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Ciclo completo de polícia: a desmistificação

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Na atualidade é cada vez mais patente a incompreensão da população acerca da existência de várias Polícias.

Em tempos nos quais ganha fôlego o famigerado "Ciclo Completo de Polícia" – execução das funções judiciário-investigativa e ostensivo-preventiva pela mesma Instituição Policial[01] – a seguinte pergunta torna-se recorrente: não seria melhor descomplicar criando uma única Polícia?

Para responder tal indagação é importante pontuar a diferenciação entre Polícias feita pela própria Constituição Federal, em seu artigo 144, o qual destaca a Segurança Pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos.

Pois bem. Nesse dispositivo são arrolados 6 (seis) órgãos como gestores da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio. São eles: Polícia Federal (CF: 144, inciso I), Polícia Rodoviária Federal (CF: 144, inciso II), Polícia Ferroviária Federal (CF: 144, inciso III), Polícia Civil (CF: 144, inciso IV), Polícia Militar e Corpo de Bombeiros (CF: 144, inciso V).

Nesse contexto, é possível identificar duas funções primordiais – repressiva e preventiva – exercidas individualizadamente – como regra – por cada uma dessas Instituições. Tirante a Polícia Federal, constitucionalmente contemplada de natureza híbrida – atividade policial repressiva e preventiva: artigo 144, parágrafo primeiro, incisos I, II, III e IV da Constituição Federal –, as outras Polícias encetam tarefas essencialmente diferentes, embora complementares.

Enquanto à Polícia Civil toca a investigação dos delitos ocorridos, tarefa de Polícia Judiciária, pois atua, repressivamente, depois do acontecimento criminoso – de maneira a desvendar a autoria delitiva e sua materialidade – às Polícias Rodoviária Federal, Ferroviária Federal e Militar incumbem a função ostensiva de preservação direta da ordem pública, inibindo a própria prática do delito (sendo franqueada a esta última, excepcionalmente, o mister de apurar autoria e materialidade nos crimes tipicamente militares).

Isto não acontece por acaso, uma vez que a Magna Carta optou por determinar a desconcentração administrativa de tais funções, alocando-as em diversas Instituições separadamente, a fim de homenagear o princípio da eficiência – artigo 37, caput da Constituição Federal. Destarte, o que se pretendeu – pelo menos em regra, ressalvada a Polícia Federal – foi especializar a prestação do serviço público na área de Segurança. Nesse tocante muito bem salienta o professor Marçal Juste Filho[02]:

"(...) não se pode negar a relevância desse processo de desconcentração para tornar mais racional o exercício do poder estatal. Mais ainda, essa ampliação orgânica reduz o poder político-administrativo e amplia a dimensão democrática da organização estatal."

Não é á toa que a desconcentração administrativa traz consigo a tônica do princípio da especialização, por condensar determinada função (vg. investigação criminal) dentro da estrutura da Pessoa Jurídica, direcionando-a a um único órgão (vg. Polícia Civil), de modo a resguardar o interesse público consistente numa proba, célere e proficiente repressão penal.

Repise-se, referido raciocínio advém de texto explícito oriundo do mais alto grau normativo, possuindo status constitucional, tanto no âmbito federal (artigo 144 e parágrafos da Constituição Federal) quanto na esfera estadual bandeirante (artigos 140 e 141 da Constituição Estadual de São Paulo).

Ainda que assim não fosse, ou seja, considerando hipoteticamente ausente norma constitucional a respeito, cumpre rememorar que, a concentração de atribuições retiradas de vários órgãos e reunidas em um único, longe de ser panacéia para todos os males – como é largamente alardeado no caso do "Ciclo Completo de Polícia" – constitui mais estratégia de marketing político do que resposta aos anseios da sociedade.

Saliente-se, nesse diapasão, o recente inchaço da Receita Federal, cujas competências tradicionais foram adicionadas a outras – oriundas do INSS –, o que se convencionou chamar de Super-Receita. Embora a alcunha seja reluzente, não foi isso que mitigou as demoradas filas de quem precisa solicitar benefícios assistenciais ou previdenciários nos balcões do INSS.

A seu turno, essa mesma medida também não contribuiu para a exasperação arrecadatória na seara tributária ou para o recrudescimento da fiscalização e conseqüente sancionamento de sonegadores.

Em verdade, a compactação de atribuições em solitário órgão (ou mesmo pessoa) não é sinônimo de eficiência ou "simplificação". Tudo depende da seriedade e comprometimento que dada centralização organizacional representa. Nos dizeres do insigne mestre José dos Santos Carvalho Filho[03] ecoa insofismável conclusão:

"(...) Com efeito, nenhum órgão se tornará eficiente por ter sido a eficiência qualificada como princípio na CF. O que precisa mudar, isto sim, é a mentalidade dos governantes; o que precisa haver é a busca dos reais interesses da coletividade e o afastamento dos interesses pessoais dos administradores públicos. Somente assim se poderá falar em eficiência."

Nessa linha de conjecturas e adentrando especificamente na problemática do "Ciclo Completo de Polícia", impende frisar que não é novidade idealizar pretensa facilitação no exercício da atividade policial, cujo desiderato residiria em formar profissionais aptos a exercerem, concomitantemente, as tarefas de polícia repressiva e ostensiva a contento.

Todavia, além de esbarrar no perfil pessoal do policial, que o induz a ter maior tirocínio na execução da missão repressiva ou preventiva do Estado persecutor – o que, por si só, já representaria debilidade na prestação do serviço público –, afigura-se evidente que essa demasiada concentração apregoada pelo "Ciclo Completo de Polícia" milita em desfavor do próprio Estado Democrático de Direito.

Explica-se: o policial militar ao efetuar prisão em flagrante delito[04] é obrigado a conduzir o indivíduo à presença do Delegado de Polícia, operador do Direito, pertencente aos quadros da Polícia Civil, especializado em investigação criminal. Este utilizará o arcabouço normativo para corroborar ou não a prisão, lavrando, no primeiro caso, o auto respectivo.

Ou seja, sobressai, nesse tocante, a função fiscalizatória do Delegado de Polícia, o qual acaba por realizar verdadeiro controle de legalidade da custódia a ele apresentada, consistente na salvaguarda dos direitos fundamentais do conduzido em face de eventual arbítrio estatal. Em síntese, a Autoridade Policial em cotejo personifica o primeiro bastião da defesa dos direitos do homem e do cidadão.

Não há dúvida: a marca registrada de qualquer Estado Democrático de Direito é a divisão de funções para conseqüente controle simultâneo, já que o poder estatal em si é considerado único e indivisível. Aliás, foi essa constatação que motivou a Separação de Poderes – check and balances: art. 2.º CF – princípio idealizado por Aristóteles e aprimorado por Montesquieu.

Nessa cadência, claro se assevera que o princípio dos "pesos e contrapesos" permeia toda a Magna Carta, encontrando-se disseminada não só na repartição das funções estatais típicas – Legislativa, Judiciária e Executiva –, mas também na atuação do Tribunal de Contas (órgão auxiliar do Poder Legislativo que tem por função, entre outras, avaliar as contas do Executivo: artigos 73 e 74 da CF), na necessária participação do Ministério Público e da OAB na composição dos Tribunais ("quinto constitucional" e, no caso do Superior Tribunal de Justiça, "terço constitucional", o que repercute em um maior pluralismo, refletido no bojo das decisões superiores), na bicameralidade do Poder Legislativo Federal (Casa do Povo – Câmara dos Deputados – e Casa dos Estados – Senado Federal – que repartem incumbências importantes e dependem de cada qual para promulgar leis) e, por quê não, na divisão de atribuições relativas a cada Polícia Constitucional.

Por isso, indaga-se: caso uma só Instituição monopolizasse as funções inerentes ao uso da força estatal, qual seria a garantia do cidadão/conduzido que seus direitos seriam efetivamente observados? Aquele que efetuou a voz de prisão teria a imparcialidade necessária para considerar insubsistente restrição de liberdade ilegal da qual foi protagonista?

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Ora, parece salutar para a higidez democrática que a missão de captura do indivíduo e a ulterior análise da legalidade de tal ato – o qual suspende o direito ambulatorial do cidadão – sejam confiadas a Instituições distintas, para que, cada qual, possa fiscalizar e ser fiscalizada mutuamente. Mais ainda, a divisão de funções a par de permitir o controle simultâneo entre Polícias (repressiva e preventiva) prestigia a própria dignidade da pessoa humana – fundamento da República Federativa do Brasil alocado, não por acaso, no artigo 1.º, inciso III da Constituição Federal.

Com efeito, coloca-se em xeque a existência da primeira verificação estatal apta a filtrar e repelir vilipêndios aos direitos humanos fundamentais, numa evidente involução social animada por motivações políticas. Ao contrário, a tendência hodierna assenta-se na valorização do princípio da "vedação de retrocesso"; instituto concebido pelo preclaro jurista português Canotilho. Em seu magistério percebe-se a intenção de obstar qualquer alteração legislativa constitucional ou infra-constitucional que diminua a incidência de direitos humanos já consolidados.

Na esteira do aprimoramento progressivo das condições de vida da população, concebendo-se um piso inalterável de obediência e alcance aos direitos humanos praticados em dada comunidade, preleciona o citado mestre[05]:

"a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social"

Logo, eventual ingerência estatal, legislativa ou administrativa, que tenha por escopo elidir garantias essenciais já implementadas, inibindo a plena incidência da dignidade humana deve ser, in limine, rechaçada. Por isso mesmo, o "Ciclo Completo de Polícia" mostra-se pernicioso, já que decresce o controle policial mútuo, pensado para combater eventual arbítrio estatal, demolindo os andaimes ínsitos à irrestitrita satisfação da dignidade da pessoa humana.

Por tudo isso, emprestar ao "Ciclo Completo de Polícia" ares messiânicos beira a leviandade, não só por aviltar frontalmente a Constituição Cidadã, mas por representar um desserviço patente ao Estado Democrático de Direito, além de debilitar, em última análise, os pilares que escoram a dignidade da pessoa humana.


Notas

  1. RONDON FILHO, Edson Benedito. Unificação das Polícias Civis e Militares: ciclo completo de polícia. Monografia. Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2003.
  2. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Editora Saraiva, 2005, pg 95.
  3. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pg 24.
  4. Na prática das Delegacias, os policiais militares são os condutores/apresentantes das ocorrências criminais na grande maioria dos casos, não obstante a Lei Processual Penal facultar a prisão em flagrante por qualquer do povo (artigo 301 do CPP).
  5. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, pg 475/476.
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Sobre o autor
Fernando David de Melo Gonçalves

Delegado de Polícia em São Paulo. Pós-graduado “lato sensu” em Direito Administrativo pela Faculdade Damásio de Jesus.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Fernando David Melo. Ciclo completo de polícia: a desmistificação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2247, 26 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13396. Acesso em: 28 mar. 2024.

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