Capa da publicação A morte civil dos brasileiros
Capa: Wikimedia Commons
Artigo Destaque dos editores

A morte civil dos brasileiros

Exibindo página 2 de 3
03/10/2009 às 00:00
Leia nesta página:

8. A realidade confirma a ficção – o caso do ex-ministro Alceni Guerra

Em terras brasileiras, dois casos reais confirmam a rotina dos assassinatos de reputação. O primeiro deles é o de Alceni Guerra, Ministro da Saúde no governo Collor.

A primeira página do jornal Correio Braziliense, do dia 4 de dezembro de 1991, trazia a seguinte manchete: "Saúde compra 22 mil bicicletas superfaturadas". Com o objetivo de combater uma epidemia de cólera que se alastrava por algumas regiões do país, o ministério abriu uma concorrência pública para suprir os agentes comunitários com equipamentos necessários, incluindo as famosas bicicletas. Três empresas participaram, vencendo as Lojas do Pedro, de Curitiba.

Na reportagem, a jornalista Isabel de Paula dizia que "por um preço quase 50% acima do mercado, a Fundação Nacional de Saúde (FNS),vinculada ao Ministério da Saúde, adquiriu 22.500 bicicletas para agentes comunitários por Cr$ 3 bilhões, 307 milhões e 500 mil [moeda da época]. As bicicletas, marca Caloi Poti FM, custaram à Fundação Cr$ 147 mil a unidade, enquanto em Brasília as concessionárias Caloi estavam vendendo cada uma a Cr$ 99 mil. Pelos valores de mercado em Brasília, o governo poderia ter economizado mais de Cr$ 1 bilhão na compra".

Nos dias seguintes, o Correio continuou com as denúncias: "Saúde confessa superfatura de 22 mil bicicletas"; "TCU investiga superfatura de bicicletas"; "Escândalo das bicicletas derruba direção da FNS"; "Alceni culpa imprensa e sai de bicicleta". Outros jornais e revistas entraram na guerra praticando a chamada imprensa-tribunal. As matérias se tornavam um verdadeiro julgamento nacional. Criando uma enormidade de juízes acusadores.

O ponto culminante para a queda do ministro foi a reportagem que o jornal O Globo publicou no domingo, dia 8 de dezembro, divulgando uma foto em que Alceni passeava de bicicleta com o seu filho Guilherme, de doze anos, no parque da Cidade, em Brasília no dia anterior. A matéria vinha acompanhada das manchetes: "Devassa geral na Saúde começa hoje", "Ministro diz que não pede demissão", "Maluf quer a saída de três ministros". Tudo como se o inquérito já estivesse terminado.

O mesmo jornal trouxe no outro dia uma charge desmoralizante de Chico Caruso que entraria para história da mídia impressa. Alceni guiando uma bicicleta dupla e seu filho atrás com uma tarja preta nos olhos com se ele fosse um menor delinqüente.

No dia 23 de janeiro de 1992, o ministro entregou sua carta de demissão ao presidente Collor.

Em um domingo de agosto, primeiro Dia dos Pais após sua exoneração do cargo, Alceni chegou à escola da filha, Ana Sofia, então com 4 anos, e teve um choque: a menina carregava um cartaz com as mais pesadas acusações publicadas contra Alceni na imprensa. Era o "presente" de Sofia, preparado pelas próprias professoras do colégio.

Depois do "linchamento público" sofrido pelo ministro, em outubro daquele mesmo ano, o inquérito foi arquivado por falta de provas do envolvimento de Alceni Guerra nas compras das bicicletas. O ministro foi inocentado do crime de prevaricação e de corrupção.12

A descrição do caso feita acima não permite sequer ter ideia dos danos morais e psicológicos causados ao ex-ministro. Para isso, é necessário ouvir a própria vítima, em depoimento dado no final do ano de 2002:

"Como reconstruir minha imagem? Como me livrar do estigma de "ladrão de bicicleta"? Vivo diariamente esse círculo contínuo: as perguntas dão uma volta completa sem conseguir respostas, terminando sempre onde o primeiro questionamento começou."13

"Tive de me acostumar a ser chamado nos jornais de ministro "Mary Poppins", numa alusão jocosa à conhecida personagem do cinema imortalizada nas cenas em que aparece de sombrinha e bicicleta."14

"O tempo passa, mas o veneno da destruição de minha imagem insiste em continuar ativo, aniquilando-me como político, devastando-me como homem, torturando-me como pai, amargurando-me como marido e assombrando-me como cidadão. Será que é preciso dar fim à minha vida para chamar a atenção para o que aconteceu comigo? Por que a mídia, que como um todo ajudou a destruir minha vida, como um todo também não pode abreviar a purgação? Faz uma década que subi ao patíbulo: já não é tempo de exumar minha inocência? Ardi um ano inteiro na fogueira de uma megaexposição negativa. Será que só aos meus netos será facultada a dignidade de compulsar o verbete que me retratará como vítima de uma série inacreditável de atropelos? Estarei condenado a nunca mais enxergar o Alceni que existia antes? (...) O que tenho a compartilhar é (...) um desabafo, uma viagem ao fundo da dor que senti e ainda sinto, da vergonha que carrego, do desespero que me encara todas as manhãs."15

Em setembro de 2002, durante a campanha para deputado federal, Alceni encomendou uma pesquisa qualitativa de opinião com potenciais eleitores, para avaliar a receptividade do público a um anúncio que ele pretendia veicular. Nas palavras do ex-ministro:

"(...) O resultado foi terrível. Sinteticamente:

1. As pessoas me consideravam eficiente, alguém que passa credibilidade no olhar, mas não acreditavam que eu não devesse nada na questão das bicicletas.

2. A maioria não tomara conhecimento do fato de eu ter sido inocentado em todas as instâncias – nas auditorias internas do Ministério da Saúde, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas da União.

Em síntese, eu sou C-U-L-P-A-D-O!

Levei uns dois dias para digerir aqueles dados. Foi um choque saber que dez anos depois do "escândalo das bicicletas" eu não tinha conseguido me livrar do primeiro tombo. Até que veio o resultado das eleições e eu não me elegi. Foi o meu mais novo tombo.

Como médico, vou usar um exemplo clínico para tentar expressar minha situação: imagine que uma pessoa que há uma década teve diagnosticado um câncer grave e que lutou com todas as suas forças para vencer a doença – fez quimioterapia, radioterapia, utilizou todos os recursos à disposição. Ao final do tratamento, achava que estava curado. Pensando estar livre do câncer e pronto para recomeçar a vida, essa pessoa se candidata a um posto importante em uma empresa. Quando vai fazer o exame de saúde, essencial para sua admissão, descobre que o câncer continua lá, intacto. A constatação é recebida com surpresa e horror. No linguajar médico, o retorno da doença é chamado de metástase, etapa em que as células cancerígenas se proliferam pelo corpo. O escândalo das bicicletas significa exatamente isso na minha vida. Não consegui extirpar aquele tumor e ele continua se ramificando com uma força que não sei como minar. Só posso concluir que uma crise de imagem para um homem público é um tumor irreversível, pode virar uma mácula eterna. Ainda estou tentando compreender o mecanismo desse mal para achar novas armas."16


9. A realidade confirma a ficção – o caso da Escola Base

Maior ainda foi a desgraça de Icushiro Shimada e de sua mulher, Maria Aparecida Shimada, proprietários da Escola de Educação Infantil Base, situada no bairro da Aclimação, em São Paulo.

Em 28 de março de 1994, duas mães de alunos, Lúcia Eiko Tanoi e Cléa Parente, queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola e talvez levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados.

A queixa era contra os donos da escola, Icushiro Shimada, sua esposa Aparecida Shimada e o casal de sócios Paula e Maurício Alvarenga. Segundo elas essas pessoas organizavam orgias sexuais com a participação de seus filhos, filmando e fotografando tudo. Além destes, outro casal foi acusado pelas duas mães, Saulo e Mara Nunes, pais de outro aluno da Base.17

No dia 30, um laudo parcial do IML indicava que o aluno F.J., então com 5 anos, teria sofrido abuso por apresentar pequenas lesões no ânus. O delegado Edelcio Lemos interrogou duas crianças de 5 e 6 anos sem o auxílio de psicólogos. Baseado no laudo e nesses depoimentos, ele pediu e obteve a prisão preventiva de Saulo e Mara e indiciou Icushiro, Maria Aparecida, Paula e Maurício.18 Lemos ainda divulgou, sem confirmação, todas as informações à imprensa, que relatou todos os desdobramentos do caso. O delegado e a maior parte da mídia encamparam a denúncia como fato provado. O resultado parcial bastou. Mesmo sem provas e percebendo a sede dos jornalistas pelo episódio, o delegado passou a tratar os denunciados como criminosos e se tornou celebridade.

O laudo final do IML apresentou o seguinte resultado: inconclusivo. As lesões encontradas poderiam ser atribuídas tanto a coito anal quanto a problemas intestinais. As lesões no ânus de F.J. eram compatíveis com a excreção de fezes ressecadas e, mais tarde, se confirmaria, eram conseqüência de um sério problema intestinal do garoto.19

Lemos foi afastado do caso. Em seu lugar assumiram Jorge Carrasco e Gérson de Carvalho. A investigação foi reiniciada. No dia 22 de junho, Gérson inocentou todos os acusados. O inquérito do Caso Escola Base foi arquivado.

Os acusados nunca mais tiveram paz. Suas vidas foram destruídas e nenhuma compensação financeira foi paga até hoje. "Acaba com o sujeito. Você não levanta mais não, amigo. Que nem eu, eu tô com 60 anos, rapaz, e tô aqui engatinhando. Estou pendurado no banco e até hoje estou pagando. Não tenho conta, não tenho cheque, não tenho porra nenhuma!", desabafa Icushiro Shimada. A opinião pública, implacável e baseada em informações imprecisas de um caso envolvendo crianças, se posicionou contra os donos da Base. A seqüência foi a morte civil: todos tiveram que abandonar suas casas para não serem agredidos, a escola foi depedrada e saqueada, a casa de Maurício e Paula teve o muro pichado – "Maurício estuprador de criancinhas" – e seus rostos ficaram marcados como molestadores de crianças.20

Tiveram que fechar a escola, os funcionários perderam os empregos, sofreram grave estresse e foram acometidos de doenças como depressão e fobias – em 5 anos, Icushiro teve dois enfartes. Também receberam inúmeros telefonemas anônimos com ameaças e isolaram-se da comunidade.21 Nunca mais trabalharam como professores. Paula e Maurício se separaram. Com a escola destruída, os casais Shimada e Alvarenga perderam tudo que tinham e afundaram-se em dívidas. O sobrado era alugado e, para devolvê-lo aos donos, tiveram que reformá-lo por completo.22

Em 1999, Maurício estava trabalhando como porteiro num condomínio de casas, no interior de São Paulo, e não divulgava o local onde morava por medo de que a repercussão do caso o fizesse perder o emprego, o único que ele conseguiu arrumar depois de tudo. Paula, sua ex-mulher, continuava desempregada, morando em São Paulo, com as duas filhas. Na mesma época, Maria Aparecida Shimada continuava sob tratamento psiquiátrico e estava proibida pelo médico de dar entrevistas. Também estava impedida de trabalhar novamente com educação. "Após o caso, ela ficou muito agressiva", conta Shimada, cuja saúde também foi bastante abalada.23 O fato de Maria Aparecida permanecer sob tratamento durante tanto tempo sugere que ela foi acometida de um transtorno mental de caráter permanente.

Maria Aparecida Shimada morreu em São Paulo no dia 5 de abril de 2007, aos 56 anos.24


10. A presunção de inocência não funciona

A Constituição brasileira, em seu artigo 5º, inciso LVII, estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". É o princípio da presunção de inocência. Todo indivíduo deve ser considerado inocente até prova em contrário. Na prática, porém, esse princípio não prevalece. Para a sociedade brasileira, o que vale é o oposto: todo indivíduo será considerado culpado até prova em contrário. Isto significa uma completa inversão do princípio do ônus da prova, segundo o qual quem acusa tem o dever de provar sua acusação. Em vez de o acusador ter que provar sua denúncia, o acusado é que tem que provar sua inocência.

Na verdade, a situação é ainda pior. Como mostra o caso do ex-ministro Alceni Guerra, a sociedade considera que todo indivíduo será considerado culpado apesar de prova em contrário. Isto significa que os brasileiros consideram um indivíduo culpado pelo simples fato de ter sido acusado, independentemente da existência de provas, e ele continuará sendo culpado mesmo que prove sua inocência. O raciocínio é o seguinte: se o acusado fosse inocente, não teria sido denunciado; se foi denunciado, então é culpado. A sociedade simplesmente não acredita nas provas de inocência eventualmente apresentadas pelo infeliz. Entre nós, quando se trata de acusações contra alguém, mais do que nunca prevalece o ditado: Onde há fumaça, há fogo [com certeza absoluta].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Para o indivíduo acusado publicamente de um delito, tudo se passa como se a letra "C", de "Criminoso", fosse marcada com ferro em brasa em sua testa, de modo similar ao que ocorre no filme A Letra Escarlate (The Scarlet Letter), onde Hester Prynne (interpretada por Demi Moore) é condenada a usar no peito, pelo resto da vida, um emblema onde está bordada em vermelho (cor que significa pecado) a letra "A", de "adúltera", por ter traído seu marido.25


11. O dano é gravíssimo e irreparável

Muitas pessoas minimizam a gravidade do assassinato de reputação lembrando que a Constituição Federal garante indenização ao indivíduo que sofrer dano material, moral ou à sua imagem. O problema é que esses danos podem ser, e frequentemente são, gravíssimos e irreparáveis. No caso da Escola Base, embora os proprietários estejam ganhando vários processos junto à justiça, as indenizações obtidas não conseguirão compensar os danos psicológicos, morais e sociais que eles tiveram. Nenhuma indenização será capaz de reverter a perda da saúde, da dignidade, da imagem pessoal e profissional perante a sociedade. Apesar de terem sido declarados inocentes, eles não conseguirão recompor as relações sociais que tinham nem poderão voltar a exercer suas antigas profissões. As indenizações não têm o condão de fazer cessar o sofrimento de Icushiro e de seu antigo sócio e a dor de terem sido injustiçados.

O absurdo da situação salta aos olhos quando tomamos consciência de que a Constituição, no tocante à segurança das pessoas, prevê duas atividades bem definidas: policiamento preventivo e repressivo. O policiamento preventivo tem como função principal realizar a prevenção dos crimes, constituindo-se de medidas preventivas e de segurança destinadas a evitar o cometimento de delitos. Já o policiamento repressivo tem por finalidade investigar as infrações penais após sua ocorrência, identificando seus autores e levando-os à justiça para serem processados e julgados, com o objetivo de reprimir a criminalidade pela certeza da punição. Quando se trata, porém, do assassinato de uma reputação, do linchamento moral que leva uma pessoa à morte civil, a omissão é generalizada: não se fala em repressão, muito menos em prevenção. A Constituição se limita a garantir uma indenização ao "ofendido". Sim, pois é de um crime, e de um crime hediondo, que estamos falando: a transformação de um ser humano em morto-vivo. Isto fica claro quando se passa em revista o que aconteceu com os proprietários da Escola Base:

  • Foram obrigados a fechar seu negócio (a escola);

  • Perderam todos os bens e afundaram-se em dívidas;

  • Ficaram impedidos de exercer sua profissão (Maria Aparecida);

  • Foram expulsos de sua comunidade (foram obrigados a mudar de residência e esconder-se);

  • Tiveram desfeitos os laços de familia (Mauricio e Paula se separaram);

  • Perderam todos os amigos;

  • Foram injuriados e ameaçados de morte (todos eles);

  • Ficarão para sempre com o rótulo de criminosos pedófilos;

  • Perderam a saúde mental para sempre (Maria Aparecida provavelmente sofreu um transtorno mental permanente);

  • Sofreram danos à saúde física (os infartos de Icushiro).

O mais grave, porém, é terem sido assassinados moralmente sem o merecerem. Eles serão torturados para sempre pela dor da injustiça que sofreram e pela não reabilitação (como mostra o depoimento do ex-ministro Alceni Guerra).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Flavio Farah

professor universitário em São Paulo (SP), mestre em Administração de Empresas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARAH, Flavio. A morte civil dos brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2285, 3 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13613. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos