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A crise do Poder Judiciário.

Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos

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23/10/2009 às 00:00
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III: A CRISE DO ESTADO-PROVIDÊNCIA E SEUS REFLEXOS NO PODER JUDICIÁRIO: AINDA OS PAÍSES CENTRAIS...

No capítulo inicial o objetivo era apresentar o tratamento dispensado ao Poder Judiciário em dois modelos, vivenciados pelos países centrais – o Liberal e o Social.

Mas, como dito anteriormente, tais nações já estão vivenciando um terceiro estágio na história estatal [40] conhecido por crise do Estado-Providência.

Em razão da crise, destarte, o Judiciário não fica imune, sendo abalado, pois, pelas dificuldades sofridas pelo modelo estatal, embora seja possível vislumbrar, na esteira de alguns teóricos, problemas específicos.

Assim, a ideia nesse capítulo, é trabalhar com a crise, estatal e jurisdicional, em face dos países centrais, o que se considera de fundamental relevo para a verificação, na terceira parte do estudo, da realidade da crise em países semi-periféricos.

3.1. Breves notas sobre a crise

O vocábulo "crise", nos últimos tempos, tem sido utilizado corriqueiramente por inúmeras áreas da ciência no afã de explicar o momento gris que se vivencia.

Mas, é preciso, ainda que muito sucintamente, tentar esclarecer o que, afinal, significa tal expressão, ou, em outras palavras, qual o sentido de "crise" nas ciências sociais.

Para tanto, recorre-se a André-Jean Arnaud [41], sociólogo do direito, que, de pronto, sustenta que a crise representa brusca mudança na evolução de um processo sentida como uma experiência geralmente não prevista e, por isso, perigosa e incerta.

Partindo da breve noção trazida pelo teórico francês, entende-se, pois, que a crise nem sempre terá um aspecto negativo, embora seja, de fato, algo que provoque medo em razão da sensação de incerteza que traz.

Com efeito, é nesse sentido que se manifesta Edgar Morin [42], ao afirmar que a crise pode representar fratura numa continuidade, perturbação num sistema, mas também aumento de possibilidades e, portanto, de incertezas.

Analisando a crise sob um aspecto histórico, verifica-se que o termo teve sua primeira aparição na história da civilização ocidental dentro do domínio dramático. Jean-André Arnaud [43] menciona que para Aristóteles a ideia de crise vem representada por um processo no qual o desenvolvimento de situações conflitantes chega, enfim, a uma catástrofe, a partir da qual pode ocorrer a catarse, a liberação purificadora.

Vista assim, portanto, a crise seria necessária para se atingir um ponto de libertação.

Tal entendimento, de certo modo, aproxima-se do campo da psicologia, que vê a crise como a passagem inevitável dentro do desenvolvimento da identidade dos indivíduos [44].

No que tange à sociologia do direito, Arnaud [45] diz que o conceito de crise desempenha um papel interno numa teoria sociológica do direito.

Quando se considera o direito como um sistema, ou um conjunto de sistemas, de regras e de instituições sociais encarregadas de aplicá-las, pode ocorrer de tempos em tempos que este sistema não consiga mais satisfazer as necessidades de uma sociedade que evolui mais rápido que as regras em si. Ou, pode acontecer que, para não ser ultrapassada tão rapidamente por esta evolução, produza-se continuamente novas regras, que acabam resultado numa sobrecarga, numa inflação normativa, que às vezes pode chegar a autorizar o desconhecimento por parte dos Tribunais.

Seja em um caso ou em outro [46], o fato é que a crise pode ser constatada sempre como um momento que antecede o novo. Toda época crítica é época de transição e, é nesse espírito que se pretende analisar as dificuldades, ou o momento de ruptura vivenciado pelo Estado-Providência dos países centrais e pelo Judiciário não somente daquelas nações, mas também dos países semi-periféricos ( o que será feito no capítulo seguinte).

3.2. A crise do Estado-Providência

Embora pareça que o Estado-Providência tenha nascido para resolver todas as desigualdades sociais, o que se pode constatar é que tal assertiva só ocorre em âmbito formal, porquanto a máquina estatal se mostrou insuficiente para atender a todas as demandas.

Com efeito, em Boaventura de Sousa Santos e outros [47] é possível encontrar algumas causas para dita crise.

Citam os autores que a criação de enormes burocracias que acumularam um peso político próprio, gerando elevados índices de desperdício e insuficiência, assim como a clientelização e normalização dos cidadãos cujas opões de vida ficam sujeitas ao controle e supervisão de agências burocráticas despersonalizadas são fatores que levaram à crise.

Além disso, também mencionam os teóricos outras causas para se considerar deficitário o Estado do Bem-Estar social, tais como as alterações nos sistemas produtivos e na regulação do trabalho tornadas possíveis pelas sucessivas revoluções tecnológicas, a difusão do modelo neoliberal e do seu credo desregulamentador a partir da década de 80, a crescente proeminência das agências financeiras internacionais (Banco Mundial e FMI) e a globalização da economia.

Não obstante a necessidade de mencionar todas as prováveis causas para a crise, uma das que deve ser reprisada é a desregulamentação da economia, que tem sido alvo de inúmeros debates.

Com efeito, desregulamentação da economia, na esteira de Boaventura de Sousa Santos e outros [48], significa o Estado se desvincular da tarefa de regulador da economia, o que representa, assim, uma alteração grave no paradigma social até aqui verificado.

Paradoxalmente, depois de décadas de regulação, a desregulamentação só pode ser levada a cabo mediante uma produção legislativa específica e, por vezes, bastante elaborada, o que, obviamente, acaba gerando uma sobrecarga legislativa adicional [49].

Trabalhando a questão da crise sob outros enfoques, José Luis Bolzan de Morais, na obra "As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos" [50], vislumbra, didaticamente, cinco grandes crises sofridas pelo Estado Contemporâneo: conceitual, estrutural, constitucional, funcional e política.

A crise conceitual atinge a própria noção de "poder soberano" e se refere às transformações ocorridas por este poder.

A crise estrutural, de outra banda, é composta por problemas fiscais, ideológicos e filosóficos.

No que tange à crise fiscal, o problema parece claro: garantir a todo cidadão a permanência de seu patrimônio (consistente no conjunto de seus direitos) gera custos elevados ao Estado.

No dizer de Pierre Rosanvallon [51], o Estado-Providência está doente e o diagnóstico é simples: as despesas com a saúde pública e com o setor social crescem muito mais depressa que as receitas. Decorre daí, diz o autor, um lancinante problema de financiamento, que se apresenta nos últimos vinte anos, em todos os países industrializados. A única solução para tapar os "buracos" seria aumentar os descontos obrigatórios.

Também Bolzan de Morais [52] concorda com o posicionamento do autor acima, ao afirmar que os problemas de caixa do Welfare State já se faziam presentes desde o final da década de 1960, quando os primeiros sinais de que receitas e despesas estavam em descompasso foram percebidos. Posteriormente, em 1970, o desequilibro econômico é aprofundado porque o aumento da atividade e das demandas em face do Estado, assim como a crise econômica mundial, gerada pela crise do petróleo, implicam um acréscimo ainda maior de despesas públicas, o que redundará no crescimento do déficit público na medida em que o jogo de tensões sociais sugere uma menor incidência tributária ou estratégias de fuga – de que é exemplo a sonegação fiscal.

Outrossim, algumas das situações transitórias que geraram a criação do Estado Social a fim de serem solucionadas – de que é exemplo o desemprego - tornaram-se permanentes, o que obrigou as políticas estatais, consequentemente, a oferecem prestações públicas contínuas e duradouras, gerando uma profunda defasagem na poupança pública [53].

Mas, também estruturalmente o Estado sofre uma crise ideológica que se encontra nas formas de organização e gestão próprias ao Estado do Bem-Estar Social.

Como disserta José Luis Bolzan de Morais [54], a crise ideológica é patrocinada pelo embate entre a democratização do acesso ao espaço público da política, oportunizando que, pela participação alargada, tenha-se um aumento significativo das demandas, e a burocratização das fórmulas para responder a tais pretensões a partir da constituição de um corpo técnico-burocrático a quem incumbe a tarefa de elaborar estratégias de atendimento de demandas.

Trata-se, na verdade, de uma das crises já identificadas por Boaventura de Sousa Santos e outros, referida acima.

A última faceta da crise estrutural sofrida pelo Estado é a crise filosófica, que se assenta dos próprios fundamentos do modelo de Estado Social, exigindo que existam agentes dotados de uma compreensão coletiva, compartilhada e compromissada de ser-estar no mundo, o que infortudamente não se verifica.

Com efeito, no dizer de Bolzan de Morais, o que na prática ocorre é a transformação do indivíduo liberal em cliente da administração, apropriando privadamente a poupança pública ou adotando estratégias clientelistas de distribuição das respostas estatais e dos serviços públicos [55].

Ainda outras três grandes crises são apontadas pelo autor aqui em análise: a crise constitucional - que se preocupa com a efetividade das Constituições e, consequentemente, com a concretização dos direitos fundamentais; a crise funcional – que se refere à predominância de um poder estatal sobre o outro, em cada paradigma estatal; e a crise política – atinente ao abalo sofrido pela democracia representativa em face da complexidade estatal.

Com efeito, enquanto as crises constitucional e funcional são estritamente vinculadas à problemática do Judiciário – razão pela qual serão estudas adiante, em apartado – a crise política, que aqui merecerá algumas linhas, é também identificada como crise de representação, se referindo, em síntese, ao abalo sofrido pela democracia representativa a partir da complexidade atual.

Assevera Bolzan de Morais [56] que o modelo da democracia representativa como alternativa possível em uma sociedade que se complexificou tornou-se um instrumento incapaz de responder adequadamente a todos os anseios, pretensões e intenções, o que conduz a tentativas de esvaziá-la como lugar adequado ao jogo da política, a tentativas de fantochizá-la, tornando-a apenas um estereótipo formal pela ausência de alternativas reais de escolha.

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Em relação a esta tentativa de "fantochizar" a democracia, refere o teórico que é possível constatar o desaparecimento de alternativas reais de escolha porque se estabelece um estereótipo de "desdiferenciação" de propostas, de "desidentificação" de candidaturas e assim por diante, ou seja, todos os programas são extremamente parecidos, tornando-se praticamente impossível identificar a diferença [57].

O autor identifica algumas causas da provável crise: número crescente daqueles que conquistaram a inserção no jogo político, o que inviabiliza a tomada de decisões por todos os interessados; dificuldades técnicas trazidas pelo tipo e conteúdo dos temas postos em discussão; e volume quantitativo de questões postas à solução, o que implica uma atividade full time, excludente do cidadão [58].

Sob outro enfoque, Celso Fernandes Campilongo [59] aponta cinco causas da crise de representação. A primeira consiste na perda da centralidade do conflito entre trabalho e capital, determinada pelo progressivo igualamento provocado pelas políticas redistributivas e pela deslocação de poderes do processo produtivo para sedes e bases diversas da tradicional distinção entre propriedade capitalista e trabalho assalariado. E, segundo lugar, de acordo com Campilongo a crise da democracia representativa é causada pela excessiva fragmentação dos interesses sociais porque o que realmente se verifica é que o trabalho das instituições representativas, diante de uma conjuntura crescentemente diferenciada e conflitiva, tende a desnudar-se como verdadeiro labor de representação de interesses particulares.

O terceiro fator gerador da crise representativa, para Celso Campilongo, é relacionado aos fenômenos das agregações transitórias. Diz o autor que em um protesto contra o desmatamento, por exemplo, é comum que transitoriamente estejam unidos grupos políticos ou econômicos opostos, o que gera duas consequências: a) essa aparente homogeneidade das facções antagônicas pode provocar uma perda de identidade associada a um declínio da representativa dos próprios grupos; b) pode abrir espaços para associações capazes de suprir as deficiências das instituições representativas tradicionais.

A perda de centralidade do circuito Governo-Parlamento como itinerário das decisões políticas é considerada por Campilongo como a quarta causa da crise aqui analisada. Segundo o jurista, a "nova conflituosidade", inerente a um Estado regulador do ciclo econômico e uma sociedade fragmentada, é portadora de interesses agregáveis em estruturas políticas mais ágeis e menos burocratizadas, o que faz nascer sistemas paralelos de governo e centros alternativos de decisão, muitas vezes informais e extra-estatais, com um potencial de agregação e representação de interesses maior do que o das instituições tradicionais.

E a última crise apontada por Celso Campilongo refere-se à redução da política econômica à política conjuntural e de manobra monetária, ou seja, a intervenção regulatória do Estado no ciclo econômico deixa de ter caráter totalizante, expressivo de definições estratégicas de conjunto, para reduzir-se cada vez mais à política conjuntural, gestão da despesa pública e manobra monetária.

Não obstante sejam os fatores apontados por Campilongo bem diferenciados em relação à Bolzan de Morais, inclusive apresentando uma tendência pessimista em relação ao modelo do Estado do Bem-Estar Social, ambos concordam com a ineficácia da democracia representativa e apontam suas soluções.

Analisada, assim, a última crise pertinente ao Estado-Providência, resta verificar as crises constitucional e funcional, mais detidamente vinculadas ao Poder Judiciário.

3.3. Os reflexos da crise estatal no Judiciário dos países centrais

3.3.1. Crise constitucional - ou institucional

A ideia de Constituição no Estado Social e, com particular relevo, no Estado Democrático de Direito - que representa um aprimoramento daquela ideia, onde se insere a noção de solidariedade – exerce papel fundamental porquanto é o instrumento que privilegia a concretização de direitos e garantias fundamentais.

Mas, a efetividade das Constituições ainda é problema extremamente discutido posto que sua real substancialidade está longe de ocorrer. O constitucionalismo, no dizer de José Luis Bolzan de Morais [60], apresenta-se ressentido, seja, pela fragilização/fragmentação daquilo que ele mesmo constitui e do qual se sustenta, isto é, o Estado, seja pela tentativa de apontá-lo como um instrumento impeditivo do desenvolvimento econômico, não obstante tenha sido resultado do projeto jurídico-político-liberal-burguês.

De acordo com Bolzan de Morais [61], a grande dificuldade no aprimoramento do projeto constitucional está no prevalecimento da lógica mercantil e na contaminação de todas as esferas da vida social pelos imperativos categóricos do sistema econômico.

Com efeito, obviamente que não é esse o objetivo do Estado Social, mais especialmente do Estado Democrático de Direito. Um Estado onde a economia domina seus próprios fundamentos constitucionais sequer poderia receber tal denominação, muito embora seja de conhecimento notório que é exatamente o prevalecimento do econômico sobre garantias constitucionais aquilo que mais se vislumbra.

Na verdade, a Constituição, como documento jurídico-político, sempre esteve submersa em um jogo de tensões e poderes, o que não pode significar a sua transformação em programa de governo, fragilizando-a como paradigma ético-jurídico da sociedade e do poder [62].

Aliás, Dalmo de Abreu Dallari [63] enfoca que a Constituição é responsável pela reunião de princípios e regras que, no seu conjunto, compõem a ideia de justiça existente na consciência de um povo, sendo tal documento, por tal razão, o padrão objetivo do justo. Mas, adverte o constitucionalista, se a Constituição não for rigorosamente cumprida, ficará praticamente impossível respeitar o ideal de justiça do povo, se não houver a aplicação do chamado "padrão objetivo". É o desrespeito à Carta Constitucional um dos grandes responsáveis pela mudança social ter se transformado em desordem social.

3.3.2. Crise funcional

Tradicionalmente, pode-se afirmar que o poder estatal é dividido, funcionalmente, em três órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Tal concepção foi sistematizada pela primeira vez no século XVIII (ano de 1748), na obra "O Espírito das Leis", de Montesquieu que entendia que cada poder deveria funcionar com plena independência e autonomia.

Com Paulo Bonavides [64] verifica-se que a divisão de poderes constituiu técnica fundamental de proteção dos direitos da liberdade e ao genial Montesquieu deve-se a sua mais acabada formulação.

Mas, também o estadista inglês John Locke teve contribuição fundamental na teoria da divisão de poderes, não podendo sendo possível deixar de rememorar seu valor.

Como afirma Paulo Bonavides [65], Locke era bem menos radical que Montesquieu, engendrando essa divisão apenas como "princípio de limitação do poder entre o monarca e a representação popular".

Indo um pouco mais além na história do constitucionalismo, posteriormente a Montesquieu e John Locke, se verificou a possibilidade de uma função intervir nas demais e assim sucessivamente, através do que os norte-americanos chamaram de "checks and balances" – sistema de freios e contrapesos.

Logo, não obstante continuassem a ser independentes entre si, percebeu-se que tal autonomia não poderia ser absoluta como acreditava o teórico francês Montesquieu. Era necessário que um poder interferisse no outro sempre que se fizesse necessário para manutenção do próprio aparato estatal.

Porém, assim como a independência plena entre as funções (ou poderes) do Estado nunca existiu, também o sistema de freios e contrapesos acabou demonstrando não ter sido utilizado de modo completamente equilibrado no transcorrer histórico do Estado moderno, ou seja, dependendo do paradigma estatal dominante, um poder sempre prevaleceu sobre outro, deixando em segundo plano o objetivo de controle recíproco.

No liberalismo, por exemplo, era nítida a presença dominante do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo e Judiciário, especialmente porque foi a partir desse paradigma que se introduziu a ideia de Estado de Direito, conforme já analisado anteriormente.

Bluntschli, apud Paulo Bonavides, confirma o pensamento acima exposto [66]:

... "a completa separação de poderes levaria à dissolução da unidade estatal e ao dilaceramento do corpo do Estado", razão por que, à luz da teoria organicista, se deveria aceitar a separação relativa, e nunca separação absoluta de poderes. Mas, ao acolher essa separação relativa, declara Bluntschli, peremptoriamente, a supremacia do Poder Legislativo sobre os demais poderes.

O advento do Estado Social, por outro lado, deslocou a predominância da função legislativa para o Poder Executivo uma vez que impôs a necessidade da prestação de políticas públicas governamentais, ou seja, de ações positivas por parte do Estado.

Por fim, quando o Welfare State aprimorou seus contornos, incorporando a ideia de solidariedade, houve novamente um deslocamento da função estatal protagonista, adquirindo relevância o Poder Judiciário, especialmente porque foi a partir do Estado Democrático de Direito que se passou a exigir um novo olhar sobre os direitos e garantias fundamentais e, consequentemente, sobre a Constituição: uma visão procedimental ou material, ficando para trás (ao menos teoricamente) o eixo procedimental-liberal.

O Poder Judiciário, nessa nova fase, abandona a postura passiva perante a sociedade típica do Estado Liberal e, na perspectiva substancialista, abre-se para uma nova inserção no âmbito das relações dos Poderes de Estado, transcendendo as funções de checks and balances [67] e apresentando-se como fundamental no atual Estado Democrático de Direito, especialmente quando, atuando em função tipicamente legislativa, exerce a jurisdição constitucional.

O aspecto acima analisado representa a primeira causa da crise funcional, ou seja, há uma transformação nas relações entre as próprias funções do Estado e, modernamente, um poder pretende/busca sobreviver à custa do outro, como observa Bolzan de Morais [68].

Um segundo fator, talvez mais preocupante, já que ocorre até mesmo em níveis globais, é a necessidade de atribuir aos órgãos incumbidos das funções estatais outras atribuições públicas, seja em razão da concorrência que recebem de outras agências produtoras de decisões de natureza legislativa, executiva e/ou jurisdicional, seja pela incapacidade sentida em fazer valer aquelas decisões que produzem com a perspectiva de vê-las suportadas no caráter coercitivo que seria próprio às decisões de Estado [69].

Há, nesse contexto, o que José Luis Bolzan de Morais [70] nomeia de "perda referencial" de centralidade e de exclusividade, o que é percebido por um viés externo, no qual se observa além de uma mudança no perfil clássico das funções estatais produzida pela transformação mesma da instituição do Estado – onde a cada dia um setor ocupa o espaço do outro – a sua fragilização nas mais diversas expressões – quando perde a concorrência para outros setores [71] no que tange à capacidade (e muitas vezes a legitimidade) de decidir vinculativamente a respeito da lei e sua execução, bem como resolução de conflitos.

A esse respeito, Bolzan de Morais aponta para um pluralismo de ações e um pluralismo funcional, seja legislativo, executivo ou jurisdicional [72], o que se entende ser causado justamente pela complexidade social e suas também complexas demandas, a serem solucionadas, em sua grande parte, pelos entes estatais.

Antes de se proceder à análise da última crise identificada por José Luis Bolzan de Morais é interessante adicionar às suas ideias, aqui transmitidas, o que pensa sobre a crise de funções estatais o constitucionalista Paulo Bonavides [73]:

Chegamos, de nossa parte, a essa conclusão: a teoria da divisão de poderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e afirmação da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e sua personalidade.

Feitas, assim, as considerações que se acredita relevantes para o entendimento da crise estatal e jurisdicional, é necessário esclarecer que tais crises são peculiares aos países centrais, onde já se teve a experiência dos paradigmas liberal e social. Muito embora em alguns momentos seja possível identificar a problemática sofrida pelos países semi-periféricos com a que será aqui tratada, é preciso saber que as dificuldades sofridas pelos tribunais dos chamados Estados de modernidade tardia [74] são, em regra, de outra ordem, a serem trabalhadas no capítulo seguinte.

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Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. A crise do Poder Judiciário.: Breves reflexões a partir do contraponto entre países centrais e semi-periféricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2305, 23 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13725. Acesso em: 22 dez. 2024.

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