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Do positivismo jurídico na era da hermenêutica constitucional

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18/10/2009 às 00:00
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3 DIREITO E POLÍTICA

Conforme mencionado no primeiro capítulo deste estudo, Calsamiglia aponta que uma das diferenças importantes entre o modelo positivista e a proposta pós-positivista se refere às características da relação entre Direito e Política.

É importante destacar, portanto, que a eventual afirmação de que o modelo positivista negaria as relações entre Direito e Política, ou as influências desta última naquele são, no mínimo, desinformadas.

O cerne das divergências encontra-se, na realidade, nos limites da atividade política dos juízes.

Isto fica patente, quando se considera a afirmação de Guerra Filho de que "o centro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático contemporâneo, sofre um sensível deslocamento do Legislativo e Executivo em direção ao Judiciário" (2001, p. 161).

De acordo com o conceito de modelo positivista que vem sendo trabalhado neste estudo, a afirmação de Guerra Filho seria um tanto quanto questionável, porque ajudaria a promover, a um só tempo, a usurpação de funções do Legislativo, pelo Judiciário, e o próprio esvaziamento da esfera de poder daquele primeiro.

É de se destacar que a Constituição Federal vigente estabelece, já de início, entre os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, a independência e a harmonia entre os Poderes da União.

Ressalte-se, também, que é função do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário, desempenhar a tarefa de definir políticas públicas.

Isto se dá, inclusive, porque é no âmbito do Poder Legislativo que há verdadeiro espaço para o debate democrático e para a iniciativa popular, [17] levando-se em conta, aliás, que os seus membros são eleitos por sufrágio universal e direto, e que os seus mandatos têm tempo delimitado, o que, é válido mencionar, não ocorre com os integrantes do Poder Judiciário. [18]

Não se pretende, todavia, de qualquer forma (conforme já ressaltado, aliás), que a Política não tem influência no Direito, ou que com ele não tenha conexões, haja vista, inclusive, que "o problema de legislação é um problema político" (MELLO, 1985, p. 81).

Há estreita vinculação entre o Direito e a Política, já que "a validade das normas jurídicas decorre de imposição feita pelo poder político" (DIMOULIS, 2006, p. 105).

A questão é, todavia, que, mesmo sendo o ordenamento jurídico oriundo do cenário político legislativo, "o direito e a política estão separados em nível conceitual", isto é, "o conceito de direito não inclui em sua definição referências à política" (DIMOULIS, 2006, p. 106 e 107).

Aliás, neste ponto cabe mencionar que é possível detectar as influências da Moral e da Religião, por exemplo, na atividade política, mas, segundo Dimoulis, "mesmo quando a norma espelha convicções morais de seu criador, é imposta porque seu criador possuía a vontade e capacidade política para tanto e não porque sua convicção moral era a melhor" (2006, p. 106).

É necessário destacar, portanto, que "o papel do aplicador do direito consiste em implementar os comandos jurídicos e, indiretamente, a vontade política neles incorporada e não promover opções políticas pessoais" (DIMOULIS, 2006, p. 107).

A questão de como deve o julgador implementar as opções políticas resultantes do debate democrático, ocorrido no âmbito do Poder Legislativo, constitui objeto do próximo capítulo.


4 DIREITO E INTERPRETAÇÃO.

É provável que as maiores implicações das divergências existentes entre o modelo positivista e a proposta pós-positivista recaiam sobre as questões que envolvem Direito e interpretação, e sobre os papéis que a Hermenêutica pode desempenhar junto às Ciências Jurídicas.

O grande problema é se saber quais os limites que o julgador tem ao interpretar as normas que devem ser aplicadas aos casos concretos que são levados à sua apreciação judiciosa.

É elucidativo destacar que o debate é atual e pertinente, mormente quando se tem legado ao Supremo Tribunal Federal a função de decidir casos de extrema complexidade e que envolvem grandes controvérsias, como a constitucionalidade da utilização de células embrionárias em pesquisas científicas e da antecipação do parto em casos clínicos de fetos anencéfalos, por exemplo. [19]

Enquanto não há norma regulamentadora de tais condutas, é praticamente pacífico o entendimento de que deve, realmente, o Poder Judiciário decidir, de forma pontual, as demandas em que se solicita a sua intervenção.

O grande problema é saber o alcance da legitimidade do Supremo Tribunal Federal (e, no mais, dos julgadores em geral) de declarar a inconstitucionalidade de determinada norma, por ser ela, em tese, incompatível com um determinado princípio.

Vale ressaltar a observação de Repolês de que

A conseqüência mais grave da definição de Constituição como ordem concreta de valores é que a generalidade e imprecisão de suas formulações permite que as Cortes ampliem voluntaristicamente os princípios a ponto de criar critérios de interpretação que não encontram o menor ponto de apoio no texto constitucional (2003).

Ainda, neste sentido, interessantes as ponderações de Neves de que "dado o forte componente ideológico e a profunda imprecisão semântica (vagueza e ambigüidade) das normas programáticas, é muito difícil a caracterização da incompatibilidade de lei ordinária com norma programática" (1988, p. 103).

Há, sem sombra de dúvidas, entre os mais respeitáveis doutrinadores, uma preocupação praticamente uníssona com a necessidade de se garantir a margem mais ampla possível de objetividade, e, a respeito da aplicação de princípios, assevera Guerra Filho que "a discussão gira menos em torno de fatos do que de valores, o que requer um cuidado muito maior para se chegar a uma decisão fundamentada objetivamente" (2002, p. 19).

Ocorre, todavia (e aqui há um ponto de sensível discordância entre os estritamente positivistas e os pós-positivistas, em geral), que Guerra Filho afirma, também, que a interpretação e aplicação do Direito pode ocorrer contra legem (GUERRA FILHO, 2002, p. 39).

Esta visão, todavia, é extremamente controvertida, e Dimoulis aponta o risco de a interpretação jurídica ser vista e utilizada "como pretexto para impor aquilo que o intérprete considera como a melhor solução de um conflito social" (2006, p. 60).

Aliás, o autor aponta que

[...] na perspectiva juspositivista, é preciso rejeitar os métodos teleológicos que adulteram os conteúdos normativos fazendo referência a uma suposta e oculta vontade do legislador (teleologia subjetiva) ou a necessidade de modificação da norma em detrimento de seu conteúdo (teleologia objetiva). Nos dois casos, o intérprete faz um indevido recurso a elementos que não pertencem ao sistema jurídico (DIMOULIS, 2006, p. 244).

Estas considerações já fazem alguns esclarecimentos, a respeito dos posicionamentos positivistas (e de suas divergências com a proposta pós-positivista, que partem, como visto, do plano conceitual), mas cabe faze, ainda, alguns importantes apontamentos.

Diversamente do que se pode pensar, em uma análise simplista e apressada, o modelo positivista contemporâneo não nega a normatividade dos princípios.

Muito pelo contrário, aliás.

Já há quase 50 anos, a proposta de Bobbio ressaltava a plena normatividade dos princípios, inclusive daqueles não expressos que decorrem do sistema (1995, p. 158 e 159).

Destaque-se, contudo, que há estudos de boa qualidade, bastante mais contemporâneos, que analisam especificamente a questão da inquestionável normatividade dos princípios, e os seus reflexos no modelo positivista (DIMOULIS e LUNARDI, 2008).

O ponto, todavia, é que o modelo positivista, mesmo admitindo, plenamente, a normatividade dos princípios, não considera que a interpretação contra legem seja possível.

A este respeito, esclarece Bobbio que

O positivismo jurídico põe um limite intransponível à atividade interpretativa: a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual, isto é, nunca será contra a vontade que o legislador expressou na lei (1995b, p. 214)

A questão que se pode colocar, neste ponto, diz respeito às formas de interpretação que se deve utilizar, nos casos em que a interpretação textual não oferece respostas claras. [20]

É neste ponto que a Hermenêutica dá as suas mais notáveis e inegavelmente necessárias contribuições ao Direito.

Cabe destacar que esta era uma preocupação de Bobbio, já há quase 50 anos, e que o autor já sinalizava que a interpretação, nos casos complexos, deveria se dar levando em conta múltiplas (mesmo que, ainda, naquela época, limitadas) perspectivas, ou "meios", como, por exemplo, o que chama de "léxico", o "sistemático" e o "histórico" (1995b, p. 214 e 215).

É claro que não se pode ignorar, contudo, todos os avanços que foram feitos no campo da Hermenêutica e da Semiótica, principalmente, nas últimas cinco décadas.

Assim sendo, há de se levar em grande conta as contribuições de Hesse, em adição ao que chama de regras tradicionais de interpretação de normas constitucionais, por exemplo (1992, p. 35 a 48).

Destaque-se, todavia, que o próprio autor refere que há limites claros na interpretação constitucional, que não podem ser ultrapassados pelo julgador, no exercício de suas funções (HESSE, 1992, p. 48 e 49).

Merecem destaque, também, as propostas de Gomes, que aconselham a utilização de múltiplas perspectivas na concretização de normas (2008, p. 156 a 203).

A este respeito, são novamente pertinentes as observações de Dimoulis, que aponta que

O resultado da interpretação deve estar acompanhado de uma completa justificativa tanto em relação aos métodos escolhidos como em relação à proposta interpretativa sugerida. Em seguida, deve ser realizada uma discussão crítica entre pessoas que compartilham a finalidade da interpretação objetiva. O debate permitirá confirmar ou corrigir a proposta interpretativa com base em argumentos objetivos (2006, p. 245).

O fato é, todavia, que, de acordo com o modelo positivista, apesar das múltiplas perspectivas que deve levar em conta, o julgador nunca tem liberdade para decidir fora dos limites da "moldura" (KELSEN, 2000) que foi previamente estabelecida pelo legislador.

Isto, inclusive, em virtude do próprio conceito de Direito com que se trabalha.

Afinal, ao se admitir que pudesse o julgador decidir, ao seu próprio arbítrio, sem respeitar absolutamente os limites previamente traçados, deixaria o Direito de cumprir a sua função primordial, isto é, de garantir segurança social e institucional.

As considerações traçadas até este ponto não querem dizer, todavia, que o modelo positivista pretenda legitimar o Direito que se encontra positivado, especificamente, em um determinado tempo e espaço (o que se poderia, equivocadamente supor).

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[...] o positivismo jurídico é uma teoria do direito que não professa a neutralidade do estudioso no sentido de um imperativo de reserva política e de abstenção da crítica. A neutralidade é uma opção metodológica que permite um clara distinção entre as abordagens descritivas do sistema jurídico "como ele é" e as críticas elaboradas pelo estudioso em relação ao objeto descrito (DIMOULIS, 2006, p. 40).

Com isto, talvez seja possível compreender que o modelo positivista não compõe odes a um passado de trevas, que não pretende justificar absurdos e nem significar um óbice ao progresso.

É possível enxergar que há uma interessante controvérsia, no plano conceitual, entre os partidários dos modelos positivista e pós-positivista, e que talvez aquele primeiro não esteja tão "morto" ou "superado" como se poderia imaginar, e que, ao invés disto, merece ele (como, ademais, qualquer modelo teórico) ser continuamente reconstruído, por meio do processo dialético a que são submetidas todas as propostas sérias.


CONCLUSÃO

O estudo que se apresenta se propôs, de início, a analisar, a partir do plano conceitual, a controvérsia que existe entre os modelos positivista e pós-positivista, e o papel que poderia a Hermenêutica desempenhar dentro do positivismo jurídico.

A partir de tal ponto, procurou-se demonstrar que as diferenças de opinião entre positivistas e pós-positivistas têm raiz, principalmente, no ceticismo dos primeiros a respeito das possibilidades de se realizar um exercício de universalização de proposições dependente, exclusivamente, da razão objetiva.

Este fato tem consequências marcantes na forma como positivistas e pós-positivistas enxergam as relações entre Direito, Moral e Política e, também, sobre o papel da Hermenêutica na atividade dos juristas em geral e, principalmente, dos julgadores.

Procurou-se, neste estudo, esclarecer, portanto, as razões fundamentais das controvérsias entre positivistas e pós-positivistas; assim como demonstrar que o modelo positivista não se encontra superado, e que se mostra, sim, pertinente o debate acerca dos papéis que a Hermenêutica pode cumprir neste panorama.

Tal debate é de suma importância, mormente levando-se em conta o advento da era da normatividade dos princípios gerais, inclusive em nível constitucional.

Não se pretendeu, com este estudo, destarte, encerrar o debate ou dar respostas definitivas, senão reavivar o aludido debate, e incentivá-lo.

É bastante possível que, ao invés de superado e morto, esteja o modelo positivista mais vivo do que nunca, e esta possibilidade merece ser levada em conta.


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Sobre o autor
Thiago Caversan Antunes

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Thiago Caversan. Do positivismo jurídico na era da hermenêutica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2300, 18 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13706. Acesso em: 19 nov. 2024.

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