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A nova ação penal nos crimes contra a dignidade sexual.

Uma análise da Lei nº 12.015/2009

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4 Regras de transição

Cumpre agora analisar qual deverá ser a solução para os crimes praticados antes da vigência da Lei n. 12.015/2009, mas cujo processamento se dê já na vigência da nova legislação.

A alteração da espécie de ação penal é inegavelmente uma questão de direito penal material, pois se transformar um delito de ação penal privada em ação penal pública significa extinguir vários benefícios (como a decadência, renúncia, perempção e perdão aceito) que podem levar à extinção da punibilidade. Assim, apesar de terem feição processual (titularidade do direito de ação), possuem indissociáveis repercussões materiais e, por esse motivo, as normas que alteram a titularidade da ação penal devem ser consideradas normas híbridas, que se guiam em sua aplicação temporal segundo os critérios das normas penas materiais, ou seja, as normas penais materiais mais benéficas devem retroagir para beneficiar os fatos anteriores, e as normas penais mais gravosas apenas se aplicam aos fatos praticados após sua vigência.

Para os delitos de estupro, devem ser diferenciadas três situações:

HIPÓTESE A: em relação às hipóteses de estupro (ou o antigo atentado violento ao pudor) praticados antes da vigência na nova lei, mas com processo ainda em curso, que tenham sido praticados com lesão corporal grave, seguidos de morte, ou com abuso do pátrio poder, não houve qualquer alteração em relação à ação penal, de sorte que o critério de intertemporalidade deverá ser exclusivamente o do quantum da pena.

HIPÓTESE B: em relação aos delitos praticados com lesão corporal simples ou grave ameaça, caso se entenda que a nova legislação revogou o entendimento da Súmula n. 608 do STF (conforme fundamentação acima), percebe-se que, na verdade, a nova lei é mais benéfica no que tange à ação penal, pois antes os delitos eram considerados de ação penal pública incondicionada e agora passarão a ser considerados de ação penal pública condicionada à representação.

HIPÓTESE C: finalmente, em relação aos delitos praticados com violência presumida, a nova lei é mais gravosa no que tange à ação penal, pois os transforma de delitos sujeitos à ação penal pública condicionada à representação (quando a vítima fosse pobre) ou à ação penal privada (quando a vítima não fosse pobre), todos em crimes de ação penal pública incondicionada.

Todavia, a questão da intertemporalidade não é tão simples, pois também deve levar em consideração o quantum da pena.

Segue um quadro comparativo das penas:

Situação

Delito

Pena anterior e

Ação penal

Pena atual e

Ação penal

Solução

1

Estupro simples

6-10 anos

APPI

6-10 anos

APPC

Lei nova

2

Estupro com lesão grave

8-12 anos

APPI

8-12 anos

APPI

Lei antiga

3

Estupro com morte

12-25 anos

APPI

12-30 anos

APPI

Lei antiga

4

Estupro simples em concurso material com atentado violento ao pudor simples

12-20 anos

APPI

6-10 anos

APPC

Lei nova

5

Estupro de menor de 14 anos com grave ameaça ou violência real

(aplicava-se a causa de aumento de metade prevista na Lei n. 8.072/1990, art. 9º)

9-15

APPI

8-15

APPI

Lei nova

6

Estupro de menor de 14 anos sem grave ameaça ou violência real

6-10

APPC ou APPr

8-15

APPI

Lei antiga

7

Estupro de pessoa com deficiência mental ou que não pode oferecer resistência

6-10

APPC ou APPr

8-15

APPI

Lei antiga

Nas situações 1, 4 (estupro simples, ou em concurso material com o antigo atentado violento ao pudor), sendo o crime praticado com violência real ou grave ameaça (hipótese B), a nova pena é idêntica (na hipótese do estupro simples) ou mesmo mais benéfica (na hipótese do concurso material) e a nova lei é mais benéfica quanto à ação penal (pública condicionada à representação). Nessa situação, deve ser aplicado por analogia o disposto no art. 91 da Lei n. 9.099/95 (uma regra de transição para situação idêntica de alteração da ação penal de incondicionada para condicionada), intimando-se a vítima para esclarecer se deseja representar, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência. Caso o processo já esteja transitado em julgado, ficará obviamente prejudicada a referida diligência, devendo tão somente o juiz da execução penal, na hipótese de concurso material, proceder à redução da pena, atento à inexistência atual de concurso material (devendo o outro delito de atentado violento ao pudor ser utilizado como circunstância judicial para elevação da pena-base do estupro).

Todavia, na situação 1, há uma questão a se diferenciar: caso se esteja diante da causa de aumento de pena prevista no art. 226, II, do CP ("se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela"). É que nessa situação, antes o acréscimo de pena era de um quarto e agora passa a ser de metade. Portanto, a nova lei prevê uma pena mais grave que a lei antiga, sendo mais gravosa. Não pode o juiz aplicar uma parte da lei antiga (pena mais branda) e uma parte da lei nova (ação penal pública condicionada), pois nessa situação estar-se-ia criando uma terceira lei (tercius legis), que em nenhum momento foi a intenção do legislador. Ou se aplica a lei antiga na integralidade, ou a lei nova na integralidade. Considerando que a fixação da pena afeta de forma mais direta e gravosa o jus libertatis, entendemos que esse deve ser o critério preponderante para se avaliar qual lei é mais benéfica. Imagine-se a situação: o juiz intimaria a vítima para esclarecer se ela deseja representar, e se ela representar então ele entenderá que o crime é de ação penal pública incondicionada (?!). Ou se a vítima não representar e o juiz arquivar com base na lei nova, se ela se retratar da retratação à representação ainda dentro do prazo decadencial de seis meses então o juiz deveria condenar na pena mais elevada da lei nova? De forma alguma. Assim, entendemos que na hipótese de estupro simples praticado com a causa de aumento de pena do art. 226, II, do CP, deverá continuar sendo aplicada a lei antiga, ou seja, a ação penal será pública incondicionada (Súmula n. 608 do STF) e o acréscimo da pena será de apenas um quarto. Entendemos que essa situação é certamente a mais polêmica da reforma e certamente demandará estudos doutrinários e uniformização jurisprudencial.

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Nas situações 2, 3, 6 e 7, deve continuar sendo aplicada a lei antiga para os crimes praticados antes da vigência da nova lei, pois a lei antiga ou previa penas menos severas, ou penas idênticas e ação penal mais benéfica.

Registre-se que nas situações em que a lei nova não alterou nada (como na situação 2), deve-se aplicar a lei antiga pois o CP, art. 2º, parágrafo único, estabelece que a lei penal nova, se for mais benéfica, retroagirá para beneficiar o réu; assim, como a lei nova não é mais benéfica (é idêntica), não retroagirá, ainda se aplicando a lei anterior.

Finalmente, na hipótese 5 (estupro de menor de 14 anos praticado com violência real ou grave ameaça), deverá ser aplicada a lei nova mesmo aos crimes praticados antes de sua vigência, pois a nova pena mínima é mais benéfica ao réu. Quanto à essa situação, deve-se registrar que a questão sempre foi polêmica, com interpretações divergentes no âmbito do STJ. No entendimento unânime do STJ, se o estupro contra menor de 14 anos fora praticado sem violência real, não deveria ser aplicada a causa de aumento da pena, tendo em vista que o antigo art. 224 do CP já era usado para a adequação típica da conduta, e usá-lo novamente para exasperação da pena configuraria bis in idem [18]. Todavia, a Quinta Turma do STJ entendia que se houvesse prática de violência real ou grave ameaça, seria admissível a aplicação da causa de aumento de pena, o art. 224 do CP não teria sido utilizado para a adequação típica [19]. Todavia, em sentido contrário, a Sexta Turma do STJ entendia que apenas seria possível aplicar a causa de aumento da pena referida se houvesse lesão corporal grave ou morte [20]. Pessoalmente, entendemos muito mais lógica a posição da Quinta Turma, pois no caso de estupro em desfavor de menor de 14 anos praticado com violência real ou grave ameaça, não era necessário utilizar o art. 224 do CP para se completar a adequação típica, com a finalidade de se presumir a violência, pois a violência já estava efetivamente comprovada, de sorte que a utilização desse dispositivo para se aplicar a causa de aumento da pena não configurava bis in idem. Obviamente, a conclusão constante do quadro supra (de que a lei antiga era mais severa) apenas será válida caso se considere como acertado o antigo posicionamento da Quinta Turma do STJ (que aplicava a causa de aumento de pena na hipótese de violência real ou grave ameaça).

Como dito no início, a questão da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual ainda renderá muitas discussões. Espera-se que seja em breve objeto de uniformização por parte dos Tribunais Superiores.


Referências

ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Direito processual penal. 15ª ed. Brasília: Vestcon, 2009.

_____. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

BITENCOURT, Cezar R. Código Penal anotado e legislação complementar. 2. ed. São Paulo: RT, 1999.

CRUZ, Rogério Schietti Machado. Processo penal pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005.

GRECO, Rogério. Adendo. Lei nº 12.015/2009: dos crimes contra a dignidade sexual. Niterói: Impetus, 2009.

JESUS, Damásio E. Código Penal anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.


Notas

  1. A presente análise já constava de nossa obra: ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Direito processual penal. 15ª ed. Brasília: Vestcon, 2009, item 6.6.
  2. HC nº 7.910/PB. Relator Ministro Anselmo Santiago. DJ de 23/11/1998.
  3. HC nº 21.423/SP. Reg. nº 2002/0036067-0. 5ª Turma. Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca. DJ 26/8/2002, p. 279.
  4. JESUS, Damásio E. Código Penal anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, art. 101.
  5. BITENCOURT, Cezar R. Código Penal anotado e legislação complementar. 2. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 378.
  6. STJ, 6. T., REsp 1.195/PR, rel. Ministro Carlos Thibau, relatora para acórdão Ministro Costa Leite, j. 12/3/1991. DJ 1/04/1991, p. 3429.
  7. No mesmo sentido: STJ, 5. T., HC 31.063/PE, relator Ministro Jorge Scartezzini, j. 23/3/2004. DJ 24/5/2004, p. 308.
  8. TJDFT, 1. T. Crim., HC 2009.00.2.009572-9, rel. Des. Mario Machado, j. 20/8/2009.
  9. CRUZ, Rogério Schietti Machado. Processo penal pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 167-180.
  10. STF. HC nº 94.818-9/MG. Relatora Ministra Ellen Gracie. DJe 152/2008, de 14/8/2008, p. 85.
  11. STF. RHC nº 79.788/MG. 2ª T. Relator Ministro Nelson Jobim. J. 2/5/2000. DJ 17/8/2001, p. 52.
  12. Para uma visão do princípio da proteção penal eficiente e sua relação com o sistema de direitos fundamentais, em especial com a chamada proibição fundamental de insuficiência de proteção, ver: ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, item 1.4.
  13. NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p. 68-69.
  14. GRECO, Rogério. Adendo. Lei nº 12.015/2009: dos crimes contra a dignidade sexual. Niterói: Impetus, 2009, p. 23.
  15. STJ, 6. T., HC 108.098/PE, rel. p/ ac. Min. Paulo Gallotti, j. 23/9/2008, DJU 3/8/2009. STJ, 6. T., REsp 1000222/DF, rel. Min. Jane Silva, (Des. convocada), j. 23/9/2008, Dje 24/11/2008. STJ, 6. T., HC 108.098/PE, rel. p/ ac. Min. Paulo Gallotti, j. 23/9/2008, DJe 3/8/2009. STJ, 6. T., HC 96.992/DF, rel. Min. Jane Silva (Des. convocada), j. 12/8/2008, DJe 23/3/2009.
  16. STJ, 6. T., HC 113.608/MG, rel. p/ ac. Min. Celso Limongi (Des. convocado), j. 5/3/2009, DJU, 3/8/2009
  17. STJ, 5. T., HC 91.540/MS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 19/2/2009, DJe 13/4/2009. STJ, 5. T., HC 130.000/SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 13/8/2009, DJe 8/9/2009.
  18. STJ, 5. T., EDcl no HC 114.828/CE, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 5/2/2009, DJe 16/3/2009.
  19. STJ, 5. T., HC 111.647/RJ, rel. Min. Laurita Vaz, j. 6/11/2008, DJe 1/12/2008. STJ, 5. T., REsp 667.450/RS, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/8/2006, DJ 25/9/2006, p. 301.
  20. STJ, 6. T., HC 49.264/RJ, rel. Min. Paulo Gallotti, j. 18/4/2006, DJ 5/6/2006, p. 322. STJ, HC 49.274/MS, rel. Min. Paulo Medina, j. 30/11/2006, DJ 26/2/2007, p. 645.
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Sobre o autor
Thiago André Pierobom de Ávila

Promotor de Justiça do MPDFT, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília, Professor de Direito Processual Penal da FESMPDFT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ÁVILA, Thiago André Pierobom. A nova ação penal nos crimes contra a dignidade sexual.: Uma análise da Lei nº 12.015/2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2278, 26 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13589. Acesso em: 22 dez. 2024.

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