4 ANULAÇÃO DAS ADMISSÕES SEM CONCURSO
O art. 37, §2º, da Constituição, comina nulidade para os atos agressivos aos itens II e III, desse artigo.
Convém tecer ligeiras considerações sobre os modos de proclamação dessa nulidade, em cotejo com questionamentos feitos pelos atingidos pela medida.
4.1 Pela própria administração pública (autotutela), no cumprimento de termo de ajuste de conduta e por decisão judicial
A administração pública pode e deve anular seus atos eivados de nulidade (princípio da autotutela), mediante provocação ou "ex-officio". Esse princípio decorre do princípio da legalidade e representa o controle exercido pela administração sobre seus atos.
Assim, ao constatar alguma ilegalidade relativamente ao descumprimento do princípio do concurso público, deve a administração pública providenciar a anulação.
Igual providência (anulação) tem cabimento quando decorrer do cumprimento de termo de ajuste de conduta (ver Lei n. 7.347/1985, art. 5º, §6º) firmado pela administração pública infratora da regra do concurso público, sob pena de sofrer execução desse título extrajudicial.
E, obviamente, também deve a administração pública – desta vez não mais com base na autotutela, mas, sim, por força do controle judicial – implementar a anulação quando decorrente de decisão do Poder Judiciário.
4.2 É imprescindível o processo administrativo para anulação das admissões sem concurso operada em consequência de decisão judicial?
Que a administração tem o dever zelar pela regra constitucional do concurso público, inclusive anulando os próprios atos a ela contrários, não há dúvida.
A pergunta que se faz, nesse contexto, é: há necessidade, para a anulação do ato, de processo administrativo, notadamente com respeito ao contraditório e ampla defesa, como previsto no art. 5º, LV, da Constituição?
E quando a anulação decorrer de decisão judicial?
A indagação, à luz das decisões do STF sobre o tema, comporta duas soluções, conforme a fonte da anulação:
Quando essa anulação decorrer da aplicação do princípio da autotutela, segundo o STF,
"O entendimento da Corte é no sentido de que, embora a Administração esteja autorizada a anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais (Súmula 473 do STF), não prescinde do processo administrativo, com obediência aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório". (AI 710.085-AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julg. em 03-02-2009, 1ª Turma, publ. em 06-3-2009).
No entanto, em se cogitando de ato da administração no sentido de anular ato contrário à regra do concurso público, dando cumprimento a decisão judicial, particularmente a proferida em ADI, não há mais que se falar em instauração de processo administrativo, como se deduz do seguinte aresto:
"RECLAMAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 518/TO. CONCESSÃO DE PONTOS AOS DETENTORES DO TÍTULO DE "PIONEIROS DO TOCANTINS". ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO POR DECISÃO JUDICIAL. DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO PRÉVIO PARA EXONERAÇÃO DOS APROVADOS. 1. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 598/TO acarretou a nulidade de todo o certame e, conseqüentemente, dos atos administrativos que dele decorreram. 2. O estrito cumprimento da decisão proferida por este Supremo Tribunal Federal torna desnecessária a instauração de processo administrativo prévio à exoneração dos candidatos aprovados. 3. Reclamação julgada procedente". (STF, Rcl. n. 5819/TO, Pleno, rel. Min. Cármen Lúcia, publ. em 19-6-2009).
Pressupõe-se, aqui, que já houve a preservação dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa no processo judicial originário da medida anulatória. O processo judicial se sobrepõe ao processo administrativo. O ato administrativo é que se submete ao controle judicial, e não o contrário. Tratando-se de ações coletivas, a exemplo da ação civil pública, tais princípios se cumprem com a presença do instituto da representação adequada, em que os interesses diversos são representados coletivamente, nos autos. E quando se cogita de ADI ou outro processo de controle concentrado da constitucionalidade, tal se justifica pela própria natureza dessas ações.
4.3 As alegações de decadência, a teoria do fato consumado e da segurança jurídica versus princípio da supremacia constitucional
Desde a edição da Lei n. 9.784/1999, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito da administração pública federal, e que, no art. 54, contempla o prazo decadencial de cinco anos para que dita administração anule seu atos, não falta quem pretenda buscar justificativa em tal disposição para consolidar a agressão ao art. 37, II, da Constituição, e deixar no serviço público os não concursados. À decadência são somados a teoria do fato consumado e o princípio da segurança jurídica.
Esse entendimento, inspirado na decisão tomada pelo STF no MS n. 22.357, rel. Min. Gilmar Mendes, publ. em 05-11-2004, merece, no entanto, melhores reflexões, para que não se incorra em conclusões que prestigiem ardis e esvaziem os princípios enfeixados na exigência de concurso público.
Em primeiro lugar, é preciso verificar que tal precedente somente pode orientar as situações jurídicas que lhe forem semelhantes, diante de algumas particularidades do caso ali deslindado, isto é, constatação de um "processo seletivo rigoroso", a existência, logo após a promulgação da Carta de 1988, de dúvida sobre a exigência de concurso público para ingresso nas sociedades de economia mista e empresas públicas, e a anulação operada por órgão da administração (e não do Judiciário).
Tomados esses cuidados, é irrecusável a conclusão de que, a) considerado o princípio federativo, a decadência prevista no art. 54 da Lei n. 9.784/1999 somente se aplica à administração pública federal: não às administrações de Estados e Municípios, que precisam editar as respectivas leis sobre o assunto; e, b) a previsão de decadência, no caso, dirige-se à administração e para a hipótese de autotutela exercida por seus órgãos, no plano administrativo, e, não, ao Poder Judiciário, ao apreciar, por exemplo, ação popular ou ação civil pública que vise à anulação de atos da administração contrários ao princípio do concurso público.
É preciso considerar, outrossim, que a nulidade cominada no §2º do art. 37, da CF de 1988, não pode ser convalidada pelo simples decurso do tempo (isso é característica dos atos anuláveis, não dos atos nulos, muito menos inconstitucionais), e decorre da desatenção à regra do concurso público, a qual encarna princípios constitucionais inderrogáveis, tais o princípio democrático, o princípio da igualdade e os princípios alinhados no art. 37 da Constituição – todos expressos no texto constitucional e que não podem, por simples transcurso do tempo, curvar-se à teoria do fato consumado e ao princípio da segurança jurídica.
Aliás, sobre esse último, merece ser perquirido onde estaria a segurança jurídica, na verdade: na garantia de respeito ao concurso público - não apenas pela administração publica, mas, também, nas decisões judiciais - ou na convalidação temporal de agressão a tantos princípios agasalhados na Constituição e representados pelo concurso público?
Não se pode esquecer, de mais a mais, outro princípio muito em voga na atualidade, isto é, o princípio da supremacia constitucional consagrado no direito positivo brasileiro, e ao qual se curvou, até, o dogma da coisa julgada, quando contrária à Constituição.
Segundo o princípio da supremacia constitucional, o ordenamento jurídico e os atos do poder público devem estar em harmonia com o texto da Constituição, respeitando-lhe os valores superiores, para que possam ser legitimados.
Assim, a segurança jurídica maior está no efetivo cumprimento da Constituição, e, não, na manutenção, por decurso de tempo, de situações jurídicas formadas contra essa Lei Maior.
É isso que se pode extrair, aliás, das palavras do Min. Joaquim Barbosa, no voto que levou ao deferimento da medida cautelar referente à ADI n. 3.434-PI, acima mencionada, rechaçando, inclusive, o argumento acerca da decadência aduzido pelas autoridades estaduais avessas à regra do concurso público:
"A inconstitucionalidade da norma ora atacada é flagrante. O Supremo Tribunal Federal firmou sólida jurisprudência no sentido de que o art. 37, II, da Constituição federal rejeita qualquer burla à exigência de concurso público. Há diversos precedentes em que a tônica é a absoluta impossibilidade de se afastar esse critério de seleção dos quadros do serviço público (cf. ADI 2.689, rel. min. Ellen Gracie, Pleno, j. 9-10-2003; ADI 1.350-MC, rel. min. Celso de Mello, Pleno, j. 27-9-1995; ADI 980-MC, rel. min. Celso de Mello, Pleno, j. 3-2-1994); ADI 951, rel. min. Joaquim Barbosa, Pleno, j. 18-11-2004), até mesmo restringindo possíveis ampliações indevidas de exceções contidas na própria Constituição, a exemplo do disposto no art. 19 do ADCT (cf. ADI 1.808-MC, rel. min. Sydney Sanches, Pleno, j. 1º-2-1999). O rigor na interpretação desse dispositivo constitucional impede inclusive formas de provimento derivado de cargo público, por ascensão interna. Ora, na espécie, trata-se de mero enquadramento de prestadores de serviço que tenham comprovado cinco anos de trabalho, dez anos na nova versão. Não há provas, apenas o reconhecimento de um pretenso fato consumado. Dessa premissa parte a Assembléia Legislativa ao afirmar nas informações que a Administração não poderia dar outra solução ao problema, pois teria decaído para a Administração estadual o direito de rever os atos de contratação desses prestadores de serviço, nos termos do art. 54 da Lei 9.784/1999. Obviamente não há que se falar em decadência para que a Administração reveja seus atos, pois o que está em causa não é a legalidade da contratação de prestadores de serviço, mas o enquadramento determinado nos termos da norma atacada. Impossível, em casos como o presente, falar em fato consumado inconstitucional. Ante o exposto, sem maiores dificuldades, concedo a cautelar nesta ação direta em razão da inconstitucionalidade do art. 48, caput e parágrafo único, da Lei Complementar 38/2004 do estado do Piauí, tanto na versão original quanto na versão da nova lei". (Destaque acrescido).
Não há, por tudo isso, como perdoar a agressão ao princípio do concurso público.
5 PUNIÇÃO DO ADMINISTRADOR RESPONSÁVEL PELA CONTRATAÇÃO SEM CONCURSO
O trabalhador envolvido no descumprimento dos preceitos acerca do concurso público é punido com a não aquisição de direitos decorrentes da relação jurídica formada, por força da nulidade do ato, quando retirado do cargo, emprego ou função ocupados ilegalmente, ressalvando-se apenas a contraprestação recebida por conta do trabalho desenvolvido - uma vez que a força física ou intelectual não poderá lhe ser restituída com o retorno da situação jurídica ao estado anterior, em conseqüência da nulidade - mais os depósitos do FGTS, quando reconhecido o direito a salários (Súmula TST 363).
Quanto à autoridade pública responsável pelo desrespeito às regras do concurso público previstas nos itens II e III, do art. 37, da Constituição, é o próprio §2º do desse art. 37 quem remete ao legislador ordinário a regulamentação da sua punição.
5.1 Crime de Responsabilidade dos Prefeitos
Prefeitos e Vereadores, quanto à responsabilidade, submetem-se ao Decreto-Lei n. 201/1967.
O Prefeito Municipal que contratar sem concurso público comete o crime tipificado no art. 1º desse Decreto-Lei:
"Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
...
XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei;
...
§1º Os crimes definidos neste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.
§ 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular".
5.2 Crime de responsabilidade do Presidente da República, Governadores e Secretários de Estado
Rege-se pela Lei n. 1.079/1950, e, no que interessa ao concurso público, assim dispõe:
"Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
...
5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;
...
Art. 33. No caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.
Art. 34. Proferida a sentença condenatória, o acusado estará, ipso facto destituído do cargo.
...
Art. 74. Constituem crimes de responsabilidade dos governadores dos Estados ou dos seus Secretários, quando por eles praticados, os atos definidos como crimes nesta lei".
5.3 Improbidade administrativa
A Lei n. 8.429/1992, que trata dos atos de improbidade administrativa, também dispõe, expressamente, com relação ao concurso público:
"Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
...
V - frustrar a licitude de concurso público.
...
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:
...
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos".
5.4 Dificuldades para responsabilização: demora na constatação da ilicitude e rara identificação do agente
Apesar dessas disposições legais prevendo, inclusive como crime, punição para os administradores avessos à regra do concurso público, tal responsabilização não é fácil, na prática.
Importante ressaltar que a competência para essas ações é da Justiça comum, e, não, da Justiça do Trabalho, uma vez que não constante do elenco do art. 114 da Constituição.
Consequentemente, a legitimidade para promoção dessas ações é do Ministério Público (Federal ou Estadual) que oficia na Justiça comum.
O papel da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, quanto à responsabilização criminal e por improbidade administrativa, é levar ao conhecimento do Ministério Público Federal ou Estadual (conforme o vínculo da autoridade ou agente público infrator) os casos de que tiver ciência.
Um problema se constata quando se tem conhecimento desses ilícitos somente muito tempo depois de sua prática, através da intervenção nas reclamações trabalhistas, em fase recursal (art. 83, XIII, da Lei Complementar n. 75/1993), promovidas pelos trabalhadores demitidos por força de nulidade da contratação proclamada pela própria administração – entenda-se, pelo político vencedor nas eleições, de corrente contrária ao anterior que efetuou as contratações sem concurso, em atitude muito mais de vindita do que de moralização.
Outra dificuldade para encaminhamento dessa responsabilização é a identificação do autor do ato inconstitucional. Principalmente nas admissões sem concurso público, os infratores não costumam materializar a irregularidade. O trabalhador ingressa no serviço público mediante ordem verbal do Prefeito, Secretário municipal, Secretário de Estado, do próprio Governador ou outra autoridade com poderes para "empregar". E dificilmente se encontra uma carteira de trabalho anotada ou um ato de nomeação que comprove isso. Apenas aparece o nome do favorecido na folha de pagamento do órgão.
Esses dois aspectos dificultam bastante a formulação da notícia crime contra as autoridades públicas infratoras, e, consequentemente, sua punição.
E muitos são os outros obstáculos encontrados pelo Ministério Público Federal e Estadual para responsabilizar tais infratores, na Justiça competente, mas que refogem ao objeto deste artigo.
Também por isso que, raramente, se vê uma autoridade pública punida por descumprir a regra do concurso público.