Artigo Destaque dos editores

A dignidade (da pessoa) humana

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

4. À guisa de conclusão

A se compreender que o princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República e causa primeira da tutela dos direitos sociais, interessa consultar o significado de tal princípio, ainda mais quando esse seu conteúdo jurídico se reveste de força normativa, a exemplo do que sucede a todos os princípios constitucionais.

A dignidade da pessoa humana é conceito que não se reporta ao sentido de dignidade vinculado ao modo de ser de uma conduta ou do agente (conduta digna de pessoa digna), mas é uma qualidade que precede e limita qualquer ação humana. Portanto, se a dignidade é uma qualificação comum a todos os seres humanos, a sua realização normativa terá sempre a igualdade como pressuposto

A evolução do conceito, a ponto de o princípio correlato ganhar a preferência dos Estados democráticos na decisão sobre o que haveria de dar unidade de sentido e valor aos seus sistemas de direitos fundamentais, não pode prescindir, ainda hoje, do significado que lhe deve ser atribuído a partir da distinção kantiana entre as coisas que têm preço e aquelas que, não podendo ser substituídas pelo equivalente, possuem dignidade. A razão e a vontade livre de que somente o homem é possuidor impediriam que as intervenções humanas não tivessem a pessoa como fim, tendo-a apenas como meio.

Sob tais premissas, a sentença de Kant é definitiva: "a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utilizada como fim; nisso consiste a sua dignidade". No mundo do trabalho, é possível reportar-se a vários direitos sociais de índole trabalhista que se justificam na premissa kantiana.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1982. São Paulo: Malheiros Editores, 1997

DOMÉNECH, Antoni. El Eclipse de la Fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004

FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Tradução para o espanhol de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2006

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980

GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo : Malheiros, 1996

GURVITCH, Georges. La Idea del Derecho Social. Tradução para o espanhol de José Luis Monereo Pérez y Antonio Márquez Prieto. Granada: Calmares, 2005

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997

HOERSTER, Norbert. En Defensa del Positivismo Jurídico. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1998

PIOVESAN, Flávia. Discriminação. In Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Org. Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004


NOTAS

  1. Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 169. O autor distingue em nota: "Da mesma maneira que não é o mesmo falar em direitos do homem e direitos humanos, não é exactamente o mesmo falar em dignidade da pessoa humana e dignidade humana. Aquela expressão dirige-se ao homem concreto e individual; esta à humanidade, entendida ou como qualidade comum a todos os homens ou como conjunto que os engloba e ultrapassa".
  2. Apud DOMÉNECH, Antoni. El Eclipse de la Fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004, p. 27.
  3. Op. cit., p. 168.
  4. Apud PIOVESAN, Flávia. Discriminação. In Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Org. Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 336.
  5. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 68.
  6. Cf. Jorge Miranda, op. cit., p. 166, reportando-se ao art. 1º da Constituição de Portugal e, em nota, também às constituições da Irlanda, da Alemanha, da Índia, da Venezuela, da Grécia, da Espanha, do Peru, da China, do Brasil, da Namíbia, da Colômbia, da Bulgária e de Cabo Verde, todas elas a prestigiar a dignidade da pessoa humana.
  7. Ver, entre outros: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1982. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, cap. 8, passim.
  8. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Tradução para o espanhol de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2006, p. 12.
  9. Segundo Tércio Ferraz Junior, "direito positivo, podemos dizer genericamente, é o que vale em virtude de uma decisão e só por força de uma nova decisão pode ser revogado. O legalismo do século passado entendeu isto de modo restrito, reduzindo o direito à lei, enquanto norma posta pelo legislador. No direito atual, o alcance da positivação é muito maior" (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 41). O autor complementa: "Decisão é termo que tomamos num sentido lato, que ultrapassa os limites da decisão legislativa, abarcando, também, entre outras a decisão judiciária..."
  10. Ao diferenciá-lo da hermenêutica jurídica e do realismo jurídico, Dworkin (apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 247-250) observa que o positivismo jurídico "pretende, ao contrário, fazer jus à função da estabilização de expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão jurídica na autoridade impugnável de tradições éticas. Ao contrário das escolas realistas, os teóricos Hans Kelsen e H. L. A. Hart elaboram o sentido normativo próprio das proposições jurídicas e a construção sistemática de um sistema de regras destinado a garantir a consistência de decisões ligadas a regras e tornar o direito independente da política. Ao contrário dos hermeneutas, eles sublinham o fechamento e a autonomia de um sistema de direitos, opaco em relação a princípios não jurídicos".
  11. Eros Grau (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 26) observa que o pensamento jurídico moderno tem a marca do formalismo e do positivismo. Mas o formalismo, cujas construções se apóiam em um discurso abstrato, é insuficiente para explicar o direito. Mesmo no plano abstrato, o direito é um produto histórico-cultural, que não pode ser completamente abarcado por explicações lógicas ou racionais. Quanto ao positivismo, que tem a recusa a qualquer referência metafísica como postulado básico, diz-se que a) não admite ele a existência de lacunas e estas existem no sistema jurídico; b) encontra dificuldades insuperáveis para explicar os conceitos indeterminados, as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações, caindo em discricionariedade que se converte em arbítrio do juiz; c) é enfim inoperante diante dos conflitos entre princípios, remetendo a sua solução à discricionariedade do juiz ou negando o caráter normativo dos princípios; d) não tem como tratar da legitimidade do direito e, por isso, a legalidade ocupa o lugar desta no seu quadro.
  12. A pequena cidade em que nasceu e viveu (1724-1804), sem dela jamais ter saído.
  13. A vontade geral não se opõe à vontade individual (pois seria a vontade individual comum a todos), mas sim à vontade particular (que variaria de indivíduo a indivíduo). Rousseau esclarece: "Que a vontade geral seja em cada indivíduo um ato puro do entendimento que prevalece no silêncio das paixões, (...) ninguém ponha em dúvida". Apud GURVITCH, Georges. La Idea del Derecho Social. Tradução para o espanhol de José Luis Monereo Pérez y Antonio Márquez Prieto. Granada: Calmares, 2005, p. 289.
  14. Op. cit., p. 292.
  15. Kant, em Metafísica dos Costumes, apud HOERSTER, Norbert. En Defensa del Positivismo Jurídico. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000, p. 92.
  16. Kant, apud Miranda, op. cit., p. 169. Ou apud Hoerster, op. cit., p. 92, ambos a transcrever excerto de Metafísica dos Costumes.
  17. Kant, apud Hoerster, op. cit., p. 92.
  18. Op. cit., p. 93.
  19. Op. cit., p. 16
  20. SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 112.
  21. Op. cit., p. 94.
  22. Op. cit., p. 95.
  23. Op. cit., p. 96.
  24. Cf. Hoerster, op. cit., p. 96.
  25. Arthur Schopenhauer (apud Hoerster, op. cit., p. 91) opôs: "Essa frase tão infatigavelmente repetida por todos os kantianos: ‘há que tratar sempre a pessoa como um fim e nunca como um meio’ soa certamente importante e, por isso, é sumamente adequada para todos aqueles que desejam ter uma fórmula que os libere de todo pensamento; porém, vista com clareza, é uma expressão sumamente vaga, imprecisa, que aponta muito indiretamente a sua intenção e que, para cada caso de sua aplicação, requer previamente uma explicação, precisão e modificação especial; mas é geralmente insuficiente, diz pouco e, ademais, é problemática". A seu turno, Proudhon (apud Gurvitch, op. cit., p. 370) se sentia distanciado de Kant "pelo caráter abstrato de seu idealismo, pela ausência do ponto de vista ideo-realista, por seu individualismo e seu nominalismo a respeito do ser social, pela falta de reflexão sobre a totalidade e a ordem".
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Augusto César Leite de Carvalho

desembargador federal do Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região, professor assistente da UFS, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará, mestre e doutorando em Direito das Relações Sociais pela Universidad Castilla la Mancha

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Augusto César Leite. A dignidade (da pessoa) humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2259, 7 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13449. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos