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Proteção social, cidadania e transparência.

O caso de burla ao limite de remuneração do servidor público estadual

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5. Limites do Estado quanto ao teto de remuneração de servidores públicos e necessidade de respeito à cidadania

Ao falar em princípio republicano, o princípio da isonomia, segundo Ataliba (1985, p. 133 e seguintes) é uma decorrência imediata daquele, haja vista que se irradia sobre os demais princípios constitucionais, de modo a afetar a elaboração das leis e dos atos administrativos:

Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um estado, outorgassem a si mesmos uma constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem, seja de modo direto, seja indireto, a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao estado --- que criaram em rigorosa isonomia cidadã --- poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, ou atuando em detrimento de quem quer que seja. A res pública é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebem devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade, se não fosse marcada pela igualdade.

A igualdade é, assim, a primeira base de todos os princípios constitucionais e condiciona a própria função legislativa, que é a mais nobre, alta e ampla de quantas funções o povo, republicanamente, decidiu criar. A isonomia há de se expressar, portanto, em todas as manifestações de Estado, as quais, na sua maioria, se traduzem concretamente em atos de aplicação da lei, ou seu desdobramento. Não há ato ou forma de expressão estatal que possa escapar ou subtrair-se às exigências da igualdade.

Nos casos em que as competências dos órgãos do Estado --- e estes casos são excepcionais --- não se cinjam à aplicação da lei, ainda aí, a isonomia é princípio que impera e domina. Onde seja violado, mistificado, fraudado, traído, há inconstitucionalidade a ser corrigida de ofício ou mediante pronta correção judicial. Toda violação da isonomia é uma violação aos princípios básicos do próprio sistema, agressão a seus mais caros fundamentos e razão de nulidade das manifestações estatais. Ela é como que a pedra de toque do regime republicano. (grifos nossos)

Convém assentar – e esta foi a maior contribuição do positivismo jurídico - a sujeição do Legislador Ordinário aos limites que lhe são oferecidos pela Constituição.

Funcionam, desta forma, as balizas constitucionais como delimitadores da atividade legislativa, porquanto não poderá haver rasuras a este contorno, servindo não apenas como norte, mas limite para as decisões políticas do Executivo, Legislativo e, inclusive, Judiciário.

Assim, diferentemente da Ordem anterior à Emenda Constitucional 19/1998 (combinada com as Emendas Constitucionais 41/2003 e 47/2005), que excluía do limite de remuneração as vantagens pessoais e os "direitos adquiridos", agora, após o advento da EC 19/98, a limitação abrange toda e qualquer espécie remuneratória.

Tais considerações se fazem extremamente relevantes, haja vista que a fixação do subsídio (em parcela única) para Governadores e Secretários, objetivando eliminar os penduricalhos que camuflam e impedem a operação da transparência, é imprescindível para fazer operar a igualdade e a isonomia quanto ao limite de remuneração na esfera pública.

Ainda, esses postulados da cidadania (igualdade, isonomia, transparência etc.) fazem parte daqueles princípios sensíveis constitucionais que se inserem na obrigação de simetria do denominado poder constituinte de cada Estado-membro, no âmbito da respectiva Constituição Estadual, que deverá dispô-los dessa forma, como se fossem imagem e espelho.

Como já assentado pelo Pretório Excelso [13], "...as vantagens pessoais estão incluídas no teto remuneratório, previsto no art. 37, XI, da Constituição Federal, após a edição da Emenda Constitucional 41/2003".

E por falar em igualdade e isonomia, como pressupostos básicos da cidadania, Borges (1990) pontua que "...constitucionalmente a igualdade garante a igualdade. O paradoxo é apenas aparente." Aborda também, de forma bastante clara, a diferença entre igualdade formal e material:

A igualdade formal garante a igualdade material. Se todos são iguais na aplicação da lei, no sentido de que a lei indiscriminadamente a todos se aplica, mas se o seu conteúdo não abriga a isonomia, há violação da igualdade material. Se reversamente a lei isonômica a todos não se aplica, nem todos são iguais perante a lei: iguais serão apenas os beneficiários de sua aplicação, ficando de fora da isonomia os que não o forem. Nessa última hipótese, há violação da igualdade formal. Por isso se diz que a igualdade garante a igualdade. Essas normas somente podem ser interpretadas uma em conexão com a outra. Se essa conexidade for desconsiderada, obre-se oportunidade à aplicação da igualdade apenas formal (igualdade perante a lei), com prejuízo à igualdade material (igualdade na lei).

Nesse contexto, a luta pela garantia ao respeito do limite de remuneração do servidor público estadual, de forma igualitária, sem privilégios específicos e sem corporativismo ao "jeitinho brasileiro" de obtenção de vantagens indevidas, é um direito fundamental do cidadão e que muito bem registra o Profº Dallari (2002):

Em resumo, todo brasileiro tem constitucionalmente assegurado o direito de, por qualquer forma, participar da administração pública, direta ou indiretamente, mesmo quando ela se apresenta com uma roupagem de pessoa jurídica de direito privado.

Para que se tenha uma idéia da importância do tema, basta dizer que ela figura no texto da Declaração Geral dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das nações Unidas em 10.12.1948, com o seguinte enunciado: "Cada indivíduo tem o direito ao ingresso, sob condições iguais, no serviço de seu país".

Não tem cabimento, por assim dizer, a administração pública utilizar dois pesos e duas medidas quanto ao limite de pagamento de remuneração aos seus agentes e servidores públicos. Se o teto de pagamento é o subsídio de Governador (e alguns servidores têm parte de suas remunerações cortadas por força desta norma) e se os secretários, diretores e outros estão recebendo jetons por fora desta limitação constitucional, faz-se necessário a interrupção desses pagamentos e a devolução de todos os valores que foram pagos indevidamente e destinar esses recursos para o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos, pois é exatamente isso que se espera de um Governo Republicano e Democrático.

Por último, faz-se necessário lembrar que o inciso XVI do art. 37 da Constituição consagra, na forma abaixo, que o teto remuneratório, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, "agora é aplicável também às hipóteses de lícita acumulação remunerada de cargos, empregos ou funções".

Isso que dizer que não pode um servidor ou agente público perceber qualquer espécie remuneratória (inclusive jetons), que ultrapasse o teto constitucional, também em relação a outro vínculo que eventualmente venha a ter com a administração pública (mesmo que seja participação em reuniões ou em conselhos da administração direta ou indireta) [14]

XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

a) a de dois cargos de professor; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 34, de 2001)

XVII - a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)(g.n.)

Nessa toada, mais um motivo para caracterizar como inconstitucional os valores percebidos pelos agentes públicos (que ultrapassem o teto de remuneração), consoante apregoado neste trabalho.


4. Considerações Finais

Ser cidadão, como afirma Carvalho (2002), é se sentir participante de um Estado, de uma nação, que funciona como parâmetro para nos sentirmos brasileiros. A cidadania no nosso mundo ocidental se tornou um complexo de fatores cuja obtenção plena se tornou difícil de alcançar.

Para estabelecer limites à atuação do Estado e também para o exercício da cidadania, não podemos deixar que as "escolhas" fiquem tão-somente nas mãos dos políticos porque Paula (1995) esclarece que

a literatura revelou que as raízes da teoria da escolha pública se encontram nos trabalhos de Joseph Schumpeter, ‘Capitalismo, socialismo e democracia (1942) e Kenneth Arrow, Escolha social e valores individuais (1951).

Na visão de Schumpeter, a política e os políticos não estão necessariamente voltados para o bem comum da sociedade. Arrow, por sua vez, defende que há barreiras lógicas que impedem que as preferências individuais sejam ordenadas na direção do interesse coletivo. Ambos prepararam o terreno para Anthony Downs que no livro Uma teoria econômica da democracia (1957) concorda com o pressuposto utilitarista, argumentando que os políticos buscam realizar seus interesses privados...

Compartilhando e concordando com as ideias de John Patterson, onde o mesmo já sugeria no século XIX que a cidade (Estado) é um grande negócio e tem o povo como acionista, as ações e as políticas governamentais deveriam "abrir mão de sua benevolência em nome da eficiência", da justiça social, da equidade e da igualdade (PAULA, 2005).

Não pode, portanto, o Estado realizar interpretações contraditórias quanto ao limite de remuneração do servidor público no Estado da Bahia, ao efetivar estornos para uma parcela de servidores públicos que extrapolam o Subsídio de Governador e, em sentido contrário, permitir que uma pequena casta de agentes públicos (secretários de Estado, Diretores de autarquias, sociedades de economia mista controladas pelo Poder Público etc.) perceba remuneração (jetons) sem materializar o mesmo abatimento, pois essas medidas contraditórias afrontam os limites legais de atuação do Estado e fere mortalmente a cidadania.

E é isso que mostra Belluzzo (1999) ao falar sobre a pobreza, fato esse que podemos aplicar ao tema sob comento: "Tal descaso é cúmplice da violação sistemática dos códigos da cidadania moderna e dos princípios da vida republicana, que foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista dos mais fortes e mais ricos".

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Isto posto, com tantas desigualdades e injustiças ainda reinando em nosso País, o movimento contra a inércia deve ser um imperativo, de modo a evitar mais uma forma de exclusão dos cidadãos do processo natural de fiscalização dos gastos públicos no Estado (mormente nos escalões mais elevados), por meio de justa exigência de respeito ao que está expressamente previsto nos artigos 37, caput, inciso XI e parágrafos 11 e 12, e art. 39, §4º, todos da Carta Cidadã de 1988.

Carvalho (2000) recorda que "é conhecida a presença clientelística na política brasileira. Na época de Rui Barbosa, fim do Império e início da República, a distribuição de favores governamentais tinha o nome de patronato e filhotismo. O meio pelo qual se exercia o patronato era o empenho, ou seja, o pistolão, o pedido, a recomendação, a intermediação, a proteção, o apadrinhamento, a apresentação. A prática era tão condenada quanto arraigada".

Nessa mesma obra, Carvalho transcreve citação de Rui Barbosa (1920) para demonstrar como era, e ainda é tratada, a administração pública em nosso País: "[...] esse animal multimâmico, a que ora se chama nação, ora administração, ora fazenda, orçamento ou erário, e de cujos peitos se dependuram, aos milhares, as crias vorazes na mamadura, mamões e mamadores, para cuja gana insaciável não há desmame".

Talvez por esse motivo que a ideia de "patrimonialismo" custa a deixar de ser uma prática usual na administração pública brasileira.

A efetivação do exercício da cidadania plena é uma luta continuada, não apenas via o atendimento às regras e princípios constitucionais, mas para "assegurar uma relação saudável e eficiente entre a sociedade civil, os direitos humanos, o estado de direito, a democracia e a justiça social" (COHEN, 2003).

Nesta perspectiva, resta instigar e incitar os cidadãos brasileiros quanto à necessidade imperiosa de vigilância e de participação efetiva na vida e nas ações civis, políticas e sociais, na labuta diária pela conquista e permanência de direitos, de sorte que não volte a imperar o "patrimonialismo" nem tampouco seja instaurado o neo-patrimonialismo (confusão do público com o particular) como estamos a verificar no cenário da República Federativa do Brasil (..."Afinal, a principal instituição legislativa nacional, o Senado, se transformou numa fossa séptica entupida, cujo chorume escorre por seus corredores.Afinal, a principal instituição legislativa nacional, o Senado, se transformou numa fossa séptica entupida, cujo chorume escorre por seus corredores.afinal, a principal instituição legislativa nacional, o Senado, se transformou numa fossa séptica entupida, cujo chorume escorre por seus corredores.." [15]).

O que se percebe do exposto é que é fundamental a promoção do "enfrentamento do autoritarismo social e da cultura privatista, de apropriação do público pelo privado" (BEHRING e BOSCHETTI, 2008:181). Para isso é imprescindível a transparência nas atitudes e procedimentos dos gestores e das ações governamentais.

Por ser um aliado do cidadão, urge debater e lutar pela ampliação das políticas sociais e dos direitos, como mecanismo de disputa pela destinação dos fundos públicos, de modo que os mesmos sejam direcionados para o atendimento das necessidades básicas de milhares de pessoas e para melhoria das condições de trabalho e da vida de cada membro da sociedade.

Dessa forma, para que isso seja possível, não se pode olvidar da contínua e persistente fiscalização e acompanhamento da captação e aplicação dos recursos públicos, em todas as suas modalidades, de sorte que não ocorra nenhum desvio de finalidade, nem tampouco descumprimento de normas legais e constitucionais quando da sua redistribuição.

O cidadão brasileiro, quando presta atenção, assiste bestificado a tudo isso, visto que não têm representantes à altura de uma verdadeira República, capazes de coibir os abusos como os que vieram à tona neste modesto artigo. Além de pesarem no bolso do contribuinte, são privilégios ilegais que de modo geral têm que ser definitivamente extirpados, pois, como afirmado, também são imorais.

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Sobre o autor
Marcos Antonio da Silva Carneiro

auditor fiscal do Estado da Bahia, bacharel em Administração e em Direito, especialista em Direito Tributário e em Gestão Tributária, professor de Direito Tributário no MBI em Gestão Empresarial da FIB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Marcos Antonio Silva. Proteção social, cidadania e transparência.: O caso de burla ao limite de remuneração do servidor público estadual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2299, 17 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13690. Acesso em: 24 nov. 2024.

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