Detectados 663 atos secretos, ou como querem os Sarneynianos, "boletins não publicados". De todo modo, a nomenclatura não determina sua natureza. Maldita natureza, que em tempos de sustentabilidade gera efeitos maléficos até na tecnologia. Seria uma espécie de invasão quântica do natural no artificial? Digo isso pois a culpa dos "atos secretos" foi atribuída ao sistema interno do Senado (Intranet), como se este fosse o antiético, o imoral, enfim, o sujeito capaz de valorar a legalidade de suas atitudes e, em conseqüência, nomear parentes, conceder gratificações salariais, etc. Segundo os técnicos, muitos boletins contêm mais de um ato. Logo, o espetáculo pode ser ainda mais espetaculoso.
Mas o presidente do Senado, José Sarney, foi "cauteloso". No dia 13 de julho de 2009 assinou o Ato do Presidente nº 294, determinando a anulação dos 663 atos secretos identificados pelo relatório da comissão especial. Ocorre que este lapso de sanidade foi, certamente, furto dum agir estratégico voltado a fins espúrios impregnados de movimentos políticos sórdidos, pois, no dia 11 de agosto de 2009 o senador convalidou e validou os atos secretos mediante o Ato nº 313, de 7 de agosto de 2009, publicado no Diário Oficial da União no dia 11 de agosto de 2009. O mais intrigante é que o Senado, aos 18 de setembro de 2009, mediante Boletim Administrativo do Senado, se valeu de ata secreta para validar (36) atos secretos! E adivinha que assina a ata: José Sarney.
Segundo Sarney, "o vício da falta de publicação dos atos já foi sanado", por isso as gratificações devem ser mantidas. E continua: "Considerando a faculdade legal de a administração convalidar os atos que não tenham acarretado lesão ao interesse público ou prejuízo a terceiros, consideram-se não suspensas ou interrompidas as atribuições dos ocupantes das funções comissionadas no período" (leia-se, 10 anos de atos secretos).
Estes argumentos, fruto da "Teoria Sarneyniana das Nulidades e Anulabilidades dos Atos não-jurídicos Secretos", carrega como eixo analítico axiológico, o princípio da "sobreposição dos interesses particulares e partidários em detrimento aos institucionais", que irradia por todo o ordenamento jurídico vigente.
Este princípio, após juízo de ponderação, atende aos princípios da Administração Pública (Constituição Federal, art. 37 [01]), quais sejam, a ilegalidade (atos secretos não são leis), a pessoalidade (beneficiar pessoas determinadas), a imoralidade (praticar condutas antiéticas e desonesta), a não-publicidade (não divulgação dos atos da Administração Pública) e eficiência (Eficiente foi! Gerou cargos e receita a parentes e servidores).
Ressalta-se ainda, que o princípio da não-publicidade, também chamado de "princípio do favorecimento secreto intencional", visa proteger a segurança da sociedade (Constituição Federal, Art. 5º, XXXIII [02]), uma vez que a população é poupada de se indignar e se rebelar.
São 10 anos de atos nulos, e segundo a "Teoria Sarneyniana das Nulidades e Anulabilidades dos Atos não-jurídicos Secretos", o nulo transforma-se em anulável o ilícito em lícito e, está tudo certo! Nesse ponto, acredito que Sarney não tenha freqüentado as aulas perante a Faculdade de Direito da atual Universidade Federal do Maranhão, onde se bacharelou em 1953; isso mesmo: Sarney é Advogado!
Ora, não há dúvidas sobre a responsabilização dos envolvidos (agentes públicos ou beneficiários) na prática de atos "secretos". O artigo 11, inciso IV da Lei 8429/92 [03] constitui ato de improbidade administrativa as condutas que violem os princípios da Administração Pública, repelindo especificamente "negar publicidade aos atos oficiais". Mas convenhamos: se são secretos, não são oficiais, logo para que publicar?
É, por aqui ainda reina na mente de alguns o ideal imperialista do poder moderador, diga-se de passagem, nada moderado (por exemplo: reajuste da verba indenizatória de R$ 12 mil para R$ 15 mil). Acredito que realmente estamos no século XIX. Basta ler o art. 99 da Constituição Imperial (1824) e perceber a semelhança com a crise política ("A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma"). A história explica tudo!
Para ver como realmente explica, Sarney nasceu em 24 de abril de 1930 e, em 1955, iniciou sua carreira política como Deputado Federal, sendo hoje o parlamentar mais antigo em atividade. Do acaso da vida, e por reflexos ideológicos do regime das oligarquias (1894 a 1930), e por todo o mais que vivenciou na qualidade de político [04], foi acometido pela enfermidade do "vício estrutural da formação histórica" que se arrasta por este país. Ademais, é firma e unânime a opinião de que Sarney é protagonista da mais antiga e vigente oligarquia do país, a Sarneylandia, no estado do Maranhão. É o último oligarca que deu certo!
Imperial ou oligárquico o fato é que os 663 atos secretos eram tão secretos que nem Sarney, em princípio, dizia saber existir. Depois assumiu que sabia (o habito da mentira gera esses efeitos!), mesmo porque seu nome aparecia em vários atos como signatário. De qualquer forma, assim como sua deficiência jurídico-intelectual, sua experiência política também não foi o bastante para dar-lhe percepção das irregularidades, mas tão-somente percepção de que seus parentes estavam contentes e felizes! Uma genuína atitude de um passado coronelista, incapaz de dissociar as esferas pública e privada. A propósito, coitado do ACM, o Antônio Carlos Magalhães, que se foi ser saber destes segredos!
Enfim, deixando de lado as questões éticas e morais (o debate é frustrante no sentido pragmático), conferimos destaque à ilegalidade e a não-publicidade dos denominados "boletins" (Veja os 663 atos secretos do Senado – fonte: O globo). A não-publicidade dos atos da Administração Publica, por si só, induz nulidade iures et de iure; em última análise e por outro lado, ainda que se fossem publicados, são ilegais, pois os atos da Administração Pública somente podem ser praticados amparados em lei (principio da estrita legalidade), ou seja, a Administração não pode agir com fundamento meramente na vontade do agente público. Logo toda sua atuação deve ficar adstrita aos termos da lei de regência da conduta administrativa específica, sob pena de subversão da legalidade.
"O administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso". (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 15ª ed. Revista dos Tribunais, 1990. p. 79).
Ademais, o ato administrativo deve respeitar os seguintes requisitos: competência (o autor do ato deve estar investido nas atribuições necessárias para sua produção), objeto (conteúdo em conformidade com a lei), forma (revestimento externo do ato), finalidade (resultados pretendidos) e motivo (situação concreta que autoriza a sua prática).
Mas a "Teoria Sarneyniana das Nulidades e Anulabilidades dos Atos não-jurídicos Secretos", combate os preceitos legais e constitucionais expostos, pois relativiza o nulo, fazendo crer que o nulo não é nulo; induz a idéia de que os "atos secretos" podem ser validados ex tunc. Lembrem-se: tudo baseado no princípio da "sobreposição dos interesses particulares e partidários em detrimento aos institucionais".
Em sentido contrário a Sarney, Celso Antônio Bandeira de Mello, leciona que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, "é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos". (Elementos de Direito Administrativo. 2ª ed. Revista dos Tribunais, 1991. p. 55/58.). Bom, são as divergências jurídicas.
É certo, porém, que há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. (STF – 1ª Turma; RE n° 253885/MG; Recurso Extraordinário, Relatora Ministra Ellen Gracie Northfleet, julgado em 04/06/02).
E nesse sentido seguiu Sarney. Porém, dá análise do o Ato nº 313, de 7 de agosto de 2009, verificamos que a justificativa não passa de interpretação equivocada do art. 55 da Lei nº 9.784/1999 (regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal), verbis: "Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria administração".
Assim, se o vício for um vício sanável – vício de competência quanto à pessoa, desde que não exclusiva, ou vício de forma, desde que a lei não considere a forma essencial à validade do ato – a Administração pode optar entre convalidar o ato (se presentes os demais requisitos, a saber, não acarretar lesão ao interesse público, nem acarretar prejuízo ao terceiros) ou anulá-lo.
Ora, como convalidar nomeações de cargos e aumentos de salários se a Administração Pública não pode agir com fundamento meramente na vontade do agente público, mas somente amparada em lei? Qual a lei que autoriza a elaboração de atos secretos? O regimento do Senado? Sinceramente, da leitura do Regimento Interno do Senado Federal, não encontrei esta competência. Na verdade o que encontrei e me indignei foi a possibilidade do Presidente do Senado propor a transformação de sessão pública em secreta (RI, art. 48, inciso IV). Lamentável resquício da ditadura.
Com efeito, embora a Administração Pública tenha a possibilidade de convalidar os atos administrativos, ou seja, corrigir o vício existente em um ato ilegal, este ato de validação não se pode convalidar um ato quando a sua repetição importe na reprodução do vício anterior.
Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta que: "só pode haver convalidação quando o ato possa ser produzido validamente no presente. Importa que o vício não seja de molde a impedir reprodução válida do ato. Só são convalidáveis atos que podem ser legitimamente produzidos". (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 417).
Importa dizer, se os atos secretos são proibidos (ante a inexistência de norma permissiva) o erro do passado não pode ora se converter em ato legal da administração sob o manto do art. 55 da Lei nº 9.784/1999, mesmo porque, repita-se, não se pode convalidar um ato quando a sua repetição importe na reprodução do vício anterior. Logo, na minha compreensão o Ato nº 313, de 7 de agosto de 2009, padece de inconstitucionalidade.
Mas voltando às questões morais e éticas: qual a eficácia e aplicabilidade dos princípios constitucionais da administração pública (Constituição Federal, art. 37) no âmbito da política? Teoricamente: Plena, Absoluta, Irradiante! Pragmaticamente: Indiferente!
Na política, e a percepção da sociedade confirma, os políticos mostram-se indiferentes à legalidade e a moralidade administrativa. O discurso político retórico-falacioso é convincente ao ponto de habituar os próprios políticos a crerem nas suas mentiras. De outra banda, a sociedade, indignada, é igualmente indiferente.
Acredito que todos, políticos e não-políticos, absorveram bem a lição de Rui Barbosa: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".
Viva a presidência do José Sarney!
Notas
- Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
- Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
- Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: IV – negar publicidade aos atos oficiais.
- 04 dissoluções do Congresso Nacional: 10 de novembro de 1937 a 31 de janeiro de 1946, 20 de outubro a 22 de novembro de 1966, 13 de dezembro de 1968 a 21 de outubro de 1969, 1º a 14 de abril de 1977; 02 governos provisórios: Paschoal Ranieri Mazzili (2 a 15 de abril de 1964), Junta Militar (14 a 30 de outubro de 1969); 01 renúncia presidencial: Jânio da Silva Quadros (25 de agosto de 1961); 02 presidentes impedidos de tomar posse: João Belchior Marques Goulart (1961), Pedro Aleixo (1969); 04 presidentes depostos: Getúlio Dornelles Vargas (29 de outubro de 1945), Carlos Coimbra da Luz (11 de novembro de 1955), João Fernandes Café Filho (23 de novembro de 1955), João Belchior Marques Goulart (1º de abril de 1964), Arthur da Costa e Silva/Pedro Aleixo (31 de agosto de 1969); Suicídio de um presidente: Getúlio Dornelles Vargas (no segundo mandato – dia 24 de agosto de 1954); 02 constituintes: 1946, e 1988; Reflexo de 06 Constituições diferentes: 24 de fevereiro de 1891, 16 de julho de 1934, 10 de novembro de 1937, 18 de setembro de 1946, 24 de janeiro de 1967, 5 de outubro de 1988; 02 longos períodos ditatoriais: 1937/1945, 1964/1985; 08 governos autoritários: Getúlio Dornelles Vargas – 2 vezes (1930-1934 e 1937-1945), Marechal Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Marechal Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Junta Militar (1969), General-de-Exército Emílio Garrastazú Médici (1969-1974), General-de-Exército Ernesto Geisel (1974-1979), General-de-Exército João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985). 12 estados de sítio; 02 estados de guerra - comoção intestina grave (primeiro período Vargas – 1930 a 1937), inúmeros decretos-leis, 21 leis constitucionais (Ditadura Vargas, 1937 – 1945); 17 Atos Institucionais (Governo Militar, 1964-1985), 19 rebeliões militares, Inúmeras cassações de mandatos eletivos; Prisões de parlamentares, banimentos, exílios; Intervenções nos sindicatos e universidades; Censuras à imprensa; Prisões, torturas, assassinatos políticos e assassinatos de cidadãos engajados em movimentos populares.