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Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na CF/88

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01/07/1999 às 00:00

Resumo:


  • A Constituição de 1988 é a norma fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo os valores supremos da sociedade e legitimando o direito estatal.

  • Há uma hierarquia entre as normas constitucionais, com os princípios fundamentais no topo, seguidos pelos princípios gerais e, por fim, as regras constitucionais.

  • Os princípios fundamentais, que incluem cláusulas pétreas, têm supremacia sobre os demais princípios e regras, garantindo a unidade, coerência e estabilidade da Constituição.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Princípios Constitucionais Fundamentais.

Ao contrário do que acontece com as regras constitucionais, não é possível se falar em inconstitucionalidade ou invalidade de princípios constitucionais, até porque é impossível, ao nosso ver, falar-se de antinomia entre princípios jurídicos (Grau, 1990: p. 115).

Mas para que se possa admitir inexistência entre antinomia entre princípios constitucionais, é preciso se identificar qual o critério utilizado pelo constituinte para definir o núcleo fundamental de princípios jurídicos.

Os princípios constitucionais, tal como as demais normas constitucionais, encontram-se hierarquizadas dentro da própria Constituição. Pois "seria incompreensível, em primeiro lugar, uma Constituição como simples conglomerado desconexo de normas, às quais arbitrariamente se atribuiu o caráter de lei por excelência" (Reale, 1993: p. 11).

Ivo Dantas nos ensina que há uma hierarquização entre os princípios constitucionais:

"No caso da Constituição brasileira vigente, ao lado dos Princípios Fundamentais, inúmeras são as passagens onde se acha presente outra categoria, a de PRINCÍPIOS GERAIS, voltados para determinado subsistema ou setor do ordenamento constitucional. Estes são igualmente superiores às normas, porém inferiores aos Princípios Fundamentais" (Dantas, 1995.1: p. 60; grifo do autor).

Do mesmo modo, Luís Roberto Barroso:

"(...) os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores principais da ordem jurídica. A Constituição, (...) é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simples agrupamento de regras que se justapõem. A idéia de sistema funda-se na harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que ‘costuram’ suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos".

Luís Roberto Barroso identifica três espécies hierarquizadas de princípios constitucionais, na seguinte ordem (cf. Barroso, 1993: p. 174):

a) Princípios fundamentais, que contêm as decisões políticas estruturais do Estado;

b) Princípios constitucionais gerais, constituindo especificações dos anteriores;

c) Princípios setoriais ou especiais, destinados a presidir um conjunto específico de normas constitucionais, representando, por sua vez, uma especificação dos princípios constitucionais gerais.

Lembra José Souto Maior Borges, que os critérios a serem utilizados para se estabelecer uma hierarquia entre os princípios constitucionais deve partir da própria Constituição (Borges, 1993: p. 146).

Fixamos como princípios fundamentais aqueles protegidos e afastados do Poder de Reforma constitucional. A Constituição Federal vigente, em seu art. 60, § 4º, estabelece que a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais não podem ser objeto de emenda à Constituição tendente à aboli-los, que são usualmente denominadas de cláusulas pétreas.

A proposta é inspirada nos ensinamentos de Ivo Dantas e José Souto Maior Borges.

"Há uma hierarquia no inter-relacionamento desses princípios com outras normas da C.F. e sobretudo com outros princípios constitucionais (sintaxe jurídico-constitucional) que põe a lume a maior importância dos seus princípios fundamentais no confronto com outros princípios. Muitos desses podem ser objeto de reforma constitucional. Nada o impede. Mas no tocante aos princípios fundamentais, a C.F. é rigidíssima. Não podem, a teor do seu art. 60, § 4º, ser abolidos senão por via revolucionária e, pois extraconstitucional" (Borges, 1993: p. 145).

Não estamos aqui apontando as cláusulas pétreas como os princípios constitucionais fundamentais. Aquelas devem ser entendidas como os limites materiais ao Poder de Reforma Constitucional (cf. Dantas, 1994: pp. 93-96), enquanto que estes, como os princípios constitucionais, expressos ou não na Constituição, que são hierarquicamente superiores a todas as outras normas constitucionais e infraconstitucionais.

As cláusulas pétreas não referem tão somente a princípios constitucionais. Nelas estão contidas também regras constitucionais, bem como direitos e garantias constitucionais decorrentes das normas constitucionais.

Seria ilógico e desarrazoado que a Constituição pusesse à disposição do Poder de Reforma a alteração ou descaracterização dos alicerces do ordenamento jurídico.

Podemos resumir nosso entendimento no seguinte: nem todas as cláusulas pétreas contêm princípios, mas todos os princípios constitucionais fundamentais são cláusulas pétreas, sem haver espaço para exceções.

O princípio republicano e o princípio presidencialista foram expressamente afastados do núcleo das cláusulas pétreas, tanto que recentemente foram objeto de plebiscito. É evidente que o seu regular funcionamento tem relevância para a Constituição. Mas, entretanto, sua exclusão ou alteração, no entender do constituinte, não significaria uma alteração efetivamente importante no núcleo fundamental da Carta Magna. Caso contrário, porque deixá-los a mercê de um plebiscito, que ensejaria emenda à constituição?

Temos então como princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico o princípio federativo (art. 1º, caput, da Constituição), o princípio da separação funcional do Poder (art. 2º da Constituição) (ver França, 1997.1: pp. 11-16), o princípio democrático ou da soberania popular (art. 1º, parágrafo único, da Constituição) e os princípios elencados entre os "direitos e garantias fundamentais" (Título II da Constituição). O caráter de princípio fundamental não se restringe todavia aos direitos individuais de cunho liberal, mas também aos dispositivos que estabelecem direitos e garantias sociais, políticas e econômicas do indivíduo.

Além desses princípios constitucionais, existem outros que, embora não expressamente referidos pelo art. 60, § 4º, são imprescindíveis para a manutenção da integridade do texto constitucional. E nem precisariam estar.

A hermenêutica constitucional não pode ser realizada segundo os mesmos critérios da hermenêutica tradicional (Guerra Filho, 1991: p. 107; cf. tb. Rocha, 1994: p. 45). Ela está submetida a princípios que lhe são específicos, e que devem orientar o jurista na concretização do texto constitucional.

Podemos identificar alguns deles:

  • a) Princípio da supremacia da Constituição - a Constituição guarda os fundamentos e diretrizes constitucionais, sistematizados em normas constitucionais (princípios e regras constitucionais), que devem gozar de total supremacia quando confrontados com os fundamentos e diretrizes infraconstitucionais, ordenados em normas infraconstitucionais ou mesmo, a valores estranhos ao sistema jurídico como um todo;

  • b) Princípio da supralegalidade da Constituição - as normas constitucionais devem ser formalmente superiores às normas infraconstitucionais, devendo ser a integridade da Constituição, como norma fundamental e última instância de legitimidade do ordenamento jurídico, preservada (sobre a defesa da supralegalidade constitucional, ver Dantas, 1994: p. 31).

  • c) Princípio da unidade da Constituição - não se interpreta a Constituição em tiras, "assim como jamais se aplica uma norma jurídica, mas sim o Direito, não se interpretam normas constitucionais isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo (Grau, 1990: p. 181); as normas constitucionais devem guardar harmonia entre si, "de modo que formem um sistema integrado, onde cada norma encontra sua justificativa nos valores mais gerais, expressos em outras normas, e assim, sucessivamente, até chegarmos ao mais alto desses valores, expresso na decisão fundamental" (Guerra Filho, 1991: p. 108; grifo do autor).

  • d) Princípio da continuidade da ordem jurídica - a nova Constituição recepciona toda a legislação infraconstitucional, edificada sobre a ordem constitucional superada pelo Poder Constituinte, desde que não fira os seus termos (cf. Barroso, 1993: p. 173).

  • e) Princípio da interpretação conforme a Constituição - a interpretação do texto infraconstitucional deve ser harmônico e compatível com o texto constitucional, determinando que "sempre que houver uma interpretação que conduza à inconstitucionalidade de uma norma e outra que permita sua aplicação válida, deve o intérprete prestigiar a segunda" (Barroso, 1993: p. 173).

  • f) Princípio da proporcionalidade - segundo o qual, diante do choque aparente entre princípios, deve ser determinada "a busca de uma ‘solução de compromisso’, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outros(s), e jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo o seu ‘núcleo essencial" (Guerra Filho, 1991: p. 109).

Quanto ao princípio da proporcionalidade, é preciso uma atenção maior.

O princípio da proporcionalidade tem se tornado mais presente em nosso ordenamento jurídico, fruto da inspiração germânica de boa parte da doutrina e jurisprudência constitucional brasileira.

O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três aspectos: a proporcionalidade em sentido estrito, adequação e exigibilidade (Guerra Filho, 1991: p. 110).

Parte-se do pressuposto que a finalidade abrigada na norma constitucional muitas vezes enseja uma multiplicidade de meios, entre os quais cabe uma opção.

O meio eleito deve ser adequado para o fim almejado, devendo em seguida, ser comprovado a exigibilidade do meio como o menos agressivo aos "bens e valores constitucionalmente protegidos, que porventura colidam com aquele consagrado na norma interpretada" (Guerra Filho, 1991: p. 110). A proporcionalidade em sentido estrito, determina por sua vez, que deve haver harmonia entre os valores constitucionalmente consagrados, de modo que um não entre em contradição com outro, um não se sobreponha a outro de maneira a revogar o último.

Para que o princípio da proporcionalidade seja adotado, é preciso admitir a hierarquia constitucional entre os seus princípios e a interdependência entre eles (Rocha, 1994: p. 53). A Constituição não pode conter normas constitucionais que se contrariam. No caso dos princípios, pode haver aparentemente a possibilidade da aplicação simultânea e divergente entre eles diante de um caso concreto. E prossegue a professora mineira:

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"(...) O que se apresenta ao intérprete, então, não é um conflito de normas constitucionais contendo dois princípios que traduziriam uma inibição de aplicação do sistema constitucional como um todo integrado e harmonioso. O que se verifica, naquela situação, não é senão uma imperiosa necessidade de interpretar-se corretamente não apenas um ou outro princípio, mas a Constituição, a dizer, o sistema como um todo, em sua inteireza e não apenas parte dele sobre a qual recaia, naquela hipótese, a atenção do intérprete para perfeito equacionamento do caso apreciado. Para tanto, urge aplicar-se o princípio da proporcionalidade aqui lembrado" (Rocha, 1994: p. 53).

A doutrina aponta a existência de outros princípios da interpretação constitucional (Guerra Filho, 1991: pp. 108-109), mas para fins desse estudo, apontamos alguns deles, mais relacionados à hierarquia das normas constitucionais.

Acreditamos que os princípios aqui elencados também constituem cláusulas pétreas. Como admitir, por exemplo, que o Poder de Reforma retire a supremacia e a supralegalidade da Constituição, quebre a sua unidade e estabeleça que a lei ordinária ou uma emenda constitucional possa determinar, unilateralmente, o sentido do núcleo fundamental da Constituição. Instabilizar uma Constituição é criar circunstâncias para outra ordem jurídico-constitucional? E se são cláusulas pétreas, limites materiais ao Poder de Reforma, tais princípios também podem ser elencados entre os princípios fundamentais.

Ivo Dantas aponta que "a existência dos Princípios Fundamentais como expressão de uma técnica legislativa utilizada pelo constituinte representa uma hierarquia interna na própria Constituição" (Dantas, 1994: p. 73). Não é certo atribuir aos princípios constitucionais o caráter de subsidiariedade quando confrontados com as demais normas jurídicas, pois exercem "uma força vinculante, sobretudo, no instante do exercício interpretativo" (Dantas, 1994: p. 73).

Não vemos propriamente espaço para uma espécie intermediária entre os princípios constitucionais. Preferimos estabelecer apenas princípios fundamentais e princípios gerais.

Os princípios fundamentais incidem sobre todo o ordenamento jurídico-constitucional e infraconstitucional, gozando de isenção ao Poder de Reforma Constitucional, sistematizando e ordenando os fundamentos e diretrizes fundamentais consagrados nos arts. 1º e 3º.

Os enunciados dos dispositivos supra citados não constituem princípios fundamentais, como aparentemente estabelece a Constituição no seu Título I. Representam sim fundamentos e diretrizes fundamentais para o ordenamento jurídico-constitucional, opções políticas do constituintes legadas para as gerações que lhe seguirem. Sua positividade somente existe quando servem de alicerce para a edificação e concretização da norma constitucional (princípios e regras constitucionais).

Entendemos que os fundamentos e diretrizes fundamentais expressos nos arts. 1º e 3º da Constituição de 1988 também são cláusulas pétreas, mas não são, é preciso reiterar aqui, princípios. Nem mesmo o inciso III do art. 1º, que trata da livre iniciativa, pois ela constitui um dos fundamentos constitucionais da nossa sociedade, repelindo o coletivismo estatal (cf. Grau, 1990: p. 220), e não se confundindo com o princípio geral da livre concorrência, abrigado no art. 170, IV, da Constituição.

A cidadania constitui um dos fundamentos da Constituição, ao estabelecer que a participação do indivíduo é necessária, tanto ativa como passivamente, nas decisões a serem tomadas pela sociedade. Sem a participação do cidadão, não há democracia. O inciso II do art. 1º da Constituição não tem isoladamente nenhuma valia jurídica (Barroso, 1993: p. 178), mas uma função político-simbólica hipertrofiada, já que ela não existe de fato em nossa sociedade. A cidadania encontra positividade tão somente enquanto sistematizada pelo princípio fundamental da soberania popular, com sede no art. 2º, da Constituição e qualificado pelo art. 60, § 4º, inciso II, da Lei Maior.

Subordinados ou decorrentes dos princípios fundamentais, os princípios constitucionais gerais estão diretamente relacionados a um dado subsistema constitucional. O princípio da legalidade, é um exemplo.

Do princípio fundamental da legalidade, sediado no art. 5º, inciso II, da Constituição e qualificado pelo art. 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior, decorrem os princípios constitucionais gerais da legalidade administrativa (art. 37, caput, da Constituição), referente ao subsistema constitucional da Administração Pública) e o da legalidade tributária (art. 150, I, da Lei Maior), relativo ao subsistema constitucional tributário.

Há profundas divergências na doutrina constitucional quanto à delimitação do quadro dos princípios constitucionais fundamentais. Preferimos propor um critério posto na própria Constituição, pois não cabe a nós criar um novo, fora do ordenamento jurídico.

Aos princípios constitucionais fundamentais estão submetidos todos os demais princípios constitucionais e regras constitucionais. Não cabe aqui neste trabalho fazer uma classificação exaustiva destes.

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Sobre o autor
Vladimir da Rocha França

advogado em Natal (RN), professor da UFRN e da Universidade Potiguar, mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito do Estado pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Vladimir Rocha. Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1462, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/135. Acesso em: 19 dez. 2024.

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