O presente texto tem por finalidade realizar um estudo sobre a faixa de fronteira terrestre do Brasil e a atuação do Exército Brasileiro (EB), em atribuições subsidiárias, a partir do advento da Lei Complementar (LC) nº 97, de 9 de junho de 1999, com as alterações feitas pela Lei Complementar nº 117, de 2 de setembro de 2004.
Esse novo dispositivo legal, infraconstitucional, trouxe para a Força Terrestre (F Ter) a possibilidade do uso do poder de polícia na faixa de fronteira terrestre do País, isoladamente ou em conjunto com outros órgãos do Poder Executivo.
Para se atingir o fim proposto, analisar-se-á cada elemento em destaque do Art. 17-A, inciso IV, da LC 97/1999.
"Cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, [...]: IV - atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, [...]."
(Art. 17-A, inciso IV, da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999)
Após uma breve análise dos elementos legais, o objetivo passará a ser o de proporcionar aos militares - e outros agentes do Poder Público - que venham realizar operações nessa faixa uma visão interdisciplinar sobre a importância do tema fronteira, abordando aspectos geográficos, geopolíticos e jurídicos, a fim de que tornem esse tipo de operação o mais legítimo e legal possível, visando sempre atender aos postulados constitucionais, aos Objetivos, à Defesa e à Segurança Nacionais, sem que para isso ocasione indício ou fato caracterizador de arbitrariedade, desvio ou abuso de poder. Tudo isso considerando o atual estágio da globalização, o advento do processo da supranacionalização e os riscos de ingerência na soberania estatal.
DA FAIXA DE FRONTEIRA TERRESTRE
O primeiro elemento a ser estudado será a faixa de fronteira terrestre, a fim de, simultaneamente, proporcionar ao leitor uma conceituação desse termo e uma demonstração de sua importância para o Estado.
Conforme a própria Constituição da República do Brasil, de 1988, "A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei." (Art. 20, §2º). Sendo assim, a partir da definição constitucional, tem-se, pelo menos, os seguintes dados:
Extensão da faixa: até 150 km de largura, ao longo das fronteiras terrestres.
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Finalidade: defesa do território nacional.
Para um melhor dimensionamento da área que se está estudando, consta abaixo uma tabela e um mapa demonstrativos da extensão das fronteiras terrestres do Brasil com os países fronteiriços:
Tabela: Características físicas dos limites internacionais do Brasil
Fonte: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, 1999. In: BARCELLOS et. al., 2001 apud ABREU, 2008
O próximo elemento a ser estudado será a expressão as ações preventivas e repressivas, que deverão ser efetivadas pelos militares do EB na faixa de fronteira terrestre, a fim de coibir os crimes transfronteiriços e ambientais.
Para tanto, o próprio inc. IV, do art. 17-A, da LC 97/99, em suas alíneas, elenca quais ações estão legalmente previstas. Tratam-se das ações de patrulhamento; de revista de pessoas, de veículos terrestres, embarcações e aeronaves, e de prisões em flagrante delito.
A Portaria Nº 061, de 16 de fevereiro de 2005, do Comandante do Exército, em atenção ao poder de polícia atribuído ao EB por meio da LC 97/1999, traz um rol exemplificativo de ações preventivas e repressivas a serem realizadas. São elas:
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preventivas:
a) intensificar as atividades de preparo da tropa, de inteligência e de comunicação social, consideradas de caráter permanente;
b) cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, for desejável e em virtude de solicitação, na forma do apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução; e
c) prover segurança às atividades de órgãos federais, quando solicitado e desejável, [..].
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repressivas:
a) instalar e operar postos de bloqueio e controle de estradas e fluviais e postos de segurança estáticos;
b) realizar patrulhamento e revista de pessoas, veículos, embarcações, aeronaves e instalações;
c) efetuar prisão em flagrante delito;
d) apoiar a interdição de pistas de pouso e atracadouros clandestinos, utilizados, comprovadamente, para atividades ilícitas; e
e) fiscalizar produtos controlados.
Pormenorizando algumas dessas ações, destacam-se as Instruções Provisórias 85-1 Operações de Garantia da Lei e da Ordem, aprovada pela Port nº 034–EME-RES, de 24 de maio de 2002, que traz, dentre outras: o Estabelecimento de Postos de Bloqueio e Controle de Estradas (PBCE), o Estabelecimento de Postos de Bloqueio e Controle de Vias Urbanas (PBCVU), a Busca e Apreensão de Pessoas, Armamento, Munição e Outros Materiais, a Identificação de Pessoas, a Interdição ou a Evacuação de Áreas e o Controle de Distúrbios.
Convém frisar que essas ações poderão ocorrer de modo isolado ou em conjunto. No entanto, segundo própria recomendação do Comandante do Exército, e considerada uma premissa básica (Port Nº 061/2005, Cmt EB), deverão ser realizadas dentro de um contexto de Segurança Integrada, compreendendo o contato com as demais Forças Armadas, os Órgãos de Segurança Pública (OSP), o Ministério Público (MP) e órgãos do Poder Judiciário, dos Ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, dentre outros afins, sempre que pertinente e possível.
Todavia, surge o questionamento: que poder é esse atribuído ao Exército Brasileiro para realizar essas ações? Qual é o seu limite?
Esse poder é denominado poder de polícia. Está intrinsecamente ligado ao Poder Público e tem seu fundamento no próprio poder soberano do Estado. O professor Hely Lopes Meirelles (2002, p. 127) leciona que poder de polícia "[...] é a faculdade que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado."
Esse poder tem como razão de existência o interesse social, da coletividade, e como objetivo coibir ações que possam afetar esta coletividade ou pôr em risco a segurança nacional. Para tanto, a eficácia e a efetivação desse poder necessita de uma regulamentação, de um controle e de contenção pelo Poder Público.
Como consequência, para os militares federais e demais agentes do Poder Público justifica-se a necessidade de se conhecer a Lei Complementar nº 97/1999 (com as alterações da LC 117/2004). É pelo dispositivo objeto desse estudo que a Força Terrestre (F Ter) adquire esse poder de atuação, mas não se esquecendo dos limites impostos.
Já Bandeira de Mello (2008, p 809) entende que o termo poder de polícia deveria ser denominado "limitações administrativas à liberdade e à propriedade".
O mestre José Afonso da Silva (2007, p. 778) traz uma definição de atividade de polícia, realizando, ainda, uma distinção entre os tipos dessa atividade: a atividade administrativa e a atividade de segurança. Esta última se subdividindo em atividade ostensiva e judiciária.
A atividade administrativa seria a responsável pelas limitações impostas a bens jurídicos individuais – liberdade e propriedade. À atividade de segurança (ostensiva) caberia a preservação da ordem pública, com medidas preventivas a fim de evitar dano ou perigo às pessoas. E, por fim, a atividade judiciária (também um dos ramos de segurança) seria a incumbida de realizar as atividades de investigação, de apuração de infrações penais e de indicação de autoria.
Desta feita, certos do poder atribuído à F Ter, perfaz-se a necessidade de observação dos limites impostos. Tais balizadores encontram assento no texto da Constituição Federal, sobretudo no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Bandeira de Mello (2008, p.830) menciona a preocupação que o Poder Público e seus agentes devem ter ao se utilizarem do poder de polícia: "[...] é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade [...]."
Portanto, crucial para o agente que se utiliza desse poder é observar o Princípio da Proporcionalidade, sabendo ponderar a medida adotada e a finalidade a ser atingida, eis que um eventual excesso desse poder pode ocorrer "quando a intensidade da medida é maior que a necessária para a compulsão do obrigado, ou quando a extensão da medida é maior que a necessária para a obtenção dos resultados licitamente perseguíveis." (MELLO, 2008, p.830).
Sendo assim, além da Legalidade, a Proporcionalidade entre o meio e o fim dessas ações deverão servir constantemente como um farol norteador, principalmente aos que estiverem na função de comando.
DOS CRIMES TRANSFRONTEIRIÇOS E AMBIENTAIS
Cabe agora tecermos considerações sobre o elemento crimes transfronteiriços e ambientais.
A Portaria Nº 061, de 16 de fevereiro de 2005, do Comandante do Exército, é muito elucidativa a respeito. Em seu item 6. EXECUÇÃO essa norma traz uma enumeração, exemplificativa, dos principais ilícitos objetos de prevenção e repressão por parte da F Ter. São eles:
1. Delitos Transfronteiriços:
a entrada (e/ou tentativa de saída) ilegal no território nacional de armas, munições, explosivos e demais produtos afins;
o tráfico ilícito de entorpecentes e/ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica, ou matéria-prima destinada à sua preparação;
o contrabando e o descaminho (Código Penal Brasileiro, art. 334);
o tráfico de plantas e de animais, na forma da Lei de Crimes Ambientais (L. 9.605/98), do Código Florestal (L. 4.771/65) e do Código de Proteção à Fauna (L. 5.197/67);
a entrada (e/ou tentativa de saída) no território nacional de vetores em desacordo com as normas de vigilância epidemiológica.
2. Delitos ambientais:
a prática de atos lesivos ao meio ambiente, assim definido pela Lei de Crimes Ambientais (L. 9.605/98);
a exploração predatória ou ilegal de recursos naturais;
a prática de atos lesivos à diversidade e à integridade do patrimônio genético do País, assim definido na Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 Ago 01.
Conveniente lembrar que tais delitos ocorrem com frequência, apesar de todo o aparato inibidor já montado e em funcionamento nessa área fronteiriça. Podem ser citados, por exemplo: a região da Tríplice Fronteira: Brasil – Paraguai - Bolívia, uma das principais vias de acesso do tráfico de entorpecentes, do contrabando de armas e de descaminho, sem contar com insinuações de existência de células ligadas ao terrorismo internacional; as ações do governo colombiano e a possibilidade de transbordamento das ações da FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) para o território brasileiro. Destacam-se, ainda, os crimes ambientais, praticados por meio do garimpo e da extração de madeira ilegais, dentre inúmeros outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É nesse novo cenário que os agentes representantes do Poder Público, em especial os militares do Exército Brasileiro, deverão atuar: cientes da extensão e das características geográficas da faixa fronteiriça do País e das repercussões geopolíticas e internacionais que essa área possui intrinsecamente.
Conhecedores do embasamento legal que respalda as ações preventivas e repressivas necessárias ao cumprimento das atribuições subsidiárias do EB na faixa de fronteira terrestre e os limites impostos pela lei.
Sabedores de que sua boa atuação garantirá, dentre outros inúmeros benefícios, a Defesa e, por fim, a Segurança Nacional, promovendo a paz e o bem-estar social tão almejados pela Pátria.
Bibliografia
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Nota
Mapa extraído do artigo Faixa de fronteira do Brasil: o aparente conflito entre segurança e desenvolvimento, de autoria do Coronel Gustavo de Souza Abreu, publicado em 2008. Disponível em: https://www.eceme.ensino.eb.br/portalcee.