I - INTRODUÇÃO
Há tempos o Superior Tribunal de Justiça, em seus julgados, vem demonstrando invocar, de forma cada vez mais rotineira, preceitos de direito criminal, por ocasião da apreciação dos casos de atos infracionais levados à sua apreciação.
Até recentemente, o ápice da balburdia conceitual e demonstração do equívoco de tal posicionamento se exteriorizava com a edição da Súmula nº 338, publicada no Diário de Justiça de 16.05.2007, que estabeleceu ser aplicável a prescrição penal às medidas sócio-educativas.
Assim, para alegria dos que acreditam no denominado ‘eufemismos do direito infanto-juvenil’, o Superior Tribunal de Justiça demonstrou tratar medidas sócio-educativas como ações penais e as medidas sócio-educativas como pena (reprimenda), desprezando a peculiaridade traçada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme será exposto a seguir.
Nesse diapasão, eis que em 18 de agosto do presente ano, a Corte Superior criada com a função precípua de zelar pela vigência de leis federais e sua eficácia, desprezando novamente a Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), por intermédio de sua Quinta Turma, decidiu no Recurso Especial nº 1.113.155-RS (2009/0063285-8), que se aplica a ações sócio-educativas o chamado princípio da insignificância, de cediça discussão em seara criminal.
Assim, sustentou o relator, Min. Arnaldo Esteves Lima, o qual foi acompanhado por seus pares, que "a subtração de três barras de chocolate avaliadas em R$12,30 por dois adolescentes, embora se amolde à definição jurídica do ato infracional, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a sanção penal, uma vez que a ofensividade das condutas se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade dos comportamentos foi de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva".
Observa-se, desde já, a clara e equivocada invocação de preceitos de direito criminal à ação de adolescentes, que possuem regramento especial e próprio pela CF e ECA, lançando-se ao limbo do descaso a diferenciação de tratamento prevista pelo ordenamento jurídico pátrio, colocando-se em risco toda a estrutura de garantias e direitos arduamente conquistados pela sociedade brasileira ao longo de sua história.
Ademais, conforme também será demonstrado, o Superior Tribunal de Justiça poderia, no caso levado a julgamento, ter obtido semelhante resultado, por meio dos princípios e disposições contidos no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, mantendo a eficácia do diploma estatutário e prestigiando os ditames assegurados pela Constituição Federal ao tratar diferenciadamente crianças e adolescentes.
II – DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E IMPROPRIEDADE DE TRATÁ-LAS COMO MEDIDAS PENAIS
Não se pode olvidar a acalorada discussão acerca da conduta de adolescentes, algumas vezes tipificadas pela legislação nacional como ilícitos penais (crimes e contravenções), bem com a eficácia (ou ineficácia) das medidas sócio-educativas em seus propósitos, como a de incutir ao jovem responsabilização (a carga retributiva apregoada), bem como principalmente a de postar meios e mecanismos para auxiliá-lo na compreensão do desvio de conduta e suas conseqüências, além da obtenção da educação para os atos sociais e familiares (sócio-educação).
Não é por existir referida discussão que se deve simplesmente desprezar o regramento previsto por uma Constituição e por uma Lei Federal para, assim, de forma oblíqua, invocar preceitos de prevenção geral e especial de direito penal (como os invocados pelo relator da Quinta Turma), ainda que para extinguir um processo em face de um adolescente.
Nesse aspecto, desprezou-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, inclusive, sistemática interpretativa própria capaz de ensejar, até mesmo, a extinção do processo no caso em lume, sem que houvesse a perigosa promiscuidade interpretativa exposta.
O art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente é expresso em apontar:
"Art. 6º Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento"
Essa esteira de compreensão demonstra que aqueles que divulgam que a prescrição penal se aplica ‘a favor dos adolescentes’, em verdade, além de também incorrerem no equívoco de somente se aterem a idéia repressiva das medidas sócio-educativas e desprezarem a sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente para justificarem eventual perda da finalidade sócio-educativa (e não fim da pretensão punitiva, como se costuma inadvertidamente afirmar), também desprezam que as medidas sócio-educativas devem ser acompanhadas de uma série de mecanismos ‘a favor’ do adolescente.
Se é certo que por diversas questões e matizes, na maior parte do país as medidas sócio-educativas não são executadas como deveriam, ou seja, não estão realmente sendo levadas à aplicação de medidas acompanhadas de garantias, também é certo que referida omissão do poder público e dos responsáveis não tem o condão de, por isso, ensejar a aplicação de preceitos criminais.
Dá-se o exemplo de localidades, como o município de Sidrolândia, no Estado de Mato Grosso do Sul, onde depois de intenso esforço dos organismos locais da rede de atendimento, vontade do poder público e atuação do Ministério Público, passou-se à municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto (ECA, art. 88, I), com cada adolescente em conflito com a lei sendo submetido ao Plano Individual de Atendimento (PIA).
Desse modo, postam-se comum adolescentes envolvidos em furtos, além de serem encaminhados para medidas de prestação de serviços (laborando em hortas e outras atividades lúdicas) ou liberdade assistida, receberem assistência psicológica e assistencial, inclusive com encaminhamento à rede de saúde (em caos de doenças), rede de educação (nos casos de evasão escolar) e serviços públicos (regularização de documentos, assistência de auxílios temporários à famílias carentes, direcionamento para cursos profissionalizantes, entre outros).
Um adolescente, como no caso julgado pelo STJ, que pratica a conduta de furtar um bem de alguém, ou seja, consciente de sua conduta e do mundo que o cerca, subtrai bens de terceiros, ainda que tais bens sejam ‘de pequeno valor’, evidentemente deve receber a sócio-educação, não apenas para observar sua conduta e conseqüências, como principalmente para que receba ainda nessa fase de desenvolvimento e formação de personalidade, o tratamento e acompanhamento cabível.
Aceitar que a conduta desse adolescente seja ‘atípica materialmente’, para se utilizar dos fundamentos do Superior Tribunal de Justiça para extinguir o processo sócio-educativo ‘contra’ o adolescente (como costumam apregoar), além de desprezar toda a natureza jurídica das medidas, com certeza está a criar justamente preceito contrário ao que visa o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, irá incutir nesse adolescente, que está em formação e a viver em um país assolado cada vez mais pela falta de valores e desprezo de conceitos éticos, o entendimento de que é possível sim cometer crimes... irá depender de quem, de quanto, do por quê, e outros pontos que os laxistas do direito penal adoram invocar e agora estão a trazer para a seara infanto-juvenil.
O ‘princípio da insignificância’ invocado pela Corte superior, como é cediço, ganhou ar mundial através da crescente divulgação das teorias de CLAUS ROXIN, em que cada vez mais se postou o Direito Penal como ultima ratio da intervenção estatal na relação dos homens em sociedade (Direito Penal Mínimo), denotando-o como fragmentário e, por que não dizer, simbólico.
Contudo, não há como se aceitar essa onda laxista, em uma cultura social desestabilizada e anacrônica como a brasileira, de peculiaridades bem distintas da dita ‘civilização européia’.
Alguém que subtrai, para si, bens a ele pertencentes, ofende não apenas o direito da vítima de ter um bem, como também ofende a máxima ‘não deve pegar o que não é seu e o que não lhe é de direito’.
Caso contrário, a vida em sociedade será uma balbúrdia em que qualquer um poderá tomar os bens dos outros, sopesando ele mesmo se é ou não significante.
Para os que abalizam erroneamente o ‘princípio da insignificância’ pelo valor do bem subtraído, tem-se a seguinte explanação:
Em primeiro lugar, sob a ótica da vítima, tem-se que se alguém possui um objeto, por mais ínfimo que seja seu ‘valor monetário’, ainda assim é válido dizer que pelo simples fato dessa pessoa o possuir, para ela existe um valor.
Então, como se pode falar que tal objeto lhe é insignificante? Possui significado sim!
Sob outra ótica, agora a do transgressor, se houve o mínimo interesse que seja, por parte do transgressor, de volitivamente direcionar sua conduta para uma subtração, de um objeto qualquer, é porque para ele também aquele bem lhe tinha algum significado. Assim, o bem possui significado sim!
Veja-se que, então, tanto para a vítima como para o criminoso, o bem de um furto tem ‘significado’.
E aí aparecem os teoristas auto-intitulados ‘modernos’ de plantão para, tomando-lhes a frente em discussões teóricas, falar que todo o ocorrido não tem significado e não deve haver intervenção estatal na questão.
Certamente, tais ‘doutores’ desconhecem as relações humanas, fomentando talvez a volta aos primórdios da civilização, posto que a indignação e falta de amparo certamente levará a população ao retorno à autotutela e justiça com as próprias mãos.
Isso não pode ser aceito, tampouco corroborado por aqueles que acreditam no sistema legal em vigor como instrumento de pacificação social.
Por outro lado, para os que apregoam que a significação está no abalo à ordem jurídica, uma vez que o delito de um furto de objetos de pequeno valor não entraria na antítese da norma penal, não significando na questão quantitativa e qualitativa do injusto, tem-se que também não há em tal tese sustentação.
A ofensa, no caso do furto, abala sim o ordenamento jurídico, pois a subtração vedada pela norma penal (no caso do furto), visa à proteção do bem jurídico que possui valor para o indivíduo em si (a vítima) e para a sociedade (que também tem o desejo de poder possuir e gozar de seus bens, muitas vezes obtidos por esforços laborais ou por razões valorativas outras, sem ser molestada nesse direito que a legislação lhe garante).
Assim, o furto de bens, ainda que de pequenos valores, afeta a ordem jurídica vigente, à medida que põe em abalo a efetividade das normas que são, em tese, a condensação da vontade da sociedade, através do processo legislativo que edita em leis os valores que essa própria sociedade tem como válidas ("não irás subtrair os bens dos outros") e as quer para si (assim, "não furte objeto de ninguém, seja qual o valor, pois há em cada objeto, por pertencer a algum, algum valor para quem se organizou em o ter").
Não pode o julgador do Direito criar, através de interpretação axiológica de um mundo particular e pessoal, uma causa de justificação para determinados crimes, criando aqui ou acolá formas de exclusão da tipicidade penal.
É de se imaginar, então, por que deveriam os pais repreenderem seus filhos quando esses pegam para si algum brinquedo de um colega, ou tomam escondido de alguém uma caneta ou borracha na escola, se futuramente constatarão que tais condutas não percutem em suas vidas?
Eis os preceitos morais em jogo.
A vida adulta é assim deveras nefasta?
Não se poderá deixar um par de tênis, uma bola, um bem de pequeno valor qualquer exposto, pois se alguém o subtrair, virá algum dito ‘operador do direito’ e dirá que o surrupiador está investido de razão, pois o ilícito está acobertado pelo ‘princípio da insignificância’?
Que mundo horrível esse que os afilhados do Direito Penal dito Moderno querem para si e, mais tristemente, para seus filhos...
No caso de um furto de pequeno valor, por exemplo, basta que se utilize do Estatuto da Criança e do Adolescente para, invocando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, seja aplicada a de carga retributiva de menor intensidade; entretanto, deverá haver o devido acompanhamento na execução, dentro do Sistema de Garantias previsto pelo SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo) e Plano Individual de Atendimento.
Ainda, pode simplesmente haver remissões (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 126) cumuladas com medidas de advertência e medidas de proteção, justamente para que não haja simplesmente ‘um arquivamento’ ou ‘extinção’ do processo e, assim, o furto, a ameaça, o dano, a lesão corporal, o estelionato, o roubo, etc, sejam tidos como ‘atípicos materialmente’ ou, aos olhos do adolescente, futuro adulto, sejam tidos como aceitos, válidos e normais!
Alguns atos, ainda que possa haver configuração, em tese, de delito (portanto, prática de ato infracional), devem ser analisados com reservas, pois muitas vezes a reprovação pelos familiares e pelos moradores que presenciaram o ato, ou pelos próprios colegas de um colégio, além de eventuais conseqüências outras (ter se gastar o próprio dinheiro em reparos ou transportes a hospitais, por exemplo; perder uma prova e ter que estudar mais por isso; perder uma proposta de emprego em razão de atraso ensejado por ter se enveredado na prática de tal ato, etc), já pode configurar uma forma de percepção do mundo e da realidade que o cerca e, pois, uma forma de desenvolvimento e obtenção de maturidade, pontos esses também buscados em aplicação de medidas sócio-educativas.
Nessa ótica, tem-se que algumas condutas, ainda que reprováveis, ocasionam conseqüências sentidas pelo próprio adolescente, uma vez que além de ser levado a uma Delegacia de Polícia, por exemplo, e observar o que ocorre ao se enveredar por condutas indevidas, pode propiciar ao infante a percepção de toda a estrutura que envolve as atividades e comportamento dos cidadãos que transgridem as regras de convivência em sociedade.
Claro que a realidade apontada no município sul-mato-grossense é exceção; contudo, é o que prevê a Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo haver esforços para que esse sistema seja implantado.
As decisões deveriam ser voltadas para que a exceção fosse a regra, já que essa é a previsão normativa em vigor; contudo, parece que ao invés de se buscar a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente e seu sistema de garantias, inclusive com determinações de obrigações de fazer a entes do Estado e responsabilizar maus gestores e responsáveis, é mais fácil se invocar preceitos de direito penal para se arquivar feitos parados pela burocracia e falta de atenção à seara de infância (prescrição) e/ou extinguir processos que visam sócio-educar adolescentes em conflito com a lei (princípio da insignificância).
Aliás, para não passar incólume de observação, ao invés de se invocar a chamada prescrição penal para não se aplicar medidas sócio-educativas a adolescentes, em atos infracionais praticados há tempos, poder-se-ia, simplesmente, valer-se da sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente para aduzir perda do interesse sócio-educativo (e não ‘perda da pretensão punitiva’).
Vale lembrar que o fundamento maior da prescrição é a perda de ‘interesse do Estado’ ou perda do ‘interesse da sociedade’ (conforme as correntes existentes) na aplicação da reprimenda.
Ora, tratando-se de medida sócio-educativa, o que há de ser analisado, então, além da carga retributiva, é se há, ainda, pertinência na sócio-educação do adolescente em conflito com a lei, bem como sua necessidade, após transcorrido determinado lapso temporal.
O atraso na aplicação de qualquer medida sócio-educativa, com longo lapso temporal entre a prática do ato infracional e o real cumprimento da medida, esbarra cristalinamente nos princípios basilares do estatuto em exame.
BIANCA MOTA DE MORAES e HELANE VIEIRA RAMOS lecionam:
"É de ser acentuado que todos os estágios do rito da ação socioeducativa foram impregnados pelo legislador com o princípio da celeridade, em razão da premência de resposta estatal à conduta infracional, a qual se tornará inócua ultrapassada a etapa de permeabilidade do adolescente à ingerência educacional."
Ultrapassado muito tempo após o ato infracional certamente haverá prejuízos à sócio-educação, ante a falta de ter sido apresentando ao infante a informação de desconformidade de sua conduta com as regras vigentes, bem como lhe ter sido propiciado à atenção devida, podendo diversos atos terem então sido praticados já que ‘não dá nada’ (como costuma dizer).
Ainda, há casos em que já há se alcançou a maioridade penal (ainda que ainda sob incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente, por ser menor de 21 anos, nos termos do art. 2º, § único), com processos em tramitação e até mesmo sentenças condenatórias, demonstrando que ao hoje adulto não se figura cabível a sócio-educação prevista para jovens em formação.
Também haverá casos em que ultrapassado significativo tempo já há outro estado de situações, em que nitidamente houve amadurecimento e outros fatores a ensejar percepção de ter havido, pelas ‘circunstâncias da vida’, uma sócio-educação na formação desse jovem, não havendo necessidade de se iniciar, continuar ou executar a sócio-educação.
III - CONCLUSÃO
Ante o exposto, conclui-se que a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao invocar o denominado princípio da insignificância para extinguir ação sócio-educativa em face de adolescente em conflito com a lei, além de ter equivocadamente mantida a postura de se valer de conceitos e institutos de Direito Penal para a seara infanto-juvenil, não observa os ditames normativos e principiológicos específicos e próprios da Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente, cabíveis aos casos de ações sócio-educativas levados à Corte.
Referida postura, com a devida vênia, além de conspurcar todo o sistema de garantia e direitos peculiares da criança e adolescente como ser em desenvolvimento, a toda evidência milita contra as atividades daqueles que lutam para que haja efetividade das finalidades das medidas, prejudicando a busca de concretização do sistema preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.