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A morte civil dos brasileiros

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03/10/2009 às 00:00
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12. Mecanismos perversos – a veiculação de acusações via imprensa

No Brasil, existem dois mecanismos perversos que se unem para permitir que a reputação de uma pessoa seja impunemente arruinada. O primeiro deles é o uso da imprensa para veicular acusações contra um indivíduo, independentemente da veracidade ou falsidade da denúncia.

Alguém poderia replicar que o Código Penal reprime esse tipo de conduta. De fato, o Código define os chamados "crimes contra a honra": calúnia, difamação e injúria, apenando-os, conforme o caso, com detenção de até três anos. Na prática, porém, torna-se muito difícil usar essa legislação para prevenir ou combater acusações ruinosas à reputação dos indivíduos. Vejamos por quê.

De acordo com o Código Penal, o crime de calúnia consiste em acusar alguém, falsamente, de um fato definido como crime. Vamos a um exemplo. Suponhamos que alguém divulgue a seguinte acusação: "Fulano participou do concurso público X apresentando um diploma falso de engenheiro". Usar documento falso é crime, portanto Fulano foi acusado de um ilícito penal. Para que exista a calúnia, porém, é preciso que a acusação seja falsa, ou seja, o autor da denúncia deve ter consciência da falsidade da acusação.

Na prática, é muito difícil condenar alguém por calúnia. Um dos problemas está na palavra "falsamente". Para haver calúnia, é preciso que o autor divulgue a denúncia sabendo que é falsa. Em outras palavras, é necessário que o autor tenha a intenção de prejudicar a vítima, ofendendo sua honra.26 É impossível, porém, penetrar na mente de uma pessoa para saber qual a sua intenção ao praticar determinado ato. Assim, para arruinar a reputação de alguém impunemente, livrando-se da acusação de calúnia, basta que o autor divulgue a falsa denúncia e depois diga ao delegado que se enganou. Para permanecer impune, basta que o autor alegue ter pensado que o fato era verdadeiro, contando uma história convincente.

Outro problema ocorre quando a mídia é usada para divulgar a acusação. Os órgãos de imprensa podem divulgar a denúncia sem citar o nome do autor. Em tais condições, ainda que este último tenha consciência de que a acusação é falsa, ele nada tem a temer. Será difícil para a vítima identificá-lo e processá-lo, pois ele estará protegido pelo princípio constitucional do sigilo da fonte, segundo o qual os jornalistas não podem ser obrigados a revelar o nome de seus informantes ou a fonte de suas informações.27 O jornalista tampouco será processado porque a Justiça considera que não há calúnia quando o profissional de imprensa se limita a relatar o que sabe, com o único intuito de cumprir o dever de informar, sem o objetivo de manchar a imagem de outrem.28 Isto significa que, mesmo que o jornalista saiba que a acusação é falsa mas decida divulgá-la no intuito de, digamos, vingar-se da vítima, ele não será acusado de calúnia desde que tenha o cuidado de reproduzir fielmente a denúncia, sem acrescentar nada.

Por fim, para completar este verdadeiro teatro do absurdo, suponhamos que o autor da denúncia seja o próprio profissional de imprensa. Nesse caso, ele pode safar-se do processo usando uma outra artimanha, esta realmente inacreditável: basta alegar que tudo não passou de uma brincadeira e que ele não teve a intenção de ofender a vítima.29 E se, ainda assim, o autor for processado, ainda lhe restará um último recurso que garantirá sua absolvição: retratar-se.30 Note-se, porém, que retratação significa apenas que o acusador se desdiz, que retira o que disse. O caluniador, ao retratar-se, não afirma que o fato não ocorreu.31 Assim, como não se trata de um atestado de boa conduta, a retratação não recoloca a vítima em seu estado anterior de inocência. Pelo contrário, a retratação pode reforçar as suspeitas sobre ela. Por não referir-se ao fato em si, a retratação pode induzir terceiros a pensarem que a vítima provavelmente é culpada e que o acusador se retratou apenas para não ser condenado por calúnia. Dessa forma, o caluniador criminoso se transforma em vítima e a vítima passa a ser o criminoso.


13. Mecanismos perversos – o inquérito policial

O segundo mecanismo a permitir que a reputação de uma pessoa seja impunemente arruinada é o inquérito policial. Como se sabe, inquérito policial é a investigação realizada pela polícia civil para esclarecer as circunstâncias de um crime e identificar o provável autor, a fim de que o promotor público possa processá-lo criminalmente. O Código de Processo Penal dispõe que a autoridade policial, ou seja, o delegado que conduz a investigação, deve manter o inquérito dentro do sigilo necessário para esclarecer o crime ou resguardar o interesse da sociedade. A esse respeito, o delegado de polícia tem ampla autonomia. A lei deixa a seu inteiro critério decidir sobre a manutenção do sigilo da investigação. A autoridade policial pode determinar, a qualquer instante, o sigilo total ou parcial do inquérito, bem como revogá-lo quando entender conveniente. Não obstante, entende-se que o inquérito policial é, por natureza, sigiloso pois, do contrário, a investigação seria grandemente prejudicada. O autor do delito tentaria criar todo tipo de obstáculo à ação investigatória, ocultando documentos, produtos ou instrumentos do crime, ameaçando ou agindo com violência física contra testemunhas, e, não menos provável, escondendo-se da polícia.32

No curso de um inquérito, a autoridade policial tem o dever moral e legal de resguardar as pessoas envolvidas, principalmente o indiciado, que é o indivíduo que o delegado considera o provável autor do delito. O nome, a imagem e os dados pessoais do indiciado devem ser mantidos em sigilo, primeiro, em razão do princípio da presunção de inocência, e segundo, para se evitar que a publicidade em torno de sua figura cause inevitavelmente, e de modo irreparável, a ruína de sua reputação.33 Essa, porém, não é a postura adotada em geral pelas autoridades. A regra tem sido divulgar amplamente pela imprensa os fatos apurados no inquérito policial, com os dados de todos os envolvidos. Chega-se inclusive a apontar alguém como "suspeito" mesmo quando as investigações mal se iniciaram. As autoridades policiais procuram manter o mais completo sigilo para não prejudicar as investigações mas o sigilo é esquecido quando se trata de resguardar a pessoa do indivíduo investigado. Dessa forma, quem é indiciado no curso de um inquérito policial fatalmente terá sua reputação arruinada apesar de não ter sido condenado, julgado ou sequer denunciado à Justiça pelo promotor.


14. Conclusão – a história de Sodoma e Gomorra

No Brasil, dezenas de pessoas são condenadas à morte civil pela sociedade, pela polícia e pela imprensa, e poucos cidadãos parecem se importar com o fato. Parece existir uma opinião predominante no sentido de que o assassinato de reputação e o linchamento moral são inevitáveis e constituem o preço a ser pago para se manter a liberdade de imprensa e o direito de a sociedade ser informada sobre os acontecimentos. Existem, porém, algumas perguntas a serem feitas:

  • Que prejuízo teria sofrido a sociedade se o inquérito da Escola Base tivesse sido mantido em sigilo?

  • O que a sociedade teria ganho se o ex-ministro Alceni Guerra e os proprietários da Escola Base não tivessem sido assassinados moralmente?

  • O que a sociedade ganha quando se promove o assassinato da reputação de alguém antes mesmo de concluído o inquérito policial ou até sem inquérito? A sociedade se torna melhor?

Todos conhecem a história bíblica de Sodoma e Gomorra, cidades que foram destruídas pela ira divina pelo fato de seus habitantes viverem em pecado. Todos sabem sobre os dois anjos que pernoitaram na casa de Ló e disseram a este que partisse com sua família sem demora, proibindo-os, porém, de olhar para trás. Também é de conhecimento geral que eles fugiram para as montanhas e que, durante a chuva de enxofre e fogo que Deus lançou sobre ambas as cidades, a esposa de Ló desobedeceu as instruções dos anjos e olhou para trás, pelo que morreu convertida em uma estátua de sal.

O que ninguém faz, porém, é perguntar-se qual a finalidade daquela surpreendente e estranha proibição: não olhar para trás. Resposta: para impedir que Ló ou alguém de sua família observasse a desgraça alheia e sentisse prazer nisso. Em tais condições, pergunta-se: Será que, no Brasil, o direito à informação não tem sido exigido apenas para que os órgãos de imprensa possam lucrar satisfazendo o prazer indecente que muitas pessoas experimentam ao ver notícias de crimes, desgraças, acidentes e sangue?


NOTAS

  1. GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 40.

  2. "Civil death". Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Civil_death .

  3. CUANO, Rodrigo Pereira. "História do direito penal brasileiro: As ordenações portuguesas". Disponível em: https://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=884

  4. Código Civil, artigos 1814 a 1816.

  5. Decreto-lei n° 3.038/41.

  6. A propósito, o autor do presente texto já presenciou, várias vezes, mendigos falando sozinhos, sem parar, palavras desconexas, o que faz pensar que a exclusão social afeta a saúde mental das pessoas.

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  7. trong>7 OLIVEIRA, Cláudia. "OAB promete ajuda a internos do HCT". Disponível em: https://www.oab-ba.com.br/noticias/imprensa/2005/12/oab-ajuda-internos-hct.asp .

  8. "Character assassination". Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Character_assassination

  9. Trading Places. EUA, 1983. Paramount Pictures.

  10. The Rockford Files. "If It Bleeds, It Leads". EUA, 1999. Universal Studios.

  11. The Rockford Files. "If It Bleeds, It Leads". Episode Recap. Disponível em: https://www.tv.com/The+Rockford+Files/If+It+Bleeds%2C+It+Leads/episode/80240/recap.html

  12. HERINGER, Sandro. "Quando a imprensa atropela a ética". Disponível em: https://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/nostalgia/trint1/nostalgia2.htm

  13. GUERRA, Alceni. "Dois espelhos, um destino". Em ROSA, Mario. A era do escândalo: lições, relatos e bastidores de quem viveu as grandes crises de imagem. São Paulo: Geração Editorial, 2003. p. 393.

  14. Idem. p. 394.

  15. Idem. p. 395.

  16. Idem. pp. 398-399.

  17. LIMA, Raymundo de. "Delação e escola: o caso da Escola Base". Disponível em: https://www.espacoacademico.com.br/054/54lima.htm

  18. DOMENICI, Thiago. "Onze anos do caso Escola Base". Disponível em: https://www.fazendomedia.com/novas/educacao300705.htm

  19. DOMENICI, Thiago. Idem.

  20. CABRAL, Otávio. "Escola Base". Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/aspas/ent051299a.htm

  21. DOMENICI, Thiago. Idem.

  22. O ESTADO DE SÃO PAULO. "Indenização simbólica". Disponível em: https://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/iq051299.htm

  23. TERRAZ, Regina. " ‘Ferida não cicatrizou’, diz dono da Escola Base". Em O Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/aspas/ent051299a.htm

  24. VALLE, Walter do. "Maria Aparecida Shimada". Disponível em: https://www.redebomdia.com.br/site_antigo/index.asp?jbd=1&id=269&mat=74456

  25. The Scarlet Letter. EUA, 1995. Walt Disney Studios.

  26. V., por exemplo, https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3511/Visao-geral-sobre-o-crime-de-calunia

  27. Constituição Federal, artigo 5º, inciso XIV.

  28. V., por exemplo, https://www.legal.adv.br/juris/20060926/lei-de-imprensa-animus-narrandi-e-animus-injuriandi/ e https://www.gontijo-familia.adv.br/2008/artigos_pdf/COAD_ADV/danomoralsuposto.pdf

  29. Juiz absolve Tutty Vasques da acusação de injúria feita por Quércia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2003-jul-28/justica_absolve_tutty_vasques_acusacao_injuria

  30. Código Penal, artigo 143.

  31. VIANNA, Sandro Silva. "Crimes contra a honra – Calúnia". Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1662/Crimes-contra-a-honra-Calunia

  32. SOUZA, Luciano Anderson de. "O sigilo do inquérito policial. Dogmática jurídica, inovações legislativas e medidas de política criminal". Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3446/o-sigilo-do-inquerito-policial>

  33. OLIVEIRA, Giovanni Costa Pina. "O sigilo do inquérito policial". Disponível em: https://www.forumseguranca.org.br/artigos/o-sigilo-do-inquerito-policial

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Sobre o autor
Flavio Farah

professor universitário em São Paulo (SP), mestre em Administração de Empresas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARAH, Flavio. A morte civil dos brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2285, 3 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13613. Acesso em: 22 dez. 2024.

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