda defesa técnica realmente efetiva deve ser uma defesa técnica formalmente efetiva. Não se trata de um jogo de "vale-tudo", portanto, a legislação, como um todo, deve ser respeitada. Aliás, cometer atos ilícitos em nome da defesa técnica realmente efetiva seria um marco de irracionalidade e "non-sense" jurídico. A jurisprudência citada por Mirabete (2004, p. 661) contextualiza a questão da defesa técnica realmente efetiva por não aceitar a mera formalidade da atuação do advogado. O advogado como prestador de serviço público veio suprir um "vetor de funcionamento" ausente no acusado. E, realmente, o fez, ampliando o "conjunto capacitário" do acusado, o que, por si só, promoveu-lhe mais "capacidades" e, conseqüentemente, liberdade substantiva.

Hipoteticamente, o acusado pôde efetivamente escolher seu advogado e este realmente desempenhou o papel de defensor técnico. Então, a defesa técnica sendo formalmente efetiva (plano deontológico) será justa se for realmente efetiva (plano ontológico). Pode-se propor que a defesa técnica realmente efetiva seja um princípio de hermenêutica no momento de avaliar problemas relativos à Súmula 523 do STF ou que lhes sejam similares. Não basta que o advogado seja eficiente só aos olhos da Lei. A efetividade da defesa técnica deve ser real, constada ontologicamente para que a formalidade concebida para dar segurança à legislação não seja utilizada instrumental e cabalmente para justificar o injustificável.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aparentemente, a doutrina do economista Amartya Sen nada tem, ou pouco tem, a ver com Direito Processual Penal. A tentativa deste trabalho é mostrar que não se pode encarar o Direito como puro "dever ser", sob o risco de se causar arbitrariedades no plano real, o "mundo do ser". Partiu-se da idéia de que a liberdade substantiva é algo que pode, realmente, ser usufruído. Não basta que a liberdade substantiva seja exposta como acessível, formalmente a todos, mas materialmente disponível apenas a alguns. A liberdade substantiva decorre da oportunidade real de escolha. Neste estudo, tentou-se demonstrar que a defesa técnica realmente efetiva é um elemento da liberdade substantiva. O fato de um acusado poder, realmente, escolher o advogado de sua preferência pode influir na sua liberdade substantiva. Caso escolha um advogado que venha a lhe promover uma defesa técnica realmente efetiva, o acusado terá suprido o "vetor de funcionamento" que não tem, possibilitando-lhe mais "conjuntos capacitários" no seu rol de "capacidades" (combinações de "funcionamentos") e, por conseguinte, maior amplitude de liberdade substantiva. Se escolher um advogado que lhe faça uma defesa técnica formalmente efetiva, o acusado terá suprido apenas de modo formal o "vetor de funcionamento" que não tem. A assistência meramente formal lhe causará prejuízos na constituição do seu "conjunto capacitário", tolhendo-lhe suas "capacidades" (menos possibilidades de combinações de "funcionamentos"), ou seja, sua liberdade substantiva será menor.

Exemplificando. Um sujeito tem um advogado que meramente realiza todos os atos processuais, desde a fase do inquérito policial até a sentença transitar em julgado. Esse advogado apresentou todas as peças pertinentes, contudo sua argumentação deixou a desejar, ou não enfrentou adequadamente as teses da acusação, seja por sua deficiência profissional ou por reles desleixo. Não haveria nulidade nem prejuízo para o réu nesse caso, se a interpretação da Súmula 523 do STF for realizada no aspecto puramente formal. Afinal, o advogado realizou todos os atos processuais pertinentes o processo e não haveria de se falar em nulidade.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Numa interpretação da Súmula 523 do STF pela doutrina de Amartya Sen, o advogado em questão deveria não somente acompanhar todos os atos processuais tempestivamente, mas também atuar com eficiência e eficácia, de modo a ter desenvoltura profissional e tal nível de atenção à sua atuação no processo para que realmente possa defender o seu cliente. De que adiantaria uma peça, um recurso ou uma ação autônoma de impugnação propostos tempestivamente, porém, sem maior compromisso para rebater a acusação com efetividade?

Realizar somente os atos processuais "de qualquer jeito", então, seria passível de nulidade, pois seria quase o mesmo, em termos efetivos, de não se ter feito nada em prol do cliente. Nesse contexto, constata-se que a defesa técnica vista somente do ponto de vista formal não é suficiente. Para a correta administração da justiça, há necessidade que a defesa técnica seja formal e realmente efetiva, para ser válida, no plano deontológico, e justa no plano ontológico. O mais usual é se verificar se a defesa técnica é efetiva somente em termos formais. Então, a verificação da defesa técnica realmente efetiva, no mundo do ser, poderia ser utilizada como princípio de hermenêutica nos casos afeitos ao assunto, como os da Súmula 523 do STF. Ademais, propõe-se uma nova redação para a Súmula 523 do STF: "No processo penal, a falta de defesa realmente efetiva – e não somente a falta de defesa formalmente efetiva - constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu." Além da formalidade legal, há de se aplicar medidas de eqüidade para que não ocorram maiores injustiças, mesmo com o cumprimento estrito da Lei. Aliás, um Estado Social e Democrático de Direito com justiça não poderia, jamais, acolher a assertiva de Karl Marx de que o Direito Burguês é o tratamento igual dos desiguais. Uma sociedade realmente justa preza pela real efetividade da defesa técnica dos acusados. Se assim não o for, é covardia. Não vale.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 16. tiragem. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CINTRA, Antonio C. de Araujo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido R. Teoria Geral do Processo. 22. ed. São Paulo: RT, 2006.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2005.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Carlos Magalhães. Nulidades no Processo Penal. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

KERSTENETZKY, Celia Lessa. Desigualdade e pobreza: lições de Sen. Revista Brasileira de Ciências Sociais, fev. 2000, v. 15, n. 42, p. 113-122.

LOIOLA, Mariana. Longo Aprendizado. Ajuda Brasil. Rio de Janeiro, 30 de nov. 2066. Disponível em: <http://www.ajudabrasil.org/noticias.asp?idNoticia=772>. Acesso em :15 nov. 2006. 15h38’.

MIRABETE, Julio F. Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003

________________ Código de Processo Penal Comentado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Nulidades no Direito Processual Penal. 3. ed. Barueri: Manole, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2006.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Del Rey, 2004.

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como Liberdade. 5. reimp. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão técnica Ricardo Donimelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

__________________ Desigualdade Reexaminada. Tradução Ricardo Donimelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001.


Notas

  1. O termo foi escrito originalmente em inglês como "freedom". A outra palavra designativa de liberdade, "liberty", foi encarada como liberdade negativa, como os Direitos Humanos de Primeira Geração, por exemplo. No decorrer deste texto, ver-se-á que o elemento de liberdade substantiva coincide com o conceito de "vetor de funcionamento" na constituição de "conjuntos capacitários".
  2. Em termos resumidos, a Guarda Pretoriana era um corpo militar de elite destinado a proteger os Imperadores Romanos e seus asseclas. Obviamente, não fazemos comparação da Guarda Pretoriana com o Ministério Público com relação ao poder político adquirido pela primeira, apenas salientamos que ambas corporações são constituídas por membros com habilidades acima da média.
  3. De maneira alguma pretendemos desprestigiar os demais profissionais da área jurídica. Há uma preocupação meramente exemplificativa, no intuito de explicar a necessidade de uma defesa técnica realmente eficaz e não meramente formal, como se explicará posteriormente, neste texto.
  4. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
  5. Estimativa da população brasileira, de acordo com o Governo Federal, em 2006.
  6. Os funcionamentos ("functionings") são vistos pelo economista indiano, numa interpretação particular, como as "virtudes" de Aristóteles, que, numa conceituação simples, seriam as qualidades necessárias para que o ser humano atinja um bem maior, que, para os gregos antigos, era a felicidade. Sen, por outro lado, simplesmente escreve que o conceito de funcionamentos "reflete as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter." (2000, p. 95)
  7. Traduzido de "capability set". O "conjunto capacitário" é a liberdade que uma pessoa tem de "escolher dentre vidas possíveis". (Sen, 2001, p. 80)
  8. Mirabete (2003, p. 344) define como "virtual" a defesa deficiente.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.: Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2246, 25 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13366. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos