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A necessidade de se repensar a reforma do ensino jurídico no Brasil

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26/10/2009 às 00:00
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Este estudo busca contribuir para a reflexão sobre o estado caótico da educação jurídica, evidenciando as autorizações de novos cursos e aprofundando propostas da OAB e do MEC.

RESUMO

O ensino superior no Brasil apresentava-se como um ótimo negócio em meados de 1990, sendo o curso de Direito, em razão da boa procura e da facilidade de implantação, perfeitamente adequado para a expansão. Adveio, pois, a proliferação indiscriminada, não havendo comprometimento da maioria dos empresários e do Estado com a qualidade. Por ser de opiniões diversas, criou-se, então, impasse entre o MEC e a OAB, pois enquanto aquele apoiava o expansionismo, este era convicto da necessidade de se conter o crescimento de cursos e vagas. No sentido de dirimir a contenda, em 2004 foi designado Grupo de Trabalho com representantes das instituições citadas, além do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Justiça, o que culminou com sugestões de critérios e procedimentos para autorização de novos cursos, reacendendo, inclusive, a discussão sobre o critério da "necessidade social". Em observância ao contexto geral do ensino jurídico, focando a proliferação dos cursos e a qualidade da educação oferecida e, ainda, com base nas recomendações do GT MEC-OAB, esta monografia propõe-se a contribuir para a reflexão sobre o estado caótico da educação jurídica, evidenciando as autorizações de novos cursos e aprofundando propostas da OAB e do MEC, com vistas a indicar perspectivas em que a previsível perpetuação da "crise" no ensino seja evitada.


INTRODUÇÃO

Por ser responsável técnico da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e participante do Grupo de Trabalho designado pelo Ministro da Educação – instituído por meio da Portaria n. 3.381, de 2004 [01] –, com a "finalidade de realizar estudos para consolidar os parâmetros já estabelecidos, de análise dos pedidos de autorização de novos cursos jurídicos" –, instigado pelos que me tutelam, senti-me na contingência de expor o meu vivenciamento no Grupo de Trabalho (GT MEC-OAB) cumulado com a experiência que pude adquirir do trabalho inerente à Comissão de Ensino Jurídico, produzindo a presente monografia, intitulada "A necessidade de se repensar a reforma do ensino jurídico no Brasil: o relato de uma experiência".

Esta monografia tem o cuidado de: tornar claro o que viria a ser a "crise do ensino jurídico", repetidamente estampada na imprensa e combatida pela OAB; trazer à tona a situação geral das instituições de ensino, abrangendo, ainda, a situação das universidades, que são imbuídas de maior responsabilidade sobre os caminhos da educação; reunir a legislação acerca do ensino do Direito e aprofundar a parte burocrática da criação de cursos; apresentar o Grupo de Trabalho MEC-OAB, adentrando-se às suas propostas; e, ao final, apresentar, harmonizando todos os capítulos, as perspectivas quanto a área, num futuro próximo. É essencial deixar claro que todos os pontos acima enfocam o contexto dos cursos de Direito no decorrer dos últimos dez anos, quando estes se proliferaram indiscriminadamente, em decorrência de uma corrida do ouro, onde empresários investiam na criação de instituições de ensino superior em busca de retorno certo, farto e fácil, enquanto o poder público barganhava, autorizando a grande maioria dos cursos pleiteados, em nome da política expansionista da educação e em atenção aos favores políticos.

É importante observar que nessa corrida não havia qualquer comprometimento dos meros empresários e, muito menos, dos políticos empresários, com a qualidade do ensino, pois aqueles estavam preocupados apenas com o retorno financeiro decorrente das mensalidades e, quanto aos políticos, também com as perspectivas eleitoreiras de seu novo "curral eleitoral". É sabido, inclusive, que os mantenedores, muitas vezes, até optavam pela má qualidade, em razão de se conseguir viabilizar custos mais baixos de investimento e manutenção. Num outro viés, há que se frisar que instituições comprometidas com a qualidade investiam pesado no desenvolvimento de corpo docente, coordenação, métodos de ensino e estrutura física, o que colaborava para certa perpetuação do abismo entre a má e a boa educação jurídica.

Em contrapartida à primeira situação, que sempre foi majoritária com larga margem de vantagem, a Ordem dos Advogados do Brasil, temerosa com o eminente colapso do ensino jurídico, cada vez mais fielmente refletido nos resultados dos exames de ordem e, supostamente, imbuída de uma ótica corporativista, tentava, por meio da atribuição conferida pelo inciso XV do artigo 54 da Lei n. 8.906, de 1994 [02], sofrear a expansão, manifestando-se contrariamente à autorização de cursos que entendia não serem aptos a proporcionar um ensino que venha a inserir, em meio à sociedade, profissionais capazes de atender aos seus próprios anseios. Diante do contexto, criou-se uma situação desconfortável entre o MEC e a OAB, pois, ignorando os pareceres da Ordem que negavam a abertura de cursos, o Ministério autorizava o funcionamento de quase a totalidade dos solicitados. Como o foco de dessemelhança entre as posições das duas instituições era, tecnicamente, a divergência quanto aos critérios adotados, o Ministro da Educação Tarso Genro teve a iniciativa de criar um Grupo de Trabalho de mútuo interesse do MEC e da OAB, contando, ainda, com a participação do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Justiça, no sentido de viabilizar que os entendimentos daquele Ministério e da Ordem pudessem ser sintetizados em um documento, afinando critérios e normas, no sentido de harmonizar o posicionamento das instituições.

O Grupo se reuniu durante cinco meses, apresentando, ao final, um relatório onde se encontram sugestões de critérios e procedimentos para a autorização de novos cursos de Direito. Mas esses apontamentos nunca foram colocados em prática com a desejada efetividade, não se aproveitando o resultado dos estudos para ampliar o debate com o mundo acadêmico, de forma a não se contribuir com a melhoria do ensino jurídico e, sequer, minorar a disparidade entre o número de pareceres desfavoráveis da OAB e as homologações do MEC. Não obstante, o material produzido é de grande valia e deve ser explorado, razão pela qual este trabalho suscitará elementos importantes do Relatório Final do GT MEC-OAB, discutindo o ensino jurídico de forma que os rastros históricos da educação contribuam para a compreensão da contemporaneidade, com vistas, por fim, a ajudar a traçar perspectivas para o futuro do ensino jurídico e, talvez, numa visão mais ambiciosa, a colaborar com a indicação de um caminho a ser pautado para a tentativa de recuperação da credibilidade do universo da educação jurídica.


1.A PARAMETRIZAÇÃO DA "CRISE"

Ao tratar da "crise do ensino jurídico", deve-se contextualizar devidamente o termo, o que justificou a inclusão deste capítulo. Não se pode afirmar friamente que há uma crise no ensino jurídico sob pena de poder estar permitindo interpretações diversas do que se pretende. Entende-se por crise uma fase difícil na evolução das coisas, dos fatos ou das idéias. Pois bem, mas a que especificamente quer referir-se a afirmação "crise do ensino jurídico"? A resposta é muito importante para delimitar do que se fala, porém, ao mesmo tempo, é bastante simples: Trata-se do contexto geral. Refere-se ao ensino como um todo, ou seja, a queda na média da qualidade, analisando-se todas as instituições que oferecem cursos de Direito no país. Já quando se fala em qualidade de ensino, temos que instituições, tidas como exemplares (normalmente tradicionais), têm obtido bons resultados com seus alunos, que estão tendo a oportunidade de participar de um ensino superior de elevada qualidade, com recursos muito melhores do que estas mesmas faculdades poderiam oferecer há dez ou vinte anos atrás, o que nos mostra que houve uma melhora substancial no ensino jurídico [03]. A qualificação do corpo docente, as técnicas de docência, entre as quais a interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade, a estrutura curricular (com a instalação de núcleos de monografia, pesquisa, extensão, atividades complementares e prática jurídica) e a própria estrutura física das instituições permitem o oferecimento de um ensino diferenciado, possibilitando que o corpo discente absorva mais conhecimento e possa, no ambiente acadêmico, preparar-se mais adequadamente para o mercado de trabalho. Pode-se aferir, ainda, que até mesmo o corpo discente encontra-se mais preparado, sobretudo em razão da velocidade e disponibilidade da informação, notadamente com a democratização da internet. Segundo Edgar Morin [04], "a educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se torna um cidadão". Nessa linha, pode-se afirmar que ensinar o Direito não se restringe a simplesmente repassar a informação jurídica, pelo contrário, há a necessidade de reavivar Montaigne com a sentença: "mais vale uma cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia".

Rudolf von Jhering [05] escreveu, ainda no Século XIX:

Missão do direito. – É um problema insolúvel dir-se-á, o de indagar o que é que constitue o conteúdo do direito, porque ele é eternamente variável: é deste modo aqui, e além será de outro. É um caos em perpétua fusão, agitando-se sem freio nem regra. O que aqui é proibido, permitir-se-á mais além: o que aqui se prescreve, proíbe-se acolá. Fé e superstição, selvageria e civilização, vingança e amor, crueldade e humanidade, que mais sei eu? Tudo o direito tem acolhido sem consolidar coisa alguma. Por certo que, se a missão do direito fosse realisar a verdade em si mesma, o resultado seria desolador. Se lhe atribuíssemos uma tal missão teríamos de confessar que êle está votado ao perpétuo erro. Cada século transformando o direito pronunciaria a condenação do século precedente, que julgava que o seu direito consagrava a verdade, e seria a seu turno condenado pelo século seguinte. A verdade levaria sempre alguns passos de dianteira ao direito, e este nunca poderia atingi-la, tal como se fora uma criança correndo em perseguição de uma borboleta que levanta vôo à sua aproximação.

Como visto, o Direito não é uma matéria estática, quanto mais exata. Por isso, a educação jurídica não pode limitar-se ao repasse de informações, isto porque temos que construir e pensar a realidade a partir de princípios, adequando, então, a norma, que, inclusive, caminha conforme os anseios da sociedade. Forma-se, assim, um círculo vicioso, onde a sociedade alimenta a norma que regula a sociedade. Não se pode crer que a simples exposição da norma a um ser humano, no caso, o aluno, será suficiente para que ele entenda toda a dimensão a que corresponde o ensinamento jurídico. Mais uma vez, a título de ilustração, pode-se recorrer a textos históricos que comprovam a dinamicidade do Direito, agora, por Edmond Picard [06]:

É portanto uma idéia falsa a fixidez absoluta do Direito, quer para certas épocas, quer num futuro ideal como o imaginam os que crêem no Direito natural supremo que descrevi no parágrafo 83. As Leis têm esta estabilidade, mas, como vimos no parágrafo 95, são apenas uma expressão humana colocada acima da verdadeira vida jurídica popular, inspirando-se nesta, mas não confundindo-se com ela. A fixidez das Legislações está constantemente sujeita à reação dos costumes que trabalham sem descanso e acabam sempre por ter razão na sua obra lenta de decomposição ressurreicional. Nenhum Direito se manteve jamais intato e invariável, salvo se já é um Direito morto, como o romano que já não se pratica, do mesmo modo que o latim e o grego antigo são línguas mortas porque ninguém já as fala.

É comprovada a complexidade da matéria quando se fala em Direito. Cabe destacar, deste trecho, que a "fixidez das Legislações está constantemente sujeita à reação dos costumes", ou seja, o Direito é tão dinâmico quanto a sociedade, de forma que o ensino jurídico exige mais do que o simples repasse de informações, exige que se eduque o pensamento e a reflexão. O educador António Manuel Hespanha [07] confirma esse entendimento ao indicar que "as normas jurídicas apenas podem ser entendidas se integradas nos complexos normativos que organizam a vida social. Nesse sentido, o direito tem um sentido meramente relacional (ou contextual)". E complementa [08]: "Da antropologia jurídica, chegou a idéia de ‘pluralismo’, da coexistência de diferentes ordens jurídicas, legais ou costumeiras, no mesmo espaço social". De acordo com o autor, o Direito é oriundo da cultura social com vistas a regular ou balizar a relação entre os membros de uma sociedade ou, até mesmo, a relação entre sociedades. Assim, entende-se que o Direito brota de um conglomerado de costumes, ou seja, a sociedade não precisa se adaptar ao Direito, mas interage com este naturalmente [09].

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Edgar Morin [10] aprofunda:

O importante não é apenas a idéia de inter- e de trans- disciplinaridade. Devemos "ecologizar" as disciplinas, isto é, levar em conta tudo que lhes é contextual, inclusive as condições culturais e sociais, ou seja, ver em que meio elas nascem, levantam problemas, ficam esclerosadas e transformam-se. É necessário também o "meta-disciplinar"; o termo "meta" significando ultrapassar e conservar. Não se pode demolir o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o fechamento: há o problema da disciplina, o problema da ciência, bem como o problema da vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo tempo, aberta e fechada.

Pelos elementos apresentados, verifica-se que o Direito não pode ser resumido a uma construção simplificada, sem vínculos com a sua própria história e com a história das sociedades. As normas são peças importantes do Direito, mas não podem ser consideradas a sua estrutura básica, porque cabe ao Direito, inclusive, compor normas, o que demanda mais que o conhecimento da legislação vigente, exige um amplo conhecimento contemporâneo e histórico da sociedade, além de estudos filosóficos. Ocorre, porém, que embora algumas instituições tenham investido pesado na qualidade, viabilizando um ensino incapaz de ser lecionado no contexto da década de oitenta, a grande maioria das faculdades de Direito pregam a educação em massa, ou seja, não se preocupam com a qualidade do que se repassa ao aluno, mas simplesmente com a quantidade de alunos que se tem, o que, em tese, acarreta o crescimento financeiro do mantenedor. Exemplo disso é o aumento indiscriminado de vagas [11] em universidades particulares (que possuem competência legal para tanto) sem investimentos proporcionais em corpo docente, projeto pedagógico e infra-estrutura.

Em síntese, pode-se afirmar que, progressivamente, temos instituições mais capacitadas a cada dia, e que estas estão melhorando constantemente. Em contrapartida, temos também o constante aumento de instituições que não se preocupam com a qualidade do ensino, que, aliás, vêm piorando na medida que os interesses econômicos sobressaem os didáticos. Tem-se, então, um distanciamento cada vez maior entre o melhor e o pior ensino, sendo que o primeiro cresce vagarosamente, enquanto o segundo cresce vertiginosamente, ocasionando uma constante queda na média geral de qualidade do ensino [12]. E é nesse sentido que se trata da "crise" no ensino do Direito.


2.ENTENDENDO A EVOLUÇÃO DO ENSINO DO DIREITO

A crise dos cursos de Direito decorre de uma deterioração ampla da educação, conseqüência da vulgarização da informação, impregnada nas novas perspectivas da sociedade. Como se sabe, matérias político-sociais evoluem (ou involuem) conforme o contexto em que se encontram. Atualmente, o Estado e a sociedade pugnam por educação, seja ela como for, entendendo que títulos valem por si só, desprezando-se a qualidade e conteúdo do conhecimento adquirido. Cabe, neste ponto, fazer uma remissão às considerações do capítulo anterior, enfatizando a coexistência de regra e exceção, sendo que a exceção, neste caso, é um ensino de qualidade superior e que tem se aperfeiçoado sobremaneira nos últimos anos, enquanto a regra é um ensino de massa, genérico, que tem se multiplicado geometricamente nesse mesmo espaço de tempo.

O molde de educação "genérico", ou seja, o curso padrão, sem excelência, contribuiu para molestar uma das mais fortes instituições mundiais: a Universidade [13]. Esta, como instituição, foi criada na Europa, na Idade Média, mais especificamente no século XII, período em que floreava o Renascimento. Nesse tempo, o enfoque sobrevinha os estudos de Direito, Teologia e Medicina, despertando-se, especialmente, na Itália e na França. É preciso ressaltar que há quem afirme que já em trezentos e oitenta e sete antes de Cristo Platão teria criado a primeira universidade da história, chamada de "Academia", por situar-se em Academus, cidade próxima a Atenas, na Grécia. Contudo, como "Universidade" abrange mais do que a "universalidade de idéias situada num campo propício para o desenvolvimento intelectual", majora o entendimento que a instituição somente tomou corpo efetivo com o Renascimento. A propósito, entre os anos de um mil e duzentos e um mil e quatrocentos, foram fundadas, na Europa, cinqüenta e duas universidades, sendo vinte e nove delas erguidas por papas, chefes da então instituição mais forte e consistente do mundo.

Enfatizando a importância e solidez das universidades, cabe reproduzir Boaventura de Sousa Santos [14]:

A notável continuidade institucional da universidade sobretudo no mundo ocidental sugere que os seus objectivos sejam permanentes. Em tom joco-sério Clark Kerr afirma que das oitenta e cinco instituições actuais que já existiam em 1520, com funções similares às que desempenham hoje, setenta são universidades.

A título de ilustração, deve-se ressaltar que, no Brasil, temos 177 universidades [15], praticamente uma para cada milhão de habitantes. Aceitável seria, não fossem alguns outros elementos [16] de contextualização: apenas 30% da população tem acesso ao ensino superior; e, além das universidades, há 118 centros universitários, 1523 faculdades isoladas, 349 institutos superiores e 33 centros tecnológicos.

Atualmente, ressalvadas poucas exceções, o estudante busca a informação pelo título correspondente e não pelo desenvolvimento intelectual pessoal e social, de forma que as universidades, aos olhos do povo, acabam por se tornar grandes faculdades reunidas para o oferecimento de informações, com vistas a viabilizar ao estudante o acesso ao mercado de trabalho. Nesse diapasão encontra-se a crise institucional da Universidade e, com muita propriedade, Boaventura de Sousa Santos aponta o cerne da questão [17]:

A centralidade da universidade enquanto lugar privilegiado da produção de alta cultura e conhecimento científico avançado é um fenómeno do século XIX, do período do capitalismo liberal, e o modelo de universidade que melhor o traduz é o modelo alemão, a universidade de Humboldt. A exigência posta no trabalho universitário, a excelência dos seus produtos culturais e científicos, a criatividade da actividade intelectual, a liberdade de discussão, o espírito crítico, a autonomia e o universalismo dos objectivos fizeram da universidade uma instituição única, relativamente isolada das restantes instituições sociais, dotada de grande prestígio social e considerada imprescindível para a formação das elites. Esta concepção da universidade, que já no período do capitalismo liberal estava em relativa dessintonia com as "exigências sociais" emergentes, entrou em crise no pós-guerra e sobretudo a partir dos anos sessenta. Esta concepção repousa numa série de pressupostos cuja vigência se tem vindo a mostrar cada vez mais problemática à medida que nos aproximamos dos nossos dias. Estes pressupostos podem formular-se nas seguintes dicotomias: alta cultura – cultura popular; educação – trabalho; teoria – prática.

Como visto, a universidade tem tido problemas quanto a alguns fatores oriundos do desenvolvimento social, que vem forçando um contexto cada vez mais desfavorável. Nesse sentido, a sociedade, que, em tese, seria a menos interessada em desvalorizar e deteriorar a qualidade e importância de grandes institutos que trabalham para o seu desenvolvimento, vem os prejudicando, o que certamente refluirá contra os próprios interesses sociais.

2.2.Situação contemporânea dos cursos de Direito

2.2.1.Elementos objetivos [18]

Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP –, o Brasil contava, em 1995, com 235 cursos de Direito, sendo 160 de iniciativa particular e 75 de iniciativa pública. Daí infere-se ter 68% de cursos particulares e 32% de públicos.

Tratando de vagas existentes nesses cursos, obtêm-se os seguintes dados: 46.264 vagas em instituições particulares e apenas 9.442 vagas públicas, perfazendo-se um total de 55.706. Observa-se, de antemão, que embora dois terços das instituições de ensino superior fossem privadas e um terço pública, em se tratando de vagas, a disparidade era drástica. Em percentual, tem-se 83% de vagas particulares e 17% de vagas públicas. Vê-se que, naquela época, apenas dois terços dos cursos pertenciam à iniciativa privada, contudo, essas instituições concentravam um número muito maior de vagas do que as instituições públicas. Diante das informações acima, pode-se verificar que as instituições particulares compreendem um número cinco vezes maior de vagas que as públicas, o que poderia induzir a pensar que as suas estruturas condissessem com essa realidade, de forma que a capacidade física e de gestão das faculdades públicas seriam sensivelmente menor. Contudo, a realidade não era esta, pois, em raros casos as instituições privadas tinham mais estrutura física que as públicas e, mais importante que este indicador, ressalta-se que, naquele ano de 1995 [19], aquelas instituições eram constituídas por 74.720 docentes, devendo-se evidenciar um total de 4.867 doutores, enquanto as públicas eram compostas por 86.925 professores, sendo 17.941 com titulação de doutorado. Por ilação, pode-se afirmar que já naquela época havia uma tendência de educação em massa nos cursos particulares, pois, embora os cursos públicos tivessem melhores estruturas, inclusive com corpo docente em número e qualidade superiores, havia cinco vezes mais vagas nos cursos privados.

Outro fator importante quando da contextualização do início dos últimos dez anos, ou seja, o ano de 1995, é a concorrência (relação candidato por vaga) para se adentrar a um curso de Direito, como segue: 6,94 em instituições privadas e 16,93 em públicas. Os fatores tratados no parágrafo anterior, que indicam para uma relativa superioridade qualitativa dos cursos públicos em relação aos particulares, coadunados com o fato de que na faculdade privada há o ônus da mensalidade, justificam em parte a diferença na concorrência para o vestibular, mas há ainda que se frisar que o já excessivo número de vagas reforçava a disparidade.

Não se têm, ainda, os dados nos anos de 2004 e 2005, quando se completaria o campo de pesquisa parametrizado neste trabalho, motivo pelo qual utilizar-se-ão dados de 2003, ano do último Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP –, vinculado ao Ministério da Educação. É importante ressaltar, contudo, que a ausência dos dados de 2004 e 2005 não altera o panorama que se demonstra neste trabalho, pois não houve qualquer fato contundente que viesse a, substancialmente, interferir na previsibilidade e continuidade das progressões aqui tratadas.

Assim, em 2003, havia 704 instituições que ofereciam cursos de Direito, sendo 113 públicas e 591 privadas. Fazendo-se um olhar comparativo com os dados anteriores, de 1995, podemos verificar o óbvio: que a iniciativa privada abriu muito mais instituições que o setor público, fazendo com que, em 2003, 84% das instituições fossem particulares.

Voltando-se para o quesito vagas, temos: 197.988 vagas no total, distribuídas em 12.696 públicas e 185.292 particulares. Diante dos números, vê-se que o aumento de vagas públicas se deu no patamar de 34%, enquanto o crescimento privado se deu em 301%. Com isso, verifica-se que saltou de cinco vezes mais para quinze vezes mais o número de vagas particulares sobre o total de vagas públicas para Direito. Ocorre, porém, que o número de docentes entre os dois tipos de instituições tratados não caminhou da mesma forma, senão vejamos: Em 2005 [20], havia 267.986 docentes na educação superior brasileira. Desses, 88.246 serviam à iniciativa pública, enquanto 179.740 à iniciativa privada, ou seja, o dobro de docentes em instituições particulares, lecionando para quinze vezes mais discentes. Ademais, é importante ressaltar que 62,7% dos professores com titulação de doutorado estavam vinculados à iniciativa pública, contra 37,3% ligados ao setor privado. É falacioso acreditar que, diante desse panorama, o grupo dos cursos privados poderia lecionar com a mesma capacidade (quantitativa e qualitativa) que o grupo de instituições públicas.

Em se tratando de concorrência, proporcionalmente houve leve diminuição em instituições públicas, que passaram a ter 14,09 candidatos por vaga, porém, nos cursos particulares a diminuição foi extrema, apenas 2,41 candidatos por vaga. Ressalta-se, ainda, que essa concorrência de 2,41 candidatos por vaga, na realidade, tende a 1, pois, para aferi-lo, ignorou-se o fato de que a maioria dos candidatos concorre a uma vaga em diversas instituições de ensino e não somente em uma única.

Informa-se ainda, em complemento aos dados reais aferidos pelo Censo da Educação Superior, que hoje, segundo o INEP [21], temos 1.014 cursos de Direito em funcionamento. A reunião das informações acima dispostas não tem o objetivo de criticar, num primeiro momento, o grande número de cursos (o que, por si só, não indica a perda de qualidade), mas pretende demonstrar que as iniciativas pública e privada, nesse ramo de negócio, têm caminhado em direções distintas, e ambas aquém do que se espera para um ensino exemplar. Isso em razão de que a burocracia e a falta de investimento nas faculdades de Direito do governo mantêm-nas sem poder agregar, em toda sua capacidade, valores a seus cursos, assim como, nas faculdades particulares, o mercantilismo coíbe uma boa evolução didático-pedagógica. Poucas instituições pregam a excelência do ensino como norte, investindo em corpo docente e apoiando propostas didáticas emanadas de um núcleo docente permanente capaz de atender às demandas de cada área do curso, pois, normalmente, essas medidas exigem a disponibilidade de capital sem retorno direto e vultuoso. Aliás, como exposto neste capítulo, a grande maioria das instituições particulares tem criado vagas com vistas à diminuição de custos e o aumento da lucratividade, o que é visível quando se analisa o número de vagas e de docentes (observando-se, ainda, a evolução na contratação de professores titulados) no decorrer dos últimos anos. Ocorre, contudo, que essa vulgarização da educação chegou ao limite em diversas instituições, que passam a não conseguir preencher as vagas, como se pode extrair das informações acerca da concorrência no vestibular. Este, dentre outros elementos, permite enfatizar que o caminho não é a banalização, mas, sobretudo no contexto hodierno, deve-se propender ao investimento em qualidade visando uma diferenciação de mercado.

2.2.3.Elementos subjetivos

Apresentados os elementos objetivos da situação geral dos cursos de Direito no Brasil, é necessário apresentar outros, que refogem à lógica matemática. Agora, apresentar-se-ão elementos concisos, porém subjetivos, acerca da contextualização desses cursos, ou seja, haverá a caracterização da situação hodierna mediante elementos peculiares ao Direito, e que somente poderão ser interpretados a partir do conhecimento específico da matéria. De antemão, deve-se antecipar que este é um ponto crucial deste trabalho, ou seja, o momento em que há, mais a fundo, a delimitação da crise, tratada preliminarmente na "parametrização da crise", no primeiro capítulo da presente monografia. Explicando-se melhor, em "elementos objetivos" foi possível comprovar que, de fato, por dados numéricos, estamos atravessando uma grande crise do ensino jurídico. Em contrapartida, em "elementos subjetivos" não se comprova qualquer caos, pelo contrário, simplesmente aponta a necessidade de diálogo constante sobre a matéria, com vistas à manutenção das características fundamentais do curso e ao aperfeiçoamento dos seus projetos, o que, mesmo que não ocorra na amplitude esperada, é presente no meio acadêmico e contribui efetivamente para a melhora do ensino jurídico, que, aliás, sob este ponto de vista isolado, ou seja, analisando-se o que de melhor se pode ter hoje e o que de melhor se pôde ter a dez anos, verifica-se que houve melhora substancial.

Analisando o ensino jurídico de forma isolada, Inês da Fonseca Pôrto [22] revelou a maneira com que se deu o processo da reforma do ensino do Direito:

O processo da reforma do ensino jurídico estruturou-se de forma complexa: procurou dialogar, primeiramente, com a diversidade do pensamento dos especialistas.

Em seguida, predispôs-se a dialogar com as surpresas de sua própria realidade, empiricamente desconhecida até então.

Manteve a mesma disposição para o diálogo com as diferenças e singularidades de cada uma das experiências dos cursos jurídicos que conheceu.

O produto desse diálogo permanente são os instrumentos da reforma – ou os parâmetros de qualidade –, cuja pretensão é encontrar, nas contradições da realidade do ensino jurídico, as condições para a superação da crise.

Como visto, sob esta ótica, não temos um ensino do Direito em crise, mas simplesmente a eterna necessidade de repensar a matéria, rediscutir e dialogar para evoluir sempre. E todos devem ser considerados. O que não se deve fazer é restringir a análise a apenas um parâmetro, com vistas à não mutilação do estudo. Assim, é possível verificar que, ao mesmo tempo, autores enfatizam a crise, estimulam a reforma e apresentam sugestões para a superação das dificuldades.

Ainda no ano de 2000, Paulo Luiz Netto Lôbo [23] indicou fatores que estariam possibilitando a efetiva concretização da última reforma do ensino jurídico no século XX, conforme segue:

a participação significativa e representativa da comunidade acadêmica (docentes, discentes e instituições de ensino) e da comunidade profissional (entidades profissionais da advocacia, da magistratura e do Ministério Público) na discussão e definição das diretrizes básicas, em sucessivos eventos nacionais e regionais, superando-se as desconfianças recíprocas; a crescente consciência da necessidade de refundamentação dos cursos jurídicos, para melhor compatibilizá-los aos novos paradigmas do direito e das profissões jurídicas, bem como às mudanças sociais que se aprofundaram no final do século; a insatisfação com modelos uniformes de diretrizes oficiais, fixadas sem discussão com os interessados, que não contemplem as especificidades da área de conhecimento do direito e as reais condições dos cursos; a compreensão mais abrangente do projeto pedagógico do curso de direito, que não se resume a mera reforma de grade curricular; a progressiva profissionalização acadêmica dos docentes dos cursos jurídicos, particularmente com o notável aumento de pós-graduados, nas últimas duas décadas; a melhor compreensão da necessidade de articular o ensino com a pesquisa e a extensão; a superação das resistências, ou da inércia, aos processos de avaliação permanente dos cursos jurídicos.

Mais uma vez, fala-se em reforma, diálogo e ressalta-se a existência de uma "crescente consciência da necessidade de refundamentação dos cursos jurídicos". Claro que os elementos trazidos acima não bastam para solucionar os problemas que envolvem o ensino do Direito, até porque o que se busca não é um resultado obtido por meio de uma fórmula matemática, mas a evolução constante.

Horácio Wanderlei Rodrigues [24], embora insista no termo "crise" em seus estudos, remete-nos também à idéia da necessidade de diálogo permanente e confirma que o que se busca não é a explicação por "fórmulas ingênuas e simplistas", como se pode verificar adiante:

A não-compreensão de seu aspecto multifacético, que atinge diversas instâncias e níveis, é um dos problemas centrais que reveste muitas das respostas que vêm sendo apresentadas. Outro problema, não menos grave, é a negação de seus elementos próprios, internos, vendo-a como mera conseqüência de uma crise político-econômica, bem como o seu oposto, ou seja, a visão da crise do ensino do Direito meramente como uma crise interna e desvinculada das questões políticas, econômicas, sociais e culturais.

A adoção dessa linha de pensamento motivou que este trabalho não se limitasse à apresentação de dados numéricos. Ao mesmo tempo, influenciou no sentido da manutenção das informações, por serem relevantes, uma vez coadunadas com uma visão global da problemática. Nesse sentido, cabe ressaltar que a crise não se restringe a simples asserções, mas abrange um conglomerado de fatores, de forma que, para enxergá-la, é preciso que haja a distinção entre uma ótica ampla, que analisa o conjunto dos cursos existentes no país, e uma ótica restrita, que visa o ensino isolado, tratando o Direito como matéria.

2.3.MEC versus OAB na autorização de novos cursos

Como previamente mencionado na introdução, a Ordem dos Advogados do Brasil se manifesta quanto às autorizações de novos cursos de Direito, conforme determinação expressa na Lei nº 8.906, de 1994 [25], pelo inciso XV do artigo 54 – "colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos". Contudo, por ser a manifestação meramente opinativa, não há a vinculação da decisão do Ministério da Educação, que pode acolher ou não o parecer da OAB.

Nesse sentido, sempre houve uma discrepância muito grande entre os posicionamentos da OAB e do MEC, uma vez que aquela instituição historicamente emite pareceres desfavoráveis em todos os casos em que os cursos não condigam com a real necessidade qualitativa inerente à sociedade, indo de encontro com o posicionamento do Governo, por meio do Ministério, de expandir o ensino superior, autorizando indistintamente os cursos pleiteados, independentemente da posição da Ordem. A título de ilustração, informa-se que, em 2004 [26], o Ministério da Educação autorizou o funcionamento de cinqüenta novos cursos de Direito, dos quais apenas quatro tinham parecer favorável da OAB. Em 2006, dos setenta e sete cursos homologados pelo Ministro da Educação, apenas dois obtiveram parecer favorável da Comissão de Ensino Jurídico, ou seja, menos que três por cento.

A posição da OAB vai ao encontro das reflexões de Paulo Roberto de Gouvêa Medina, como segue [27]:

As perspectivas que se delineiam para o futuro não são, nesse particular, nada promissoras. O lobby de instituições privadas em prol de um regime de maior flexibilidade para a criação e o funcionamento de novos cursos é algo preocupante. Não se contesta que o ensino particular tem o seu papel a cumprir, no último grau, já que, dispondo de maiores recursos, pode suprir deficiências que se verificam em relação às universidades públicas, notadamente as federais, tolhidas, muitas vezes, no seu potencial de expansão e com problemas, até, para a própria manutenção, em face da política restritiva que o governo federal tem adotado, nesse campo. Mas os interesses empresariais e a ânsia de ganho não podem sobrepor-se à preocupação com a qualidade do ensino, como parece ocorrer em muitas instituições de ensino superior, na área privada.

Os números anteriormente apresentados e as perspectivas citadas logo acima levam a crer que o ensino do Direito não parece ter um futuro muito promitente, e é justamente por este motivo que se propõe a aprofundar o estudo desse tema.

É importante que se tenha em mente que embora o posicionamento oficial da OAB seja no sentido de que haja um refreamento de cursos de Direito em razão da baixa qualidade verificada nos cursos atuais e nos projetos de implantação de novos cursos, há quem conteste a real intenção da instituição, indicando que pode haver interesses corporativos que motivam a política adotada pela Ordem quanto ao tema. De toda forma, é consenso entre a OAB, os educadores e demais estudiosos da matéria que se deve avançar na reforma do ensino jurídico. O que não se pode é deixar que o pior ensino se alastre enquanto o ensino de excelência tenha dificuldades de desenvolvimento. Assim, independentemente dos reais interesses que permeiam a educação jurídica, deve-se, de início, ampliar os estudos e a discussão, com vistas a permitir que o bom ensino seja estimulado e possa, talvez, provocar que instituições de ensino que sempre atuaram na educação em massa, possam redirecionar seus esforços para obter um ensino diferenciado.

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Sobre o autor
Walter José de Souza Neto

Advogado. Pós-graduado em Direito Público. Assessor de Relações Internacionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA NETO, Walter José. A necessidade de se repensar a reforma do ensino jurídico no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2308, 26 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13751. Acesso em: 23 dez. 2024.

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