A reestruturação do Estado e coordenação interna.
A vigência da Lei nº 9.613/98 permitiu a criação e estruturação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, órgão colegiado que tem a "finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades". No ano seguinte, foi instituído o Departamento de Combate a Ilícitos Cambiais e Financeiros - DECIF, no Banco Central do Brasil, o que ampliou consideravelmente a capacidade do Estado em combater o crime organizado, em geral, e os crimes financeiros, em particular.
Dada a proeminência do sistema financeiro no processo de lavagem de dinheiro, atribuiu-se ao DECIF a responsabilidade de atuar no sentido de prevenir a ocorrência de ilícitos cambiais e financeiros no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, e combatê-los mediante a adoção das medidas cabíveis e do intercâmbio de informações com outros órgãos.
No campo internacional, registraram-se, entre outras medidas, a adesão plena do Brasil ao GAFI/FATF, ao Grupo de Egmont, a participação no Mecanismo de Avaliação Multilateral da CICAD/OEA e a implementação de medidas no cumprimento da Resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
No âmbito do Ministério das Relações Exteriores foi criada, no segundo semestre de 2001, a Coordenação-Geral de Combate a Ilícitos Transnacionais - COCIT, que passou a tratar dos assuntos relacionados à criminalidade transnacional. De um tratamento atomizado de alguns ilícitos transnacionais, especialmente tráfico de drogas e armas, o Itamaraty adotou uma abordagem mais sistêmica e articulada dessa problemática. Ao tratamento consular e jurídico, com enfoque em aspectos sociais e humanitários, o Ministério das Relações Exteriores acrescentou a perspectiva da criminalidade organizada e do terrorismo internacionais, como ameaças à paz e segurança e ao desenvolvimento sócio-econômico do País.
Tal reestruturação era necessária em razão da proeminência conferida aos temas relacionados com a criminalidade transnacional e terrorismo na agenda dos organismos multilaterais, bem como em decorrência dos compromissos internacionais assumidos pelo País ao assinar uma gama de instrumentos legais multilaterais. A centralização do tema dos ilícitos transnacionais em uma única unidade administrativa do Ministério das Relações Exteriores também se fazia necessária para agilizar e tornar eficaz a interlocução com outros órgãos governamentais nacionais voltados para o combate às diversas modalidades do crime organizado. Vários desses órgãos tem atribuições e competências regimentais para atuar no plano internacional. São, portanto, agentes de política externa plenamente credenciados e, em alguns casos, na qualidade de autoridade coordenadora central nacional, dirigem os trabalhos de sua área de competência em organismos internacionais.
A estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro.
Mesmo tendo adotado um conjunto suficientemente completo de medidas, dispositivos e normas para a prevenção, controle, investigação e repressão da lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo - tarefa que mereceu o reconhecimento internacional -, o regime brasileiro deparava-se com a situação incômoda de carência de resultados concretos nessa matéria.
Não obstante as consideráveis cifras de ativos lavados no País - cerca de US$ 10 bilhões, conforme estimativas feitas por CPI''s e operações da Polícia Federal divulgadas pela mídia -, o percentual de casos que chegava à Justiça era insignificante e não havia dados relativos a inquéritos abertos, denúncias oferecidas, ações iniciadas e findas, valores e bens indisponibilizados e confiscados.
Como fruto da autocrítica, bem como das recomendações recebidas de organismos multilaterais, apontava-se a falta de articulação e de atuação estratégica do Estado como a principal deficiência no regime nacional de combate à lavagem de dinheiro.
Para buscar sanar a deficiência, convocados pelo Ministério da Justiça, reuniram-se, em dezembro de 2003, diversos órgãos e agentes públicos do Estado brasileiro para coordenar a atuação estratégica e operacional no combate à lavagem de dinheiro. Produto da reunião, a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro - ENCLA -2004, que se baseia no princípio da articulação permanente dos órgãos públicos atuantes no combate aos crimes financeiros e, em sentido mais amplo, ao crime organizado, traçou 6 objetivos estratégicos e 32 metas, com prazos e responsáveis definidos. Os objetivos e metas fixados na referida Estratégia refletem de maneira eloqüente a amplitude da ação planejada no exercício. Foi importante iniciativa para organizar o Estado desorganizado para enfrentar o crime organizado e construir uma cultura de combate à lavagem de dinheiro no Brasil.
Concomitantemente ao lançamento da ENCLA 2004, procedeu-se à instalação do Gabinete de Gestão Integrada de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro - GGI-LD e à criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional – DRCI, ambos no âmbito do Ministério da Justiça. Na esfera do poder judiciário, deu-se início à criação de varas especializadas em matéria de lavagem de dinheiro.
Decorridos já 8 anos da entrada em vigor da Lei nº 9.613/98, começam a surgir propostas para atualizá-la em aspectos substantivos, como a ampliação da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, desvinculando-o do rol exaustivo de crimes antecedentes, a introdução do bloqueio administrativo de ativos ilícitos, a definição de organização criminosa e a tipificação dos crimes de terrorismo e financiamento do terrorismo como delitos autônomos. A tipificação dos crimes antecedentes da lavagem de dinheiro passaria a compreender qualquer crime cuja pena de reclusão seja superior a dois anos. A expressão "crimes antecedentes" seria substituída por "infrações penais antecedentes". Abandonar-se-ia, portanto, o paradigma das leis de segunda geração para adotar o regime definido como de terceira geração.
Dentre outras propostas de medidas inovadoras para reformar e atualizar a Lei nº 9.613/98, cabe destacar as seguintes:
a) introdução da chamada "barganha" da pena (‘plea-bargain’), inspirada no direito anglo-saxão, em que as medidas compensatórias pecuniárias reduzem a capacidade econômica do infrator e, conseqüentemente, do crime organizado;
b) incriminação do
atraso e da ausência da comunicação de operação financeira que ultrapassa o limite do valor fixado pela autoridade ou da operação que representa sérios indícios da prática do crime de lavagem;c) incriminação da divulgação indevida de comunicação de operação financeira;
d) inclusão de novo tipo penal, de perigo, consistente na tipificação da conduta daquele que realiza operações estruturadas voltadas para burlar uma comunicação obrigatória;
e) inclusão dos crimes contra a ordem tributária;
f) restabelecimento da possibilidade de liberdade provisória e fiança. Na linha de atacar as finanças do crime organizado, propõe-se a liberdade provisória mediante pagamento de fiança - situação vedada na lei atual e que encontra resistências na jurisprudência, uma vez que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a não-previsão de liberdade provisória na análise da Lei dos Crimes Hediondos;
g) substituição das regras dos artigos 125 a 144 do Código de Processo Penal, que tratam de arresto e seqüestro de bens, direitos ou valores, por disposição que prevê a "indisponibilidade" de bens e a permissão de sua alienação antecipada;
i) instituição do cadastro nacional de bens tornados indisponíveis;
j) inclusão de novas pessoas obrigadas, como as juntas comerciais e os registros públicos, as pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviço de assessoria, consultoria, contadoria ou auditoria de qualquer natureza e as pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas, artistas ou feiras, exposições ou eventos similares";
l) instituição de norma que estabelece o dever de comunicar ao COAF, no prazo de 24 horas, todas as comunicações de operações "suspeitas", independentemente de seu envio para outros órgãos reguladores ou fiscalizadores.
Algumas medidas operacionais de grande importância para lograr maior eficiência na aplicação da lei, como as forças-tarefa e as varas especializadas, já se encontram em fase de implementação e vêm apresentando resultados animadores.
Considerando que os órgãos individuais de fiscalização, de inteligência financeira, de investigação, de persecução criminal e de julgamento envolvidos na apuração dos crimes de "lavagem" detêm apenas uma parcela do conhecimento necessário e, tendo em conta a grande complexidade da matéria, surge a necessidade de realização de forças-tarefas em equipe - task force -, integradas por membros do Banco Central, CVM, SUSEP, SPC, Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público Federal, entre outros.
Igualmente de grande relevância para o combate eficaz à lavagem de dinheiro tem sido a implantação das varas especializadas. A instalação, em cada capital de Estado, de vara especializada no combate à lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro, otimiza a investigação, dando-lhe qualidade e celeridade. A cooperação e a integração constituem a marca de atuação desses centros operacionais. Com a troca de informações rápidas e seguras entre os agentes envolvidos, operações complexas de lavagem de dinheiro são mais facilmente detectadas, melhor compreendidas e prontamente desbaratadas.
A cooperação internacional.
A globalização econômica facilitou o florescimento de um subproduto indesejável – a globalização do crime. As organizações criminosas não estão vinculadas a qualquer conjunto de normas ou princípios de conduta internacional, como não interferência em assuntos internos, que limita a ação dos Estados às suas próprias fronteiras, e reciprocidade. Sem esses entraves e com o recurso desimpedido à tecnologia de ponta, as organizações criminosas contam com superior vantagem sobre os atores estatais. A criminalidade organizada aproveita-se, deliberadamente, da existência de fronteiras territoriais para alcançar os seus fins, já que o Direito, a política, o Judiciário, o Ministério Público estão limitados pelo princípio da territorialidade.
A eficácia da luta contra a delinqüência internacional pressupõe uma estreita colaboração entre os Estados, pois não tendo poder de império, senão dentro do seu próprio território, o Estado necessita recorrer à assistência que lhe podem prestar outros Estados por meio das suas atividades jurisdicionais lato sensu.
O assim chamado instituto da cooperação jurídica internacional encontra fundamento no princípio do acesso à Justiça, de vez que, sem esse instituto, não haveria tutela jurisdicional possível no atual mundo globalizado, em que bens e pessoas atravessam fronteiras com extrema facilidade. Portanto, a cooperação jurídica internacional revela-se uma premissa indispensável ao acesso à Justiça que, acrescente-se, é também um princípio de ordem constitucional no Brasil. Assim sendo, é dever do Estado brasileiro ratificar os tratados que fomentam e estimulam a cooperação internacional. Em conseqüência, deve-se estimular a criação de jurisprudência e interpretações que favoreçam a cooperação entre os países pois, desse modo, afastam-se as dificuldades para o acesso à prova e à própria tutela jurisdicional.
As dificuldades enfrentadas pela Justiça brasileira na investigação de crimes transnacionais são agravadas pela ausência no ordenamento jurídico nacional de uma lei que contemple, de forma estruturada e sistêmica, a cooperação judiciária internacional, a exemplo do que já existe em alguns outros países, como Argentina, Alemanha, Espanha e Suíça.
Com este propósito, a Associação Nacional de Juízes Federais (AJUFE) elaborou um anteprojeto de lei que "regulamenta a assistência judiciária internacional em matéria penal, a ser prestada ou requerida por autoridades brasileiras, nos casos de investigação, instrução processual e julgamento de delitos". A matéria ingressou na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 1982/03 e tramitava, em março de 2006, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN).
Convém ao Brasil, na defesa dos seus interesses, empreender negociações de novos acordos bilaterais de cooperação jurídica, policial e administrativa, dando preferência aos países com os quais se verifica elevado intercâmbio comercial, financeiro e fluxo de investimentos. Especial prioridade deveria ser conferida a países que adotam regime fiscal privilegiado, conhecidos como "paraísos fiscais" ou "paraísos jurídicos", que apresentam condições reconhecidas como mais favoráveis à reciclagem de ativos ilícitos, em qualquer das três etapas teóricas do processo de lavagem de dinheiro: colocação de dinheiro no sistema econômico-financeiro, ocultação dos recursos mediante movimentações que dificultam o rastreamento contábil e, finalmente, integração dos ativos ilegais no sistema econômico legal.
Linhas de ação para a política externa brasileira.
A prática quotidiana em matéria de política externa mostra a participação de vários agentes governamentais, além do Ministério das Relações Exteriores, que vem desempenhando atribuições típicas de política externa. A atuação externa desses agentes é mais evidente nas negociações comerciais, talvez pelo maior interesse da mídia pela matéria.
Decorre daí a necessidade de estimular a interação e a coordenação do Ministério das Relações Exteriores com outros órgãos governamentais nacionais e, quando apropriado, com representações de classe e da sociedade civil, para traçar as linhas de ação possíveis e que melhor atendam os interesses externos brasileiros e os objetivos de transformação interna do País.
Um aspecto importante que deve nortear a atuação do Brasil em foros multilaterais, especialmente a ONU e suas agências especializadas, é a defesa da interconexão ou interdependência das novas ameaças, aspecto esse enfatizado pelo Secretário-Geral da ONU em seus discursos e relatórios mais recentes, assim como pelo Chanceler do Brasil, porém nem sempre levado na devida conta por todos os Estados membros da Organização. Trata-se de promover de forma equilibrada e assentada nos pilares da segurança, desenvolvimento e direitos humanos, as políticas públicas de combate ao terrorismo e ao crime organizado e, por extensão, à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
Coerente com a tradição da política externa brasileira de defesa do multilateralismo e do fortalecimento da Assembléia-Geral e outras instâncias decisórias da ONU, o Brasil deve continuar mantendo a posição de que cabe à Assembléia-Geral, por força de seu mandato contido na Carta das Nações Unidas, alcançar uma definição universalmente aceita do terrorismo. A falta de consenso na matéria tem corroído a autoridade moral da Organização e enfraquecido suas mensagens de repúdio aos atos terroristas. Tal desgaste debilita igualmente as manifestações de condenação do terrorismo dos Estados membros.
Ao reafirmar o princípio da responsabilidade compartilhada dos Estados no combate à lavagem de dinheiro - atividade criminosa que desempenha papel crucial no fomento do crime organizado e do terrorismo -, e levando em conta a estreita conexão entre essas duas ameaças à paz e segurança coletiva, no seu mais amplo sentido, conviria aos interesses brasileiros explicitar adequadamente o seu enfoque prioritário ao combate à lavagem de ativos provenientes de determinadas atividades ilícitas, como a corrupção e o contrabando, e outras tipologias mais recorrentes nas diversas regiões do País. Sem furtar-se à cooperação internacional em matéria de financiamento do terrorismo ou outros delitos graves, a cooperação judiciária ativa e passiva deveria focalizar essas modalidades de crime organizado.
Nessa mesma perspectiva, caberia fomentar a cooperação judiciária internacional e novas formas ágeis e céleres de auxílio mútuo no campo da recuperação de ativos, com a finalidade de denegar o uso e fruição do produto do crime pelos criminosos, impedir o financiamento e a regeneração da indústria do crime e, em última análise, desmantelar as estruturas das organizações criminosas. O êxito de tal medida redundaria em atenuação do sentimento de frustração da opinião pública nacional gerada pelo baixo índice de repatriação de recursos desviados dos cofres públicos.
Não menos importante e necessária se afigura a projeção para o exterior, particularmente nos foros multilaterais e regionais e organismos especializados que tratam do combate à lavagem de dinheiro, crime organizado, corrupção e terrorismo, das atividades em prol da causa levadas a cabo pelas autoridades nacionais. Embora persistam lacunas ainda não preenchidas satisfatoriamente, o País já vem merecendo de organismos internacionais especializados o reconhecimento por diversas medidas adotadas e iniciativas bem sucedidas.
Ainda que em processo de aperfeiçoamento, o regime brasileiro de combate ao crime organizado pode oferecer à comunidade internacional exemplos de boas-práticas, a exemplo da Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro - ENCLA,que constitui modelo de articulação e coordenação interna resultante de vontade política e engajamento da sociedade como um todo no combate ao crime transnacional.