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A supremacia do interesse privado sobre o interesse público.

O direito administrativo como garantia do cidadão frente aos desmandos do Estado

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Não, leitor, o título não está errado! Não houve erro, nem do autor, nem do veículo em que este artigo circula. Trata-se, realmente, de texto que tem por escopo fazer contraponto à tantas vezes mencionada afirmação de que "o interesse público tem supremacia sobre o interesse privado". Tal afirmação é, como se sabe, infinitamente repetida em textos científicos e em lições de sala de aula, como um mantra que se repete exaustivamente em busca de iluminação.

Porém, embora exista nessa afirmação uma grande dose de verdade, o fato é que ela não é uma verdade absoluta ou, melhor explicando, não é a verdade toda. Isso porque, por vezes, o interesse público deverá ceder ante a um legítimo interesse individual a ser protegido. Afinal, será mesmo que o interesse público sempre deve preponderar sobre o particular? Esse, portanto, o tema proposto para este texto.

Passado o susto do título, comecemos por resgatar, em breve síntese, a história do Direito Administrativo e do Direito Constitucional modernos. Repetidas lições já foram dadas para nos ensinar que, embora seja certo que sempre houve regras que disciplinassem atos e negócios da Administração, também é certo que essas regras não compunham, antes da modernidade, um conjunto de normas particularmente destinadas a disciplinar as atividades daqueles que exerciam o poder dentro de uma sociedade.

Voltando os olhos ao passado, em direção à Grécia e Roma Antigas, os dois berços da civilização ocidental, vemos que, dada a realidade político-cultural de então, embora nem todas as pessoas dessas sociedades possuíssem o status de cidadão, aqueles que assim eram considerados percebiam a cidade – a civitas romana, a polis grega – como parte de seu domínio. Um domínio certamente compartilhado, um domínio coletivo, mas ainda assim um domínio. Em outras palavras, o cidadão grego e o romano viam os negócios da cidade (do Estado, diz-se hoje) como umbilicalmente ligados a si mesmos. Ousamos dizer que nunca a noção de cidadania foi tão profundamente sentida e vivida pelos cidadãos de um Estado. Assim nos ensinam os livros de história.

Com todas as ponderações que possam ser feitas a essa informação, ela carrega uma matriz essencialmente verdadeira, a partir da qual se pode concluir que essas sociedades não sentiram a necessidade de um ramo do direito que disciplinasse a relação entre a Administração Pública e o particular, pois essa distinção não era feita, naquela época, sob as cores que hoje se faz. Nessas sociedades, a disciplina da Administração Pública era feita ao vivo e a cores, em tempo real, pela efetiva participação do cidadão nos negócios públicos. Não se tinha inventado, ainda, uma classe social "apartada" dos demais – a classe dos administradores públicos, à qual se "delegavam" as decisões políticas.

Saindo da Antigüidade Clássica, grosso modo falando, a Europa passa a viver o que se denomina por Idade Média, marcada pelo sistema feudal de produção, no qual grandes proprietários de terras (os senhores feudais) dominavam, de modo mais ou menos independente, certa coletividade – essa estrutura, pois, compunham os feudos. Esse sistema vai, ao longo da história, se convolar nas monarquias absolutistas do fim do período medieval europeu.

São, portanto, as Monarquias Absolutistas o referencial histórico para tratarmos da gênese do Direito Administrativo e, com essa análise, entendermos sua razão de ser, sua essência. Exatamente pelo fato de que, nas Monarquias Absolutistas, o poder do Estado (no caso, o poder do Rei) era absoluto, não faz sentido em pensar num Direito Administrativo nesse período. Se o Estado-rei tudo pode, não há que se falar, pois, em regras que disciplinem sua atividade. Justamente por isso, portanto, esse período interessa à reflexão – por ser o momento nuclear, o marco zero, em que se verifica propriamente um conjunto vazio no que tange a regras delimitadoras da atividade da Administração. O Estado-rei Absoluto tem poderes absolutos sobre absolutamente tudo.

O movimento constitucionalista surge, então, nesse contexto, como luta da classe burguesa (poderosa economicamente, mas destituída de poder político) para limitar esse poder até então irrestrito do Estado-rei. Com idas e vindas na história, em ritmos diferentes para cada canto do mundo, o constitucionalismo tem um primeiro grande referencial na Magna Carta do Rei João Sem Terra, em 1215, na Inglaterra, que é o resultado da luta da burguesia de então para limitar os poderes políticos do monarca. Daí nascem, pois, a ação de habeas corpus (limite ao poder do rei de prender e punir o súdito) e o princípio do no taxation without representation (limite ao poder do rei de tributar).

Desse momento, pois, saltamos para a França e sua famosa Revolução de 1789. Trata-se da mais falada e comentada das revoluções burguesas. Nesse momento, a busca pela superação do sistema das Monarquias Absolutistas ganha contornos mais definidos, com filósofos repudiando acentuadamente a idéia de um Estado-rei com poderes ilimitados (e desmedidos) perante seus súditos. Nesse contexto, passa a ser implementado, na França pós-revolução, um conjunto de normas que visam, justamente, reger a atividade da Administração. Curiosamente, o Direito Administrativo é considerado pela doutrina especializada, por aproximação histórica, como nascido em data exata, sendo ela a data da publicação da norma francesa conhecida como "lei 28 pluvioso do ano VIII" – lembrando que "pluvioso" seria um dos meses do novo calendário francês, instituído com base no ano da Revolução; lembrando, ademais, que o "VIII" refere-se, justamente, ao oitavo ano da revolução.

Pois bem, esse contexto de idéias é necessário para se entender que a principal função do Direito Administrativo, desde seu primeiro momento, não é outra senão limitar, frear o poder do Estado, que antes era ilimitado porque absoluto nas mãos do monarca. Em sua perspectiva essencial, portanto, o Direito Administrativo (ao lado do Direito Constitucional) é um conjunto de regras garantidoras dos direitos do particular perante o poder constituído, que passa a ser regrado, limitado [01]. Essas idéias deveriam ser sempre a lição número um de qualquer texto ou curso de Direito Administrativo, mostrando que essa ciência surge como resultado de uma demanda histórica muito bem definida pela necessidade de se conter o abuso, os desmandos daqueles que se encontram no exercício do Poder Político – sejam os monarcas absolutistas de antigamente, sejam os atuais monarcas constitucionalistas do direito comparado, sejam os nossos presidentes, ministros e parlamentares de um Estado republicano.

Aqui, portanto, estamos prontos para voltar para o título. Lá foi registrado que o interesse privado exerce supremacia sobre o interesse público. É claro que o título foi pensado para ser provocativo, cabendo fazer as devidas ponderações. Comecemos notando que a afirmação de que "o interesse público tem supremacia sobre o interesse privado" não está, evidentemente, errada. É claro que ela está correta, desde que corretamente compreendida.

Para nossa análise, tomemos dois exemplos. Suponhamos que uma determinada comunidade do nordeste brasileiro, afligida pela seca, possa ter seu problema de abastecimento de água resolvido por meio de um manancial subterrâneo sob determinadas terras particulares. O direito de propriedade, pensado nos moldes clássicos da teoria civilista-liberal, impediria que se afastasse o direito de propriedade desse particular em prol de se criar um açude onde pudesse se abastecer toda uma população local. Porém, hoje está nítida a evolução do direito civil, que abandonou sua verve liberal e adotou uma nova estrutura social, preocupada não mais exclusivamente com o patrimônio, mas também, e principalmente, com a pessoa humana e com os valores da ética e solidariedade. Nesse contexto, então, o interesse de tal proprietário em manter íntegro seu domínio, à custa do sacrifício de toda uma coletividade é, pois, um interesse que pode ser dito "um interesse privado egoístico".

Por outro lado, podemos tecer uma segunda linha de suposição. Imaginemos, pois, que uma coletividade de produtores de arroz deseje que um certo particular não produza, também ele, o mesmo produto, ou seja, arroz. Digamos que esses produtores já estão estabelecidos há décadas no mesmo local e que esse particular represente um novo proprietário. Os produtores antigos tentam demovê-lo da idéia de plantar, também ele, arroz, pois é do interesse da coletividade que o mercado consumidor não se sature – pois os preços irão, certamente, cair... Bem, nesse caso, ao menos até onde nossa vista alcança, parece não haver divergências em dizer que o particular interesse de tal proprietário em produzir arroz não se configura como interesse privado egoístico, mas, sim, um "legítimo interesse privado".

Talvez essa situação hipotética não tenha sido bastante. Por isso, imaginemos, ainda na mesma linha do "legítimo interesse privado", outra hipótese, mais próxima do dia-a-dia. Imaginemos, pois, que uma sociedade empresária revenda combustível adulterado. Pelo poder de polícia da Administração, é ela dotada de prerrogativas para, em nome do interesse público, fiscalizar e, no caso, interditar a bomba de combustível para impedir que o produto fora das especificações seja levado ao mercado consumidor. Contudo, a sociedade empresária tem o legítimo interesse de que esses atos administrativos de constrição sejam praticados apenas e somente por agente público competente. Vale dizer, um fiscal da vigilância sanitária que constate a venda de combustível adulterado não poderá interditar a respectiva bomba, cabendo-lhe, apenas, o dever de informar as autoridades competentes a respeito do ilícito para que elas tomem as medidas constritivas. Em suma, mesmo diante de flagrante interesse público em evitar a venda de combustível adulterado para a coletividade, o particular tem legítimo interesse em que o ato de constrição aos seus direitos sejam praticados por autoridade competente – requisito do ato administrativo que não poderá ser afastado nem mesmo em nome do interesse público, pois representa verdadeira garantia para o particular-administrado. Novamente, prevalecerá, no caso, o interesse privado.

Um outro simples e rápido exemplo pode ainda ser lembrado. Um réu condenado em processo penal regular terá contra si exarado mandado de prisão, que será cumprido mediante atuação da polícia judiciária que, como é evidente, não exerce, em sua atividade, mister judicante, mas, sim, função administrativa. O mandado de prisão permitirá à Administração praticar uma série de atos, como, por exemplo, invadir a residência do indivíduo, caso necessário para efetuar sua prisão. Contudo, pela conhecida regra constitucional, não poderá a autoridade policial, a pretexto de proteger o interesse público de prender o réu condenado, invadir a residência durante a noite. Para esse indivíduo há legítimo interesse privado de que sua residência não seja invadida no período noturno, ainda que para cumprir mandado de prisão para puni-lo por crime pelo qual fora definitivamente condenado, em nome, repita-se, do interesse público.

Assim, colocamos a questão nos seus devidos termos. Se estivermos diante de um interesse privado egoístico, o interesse público prevalecerá, de modo que a Administração estará legitimada a usar de suas prerrogativas para afastar o interesse particular em prol da tutela à coletividade. Já, por outro lado, se estivermos diante de um interesse privado legítimo, a esfera de direitos do particular passa a ser indevassável pela Administração, mesmo sob o argumento de se proteger o interesse público.

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Evidentemente, a questão não é simples e demanda uma discussão de maior densidade filosófica. Pensemos, por exemplo, que a própria noção de "legitimidade" (do interesse particular) é uma idéia que não comporta definição rígida. Em primeira análise, numa interpretação semântica do vocábulo, "legítimo" é o que tem amparo em lei. Mas isso não basta, pois há leis que elas próprias não são constitucionalmente válidas, fato que desloca a análise do que venha a ser um interesse "legítimo" para o contexto do Ordenamento Jurídico como um todo, sustentado pela Constituição Federal. Porém, ainda assim a idéia de "legitimidade" permanece volúvel e de difícil determinação, principalmente quando pensamos em normas na forma de princípios de alto grau de abstração. Portanto, antes de ser uma fórmula simples, a "legitimidade" do interesse é um conceito aberto que acaba sofrendo mutações ao longo do caminhar do grupo social.

Por outro lado, continuando a análise dos termos propostos, vemos que a conclusão no sentido de que existe uma supremacia do interesse particular legítimo perante o interesse público depende, ela mesma, da noção de "interesse público" com que se trabalha. Isso porque, num certo sentido, poderíamos dizer que é do interesse público que certos interesses particulares (legítimos) sejam indevassáveis [02]. Por fim, sabemos que estamos propondo, em nossos exemplos, situações de antinomias reais, onde princípios divergentes colidem, devendo ser solucionado o caso concreto a partir do método da ponderação de valores.

Porém, embora enxergando a necessidade de um desenvolvimento filosófico mais profundo das noções aqui lembradas, entendemos que a idéia central do texto foi atingida. E qual seria ela? Trazer à luz uma informação importante ao debate sobre a razão de ser do Direito Administrativo – qual seja, sua função primordial de delimitar o poder da Administração, delimitar suas prerrogativas, protegendo o particular contra os abusos e desmandos daqueles que exercem o poder. Não que seja novidade, mas essa nos parece ser uma perspectiva indevidamente deixada em segundo plano nas lições contemporâneas de Direito Administrativo. Dentro dessa proposta, quisemos focar a idéia de que nem sempre prevalece o interesse público, sendo a proteção de interesses particulares legítimos a própria razão de ser do Direito Administrativo.

Foram usados, acima, exemplos simples para visualizarmos a distinção entre o interesse privado egoístico e o interesse privado legítimo. Apenas essa é a função dos exemplos. O leitor deve ter em conta, portanto, esse caráter meramente ilustrativo de uma distinção fundamental – qual seja, a existência de duas ordens de interesses privados: uma, egoística; outra, legítima. A ordem dos interesses privados legítimos, portanto, compõe um núcleo de direitos que a Administração não poderá jamais penetrar, nem mesmo em nome do interesse público, fato que decorre da própria razão de ser.

O que nos importa aqui – e isso foi realizado – é resgatar, a despeito da necessidade de se aprofundar na complexidade lingüístico-conceitual das idéias referidas, a noção de que há certos interesses particulares que não sucumbem ao interesse público e, nesse sentido, possuem supremacia. Não se trata de afirmar que certos direitos são absolutos, mas afirmar que certos interesses particulares (legítimos) serão protegidos mesmo ante um suposto interesse público. O que queremos lembrar, com isso, é a própria gênese do Direito Administrativo e sua razão de ser.

Parece que tem sido esquecida a lição de que o Direito Administrativo é, em essência, uma proteção ao particular, uma proteção ao cidadão, por meio de regras e limites ao poder do Estado. Nesse sentido, sempre haverá situações em que o interesse particular não poderá ser subordinado ao interesse público, justamente por se configurar como interesse privado legítimo, escudado pelo Ordenamento Jurídico, indevassável à Administração. Essa a lição que a história nos ensina e que devemos lembrar como ferramenta hermenêutica ao trabalharmos com o Direito Administrativo.


Notas

  1. Caberia, aqui, um retorno às idéias de Montesquieu a respeito da separação das funções do poder público, exatamente para que o poder controle o poder – retorno a que se remete o leitor, mas que se deixa de fazer por não atender à extensão proposta para este trabalho.
  2. Aqui deveria ser resgatada a distinção de interesse público primário e secundário, tema para o qual se remte o leito, mas que se deixa de fazer, novamente, por ser um aprofundamento que foge ao escopo proposto para este texto.
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Sobre o autor
Marcus Vinícius Silva Martins

Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília Professor de Direito Administrativo no Centro Universitário Unieuro. Membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) do Centro Universitário Unieuro. Advogado em Brasília - DF. Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Marcus Vinícius Silva. A supremacia do interesse privado sobre o interesse público.: O direito administrativo como garantia do cidadão frente aos desmandos do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2303, 21 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13716. Acesso em: 23 dez. 2024.

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