Resumo
Pretende-se analisar a distinção entre moral e Direito contida na segunda parte da obra Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, de Norberto Bobbio, intitulada de Os problemas fundamentais do Direito no Pensamento de Kant. O artigo, primeiramente, disserta sobre o texto do autor; numa segunda parte apontam-se os seus problemas fundamentando-se na literatura especializada. Bobbio, no texto em questão, apresenta uma série de distinções entre a moralidade e legalidade, havendo critérios implícitos e explícitos. A leitura de Bobbio, no entanto, possui dificuldades em relação à Filosofia do Direito de Kant – algumas das objeções revelam-se pela não interpretação sistemática das obras do autor, principalmente a separação da Filosofia prática do campo do Direito; também os critérios ‘implícitos’ e ‘explícitos’ são prejudicados a partir da leitura atenta dos textos, sobretudo às questões atinentes aos imperativos hipotéticos e categóricos, legislação interna e externa e autonomia e heteronomia da vontade.
Palavras-Chaves: Direito. Filosofia. Bobbio. Kant. Moral. Legislação.
Abstract
Intend analyze the second part of the work Law and State in the Thought of Immanuel Kant, of Norberto Bobbio, entitled of The fundamental problems of the Right in the Thought of Kant. The article, firstly, tries to represent the author''s text; in a second moment, it will be pointed their problems, being based in the specialized literature. Bobbio presents distinction criteria between the morality and legality, having entitled criteria of implicit and explicit. The reading of Bobbio, however, it possesses vary difficulties in relation to the Philosophy of the Right of Kant - some of the objections are revealed by the not systematic interpretation of the author''s works, principally the separation of the practical Philosophy of the field of the Right; also the ‘implicit’ and ‘explicit’ criterion are prejudiced starting from the reading attempts of the texts of Kant, mainly the subjects regarding the hypothetical and categorical imperatives, legislation intern and extern and autonomy and heteronomy of the will.
Keywords: Right, Philosophy. Bobbio. Kant. Moral. Legislation.
Sumário: Introdução. 1.Os critérios de distinção entre direito e moral 2. Apontamentos ao texto de Bobbio. Conclusão. Referência .
Introdução
O presente trabalho investiga a distinção entre Direito e moral de Kant proposta por Norberto Bobbio. Pretende-se discorrer sobre os conceitos sob o ponto de vista do autor, avocando-se, em seguida, uma ideia antitética ao exposto. Portanto, em um primeiro, momento busca-se apresentar uma interpretação fiel ao texto; após procura-se oferecer alguns apontamentos críticos em função das dificuldades do mesmo.
Segundo Bobbio, e segundo uma corrente majoritária entre as obras pesquisas, o Direito possui uma feição oposta aos atributos da moral em vários aspectos. Observa-se que Bobbio não faz alusão às obras críticas de Kant, requerendo apenas, como texto principal, A metafísica dos costumes para fundamentar a análise entre Direito e moral. Em consequência, vê-se claramente que admite um sistema pós-crítico do Direito. Assim, o mesmo ficaria adstrito a uma concepção amoral, formulado sob imperativos hipotéticos técnicos.
Bobbio propõe, para a análise, critérios ditos explícitos, pois contidos e desenvolvidos nos textos de Kant, e critérios intitulados de implícitos, isto é, apenas citados por Kant, porém sem os desenvolver. Os primeiros, os explícitos, são distintos em duas categorias – quanto à forma da lei moral e forma da lei jurídica e quanto à liberdade interna e liberdade externa. Os critérios implícitos, por sua vez, são ponderados em autonomia/heteronomia da vontade e quanto aos deveres, havendo imperativos categóricos e imperativos hipotéticos.
Invertendo-se essa postura, havendo, destarte, uma interpretação sistemática da obra de Kant, admite-se uma contestação ao indicado por Bobbio. Sendo o Direito derivado duma razão prática, necessariamente pertenceria ao estudo da moral, não sendo, assim, desvinculado da mesma, mas correspondente aos seus atributos - autônomo, instituído de forma livre, internamente concebido (visto ser promulgado), e adstrito aos imperativos categóricos, não aos imperativos hipotéticos técnicos.
1. Os critérios de distinção entre Direito e moral
Em nota prévia, Bobbio (1997, pg. 49) propõe-se a discorrer sobre os problemas fundamentais do Direito em Kant utilizando-se da primeira parte da obra A Metafísica dos Costumes como texto principal. O autor cita outras obras consideradas, por ele, como texto introdutório e como apêndice. A introdução seria a Fundamentação da Metafísica dos Costumes; o apêndice seria a obra Sobre a Paz Perpétua. Além, conforme Bobbio (1997, pg. 49 e 50), são referências as obras chamadas de Filosofia da História. Observa-se, logo, a não inclusão dos textos críticos de Kant, o que remete à consideração de um pseudo-sistema pós-crítico do Direito.
A parir dessa nota preliminar, Bobbio indica a distinção do Direito e moralidade a partir de critérios explícitos, pois contidos no texto, e critérios implícitos, não contidos no texto de forma desenvolvida, mas apenas citados. O primeiro critério, explícito, possui duas variáveis – quanto à forma das leis, isto é, quanto à distinção entre legislação interna e legislação externa; e quanto à liberdade externa e liberdade interna (BOBBIO, 1997, pgs. 53s). O segundo critério, implícito, distingue-se entre duas variáveis – a autonomia e heteronomia; e imperativos hipotéticos e imperativos categóricos (BOBBIO, 1997, pgs 62s). Analisemos primeiramente os critérios explícitos.
1.1. Critérios explícitos
1.1.1 A forma da obrigação
Segundo Bobbio (1997, pg. 53), o primeiro critério explícito é puramente formal. Não se refere ao conteúdo da moralidade ou legalidade, mas apenas a forma da obrigação e seus critérios. Para tal distinção, o autor afirma a necessidade de considerar os elementos formais que distinguem a ação moral do pensamento jurídico. São, esses elementos formais, distintos em três categoriais – a) a ação moral é aquela que é realizada não para obedecer certa atitude sensível, mas somente para obedecer à lei do dever; b) a ação moral é aquela que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina; c) a ação moral não é movida por outra inclinação a não ser pelo respeito à lei.
Conforme Bobbio (1997, pg. 54), pode-se concluir que a moral não é a ação coerente com o dever, mas cumprida pelo dever, diferente da ação conforme a legislação, que pode ser cumprida segundo uma inclinação ou interesse. Assim, quanto o sujeito atua de determinada maneira porque é seu dever, cumpre uma ação moral; quanto atua de maneira diversa, para adaptar-se à lei, a ação corresponde somente à forma legal, ao Direito.
Também quanto à forma, pode-se distinguir Direito de moral pela legislação interna e legislação externa. Como adverte Bobbio (1997, pg. 56), a ação legal é externa, pois a adesão à legislação jurídica pressupõe uma concordância exterior às suas leis, independentemente da intenção pela qual é cumprida. Já a moral, pelo oposto, é interna, isto é, requer uma adesão íntima às suas próprias leis, ou seja, uma intenção que esta convicta da boa vontade da lei a ser seguida.
As leis externas são às leis jurídicas, são consideradas por si mesma, requerendo apenas um conformismo para o agir legalmente. A ação legalmente jurídica não exige um atuar por respeito ao dever - o ato pode ser aceito como juridicamente irrepreensível quanto o motivo for meramente utilitário, por exemplo, para satisfazer suas próprias expectativas ou evitar uma sanção (BOBBIO, 1997, pg. 57).
Já uma legislação interna, portanto, moral, exige uma atitude além do conformismo à lei jurídica, ou externa. A norma moral deve ser executada em respeito ao dever, sem um interesse externo que a determine, mas definido internamente como obrigação com pureza de intenção. Assim, segundo Bobbio, evitar-se-ia a intervenção do Estado em questões de consciência. A legislação interna, moral, ficaria excluída da jurisdição, o que garantiria a limitação do Estado e a liberdade da consciência do indivíduo (BOBBIO, 1997, pg. 57 e 58).
1.1.2. A liberdade interna e externa.
O segundo critério de distinção é quanto à liberdade interna e liberdade externa. Este seria um critério explicito não-formal. Diz Kant, segundo Bobbio, que a liberdade moral deve ser entendida como sendo a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; e por liberdade jurídica entende-se a faculdade de agir no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como eu, interna e externamente (BOBBIO, 1997, pg. 58).
Compreendendo-se, em outros termos, a liberdade como sendo a faculdade de se fazer algo sem ser coagido, tem-se que a liberdade moral é a dos impedimentos que provêm de nós mesmo; a liberdade jurídica, por oposto compreende no impedimento que provém dos outros, eficaz no domínio externo. Observa que a distinção entre as liberdades não coincide com aquela entre deveres com relação a si mesmo e deveres com relação aos outros; os deveres internos também são em relação aos outros, distinguindo entre deveres com relação à própria perfeição e deveres com relação à felicidade dos outros (BOBBIO, 1997, p. 59).
Assim, a liberdade moral se esgota na relação entre eu e eu, mas não que ela se refira unicamente a uma ação com relação a mim mesmo, mas que sou responsável por aquela ação somente diante de mim mesmo. Em outras palavras: a legislação moral não é a que prescreve deveres com relação a si mesmo, mas aquela por cujo cumprimento somos responsáveis somente frente a nós mesmos; já a legislação jurídica não é a que prescreve deveres com relação aos outros, mas aquela por cujo cumprimento somos responsáveis frente à coletividade. Daí, do conceito de liberdade externa, advém a característica do dever jurídico de ser um dever pelo qual somos responsáveis frente aos outros. É dessa característica que os outros podem exigir de mim o cumprimento da minha obrigação. (BOBBIO, 1997, pgs. 60 e 61)
1.2. Critérios implícitos
Conforme Bobbio (1997, pg. 62), Kant cita maiores distinções ente moral e Direito, porém não desenvolve essa análise de forma expressa – assim Bobbio requerer, deste então, buscar nos exegetas de Kant os tais juízos. São dois os critérios intitulados de implícitos – o critério da autonomia [01] e heteronomia [02] e o critério de imperativos categóricos e imperativos hipotéticos. Primeiramente analisaremos o critério da autonomia e heteronomia da vontade.
1.2.1. Autonomia e heteronomia
Bobbio (1997, pg. 62) atribui à vontade moral a autonomia, onde o dever não é derivado de um fim qualquer, mas pelo respeito à lei moral. Assim, a autonomia é considerada como a faculdade de dar leis a si mesmo através de uma vontade livre, ou uma lei moral que não se deixa determinar por inclinações ou cálculos interessados. Por antítese, a heteronomia dá-se quando a vontade é determinada por um fim não universal, isto é, quando a vontade não dá a si mesma uma lei, mas é determinada por um objeto, que fornece suas máximas.
Daí, a moral reconhecida como vontade autônoma, Bobbio crê seguro afirmar que a natureza da vontade de agir conforme o Direito, por oposição, deve necessariamente ser classificada como heterônoma. Deste modo, quanto à qualificação do direito, Bobbio (1997, pg. 63) o tipifica nos seguintes termos:
Que se considere o direito seja como legalidade, seja como liberdade externa (segundo as duas definições explícitas ilustradas anteriormente), acreditamos que a vontade jurídica possa ser considerada somente como vontade heterônoma. Enquanto legalidade, a vontade jurídica se diferencia da vontade moral pelo fato de por ser determinada por impulsos diversos do respeito à lei: e esta é de fato a própria definição da heteronomia. Para o direito não é importante que eu cumpra a ação prescrita, a fim de satisfazer um interesse meu, uma vez que está bem clara que também a ação mais honesta, cumprida por interesse, não é mais, por isso mesmo, uma ação moral. Enquanto liberdade externa, a vontade jurídica se diferencia da vontade moral porque provoca-nos outros titulares de igual liberdade externa o poder de me obrigar e, portanto é perfeitamente compatível, como veremos melhor mais adiante, com a coação: mas, mais uma vez, uma vontade determinada pela coação é ma vontade heterônoma, uma vez que é bem claro que também a ação mais honesta, quando cumprida por medo da punição, não é mais uma ação moral. (Grifo meu)
Assim sendo, conclui-se que para Bobbio a vontade moral é autônoma, por oposta da vontade jurídica, que seria heterônoma. O autor postula, portanto, que para o Direito não é importante que se cumpra a ação prescrita de forma categórica, mas somente para o fim de satisfazer um interesse pessoal, ou seja, a vontade jurídica não é a vontade de ser lei para si mesma, mas cumprida por medo da punição, isto é, por um móbil, externamente.
1.2.2. Imperativos categóricos e imperativos hipotéticos
Trata-se, segundo Bobbio, do segundo critério de distinção contido de forma não explicita no texto de Kant. À moral destina-se o imperativo categórico; ao direito o imperativo hipotético. São imperativos porque ordenam deveres, diferente das leis da natureza, que regulam os fenômenos naturais, isto é, entre relações causais. Os deveres ocorrem, portanto, a partir da pressuposição da liberdade (BOBBIO, 1997, pg. 64).
Os imperativos categóricos são os que prescrevem uma ação boa por si mesma. Do contrário, os imperativos hipotéticos são os que prescrevem uma ação boa para alcançar determinado fim. Esses imperativos hipotéticos, por sua vez, possuem subespécies segundo o fato possível ou real. Os possíveis são os técnicos. Os reais são os pragmáticos, pois se referem ao agir conforme um bem-estar em geral.
Dessas distinções Bobbio chega à seguinte conclusão (BOBBIO, 1997, pg. 66):
De resto, a dedução pode ser facilmente confirmada logo que pensamos nos dois significados do direito: como legalidade e como liberdade externa. Se o direito coincide com a legalidade, isto significa que um imperativo jurídico não é formulado desta maneira: "Você deve manter as promessas", mas desta outra maneira: "Porque o fato de manter as promessas é vantagem para você, você deve agir em conformidade". Se depois entendemos por obrigação jurídica aquilo que tem como correspondente a faculdade dos outros de me obrigar ao cumprimento, devemos deduzir que a formulação do imperativo jurídico deveria ser feita desta maneira: "Se você quer evitar se constrangido pela força a cumprir as obrigações assumidas, você deve manter as promessa." E com isso ficaria confirmado que comandos categóricos são somente os comandos morais, e que também neste aspecto a esfera da juridicidade se distingue da esfera da moralidade. (Grifo meu)
Por conseguinte, vê-se claramente a tipificação do Direito como um imperativo hipotético técnico, sendo os pressupostos de exterioridade e heteronomia da vontade constitutivos dos deveres jurídicos. [03]
2. Apontamentos ao texto de Bobbio
Como Bobbio não indica a leitura das obras críticas, entende-se que o autor admite a existência de um sistema pós-crítico, isto é, um sistema fundado na própria Metafísica dos Costumes e textos posteriores. Como consequência dessa interpretação, tem-se a separação do Direito do campo da filosofia prática pura. Ou seja, o Direito não faria parte da filosofia moral, mas, destacado desta, pertenceria ao campo dos imperativos hipotéticos técnicos.
Parece ocorrer em Bobbio, em função duma interpretação restrita, uma confusão de conceitos entre ética e moral. Conforme Ricardo Terra (1987, pg. 50-52), a moral deve ser entendida como gênero, sendo a ética e o Direito espécies. Assim observa-se a necessário classificação do Direito, da mesma forma que ética, como parte da filosofia moral de Kant, não como um conceito diverso, como, por exemplo, separado da teoria moral e fundamentado como um imperativo hipotético, não moral. Logo, considerando o Direito como subespécie da moral, as distinções proposta por Bobbio ficam prejudicas. [04]
Por conseguinte, em uma interpretação contrária da de Bobbio, o Direito pertencendo ao campo da filosofia prática, moral, tem-se o jurídico como uma sequência de autorização (uma série de leis permissivas) da razão prática pura. Parte-se, portanto, da crítica prática de Kant. Nas palavras do professor Beckenkamp (2009, pg. 77 e 78):
Reconstituindo a linha de fundamentação do direito como uma seqüência de autorizações da razão prática pura, obtém-se o direito como espécie da moral, ou seja, a doutrina do direito natural como uma das duas partes da filosofia prática ou moral de Kant.
Também segundo Joaquim Salgado, a definição de Direito requer conjuntamente a ideia de uma razão prática, remetendo-se necessariamente às obras críticas do autor, nas palavras de Joaquim Salgado (1986, pg. 280): "O princípio do direito é uma ideia a priori da razão prática, que se mostra como condição da existência da sociedade civil (da vida humana em sociedade), como a liberdade é uma idéia a priori da razão prática postulada apoditicamente, sob pena de se não poder, fundar toda a eticidade, inclusive o direito" Daí, conclui Salgado (1986, pg. 281) "por isso, a definição do direito deve trazer em si o conceito de liberdade e de igualdade, que são elementos constitutivos da idéia de justiça." Assim Salgado define o Direito segundo Kant nos seguintes termos (SALGADO, 1986, pg. 286):
A idéia de justiça aparece como critério de aferição de validade de toda legislação jurídica. Kant não cogita, pois, somente de oferecer um conceito do direito, arrolando as categorias jurídicas principais com vistas ao direito positivo, mas quer justificar, em primeiro lugar e radicalmente, o direito como idéia (idéia como fundamento e não tarefa em primeiro lugar), para, como base na idéia do direito (que é a justiça) desenvolver as suas categorias. (...)
Verifica-se que também Hans Kelsen (2006, pg. 406) peticiona por uma interpretação moral do Direito em Kant. Segundo Kelsen, em nota destinada a Kant, "também a legalidade é um valor moral, pois ela é concordância com normas ‘morais’". Observa-se, assim, que Kelsen requer uma interpretação diversa da de Bobbio, não imputando a Kant uma fundamentação do Direito como imperativo amoral. Assim interpreta que para Kant o Direito é parte da moral, sendo que ela também dispõe sobre o Direito (KELSEN, 2006, pg. 70).
Desta feita, a partir da reconstrução do argumento fundado nas obras críticas de Kant, os critérios de distinção entre direito e moral propostos por Bobbio são, de imediato, prejudicados.
O primeiro critério, quanto à forma da legislação - interna e externa, torna-se inepto. Uma vez incorporado o jurídico à moral, não em razão à eficácia externa do cumprimento pelo poder público, mas somente pela incorporação do jurídico ao moralmente considerado, logo se chega à conclusão de que as regras jurídicas são também imperativos categóricos e, portanto, conforme a legislação interna, ou não somente conforme à exterioridade, mas também à interioridade – as leis jurídicas promulgadas por cidadãos também constituem leis da liberdade formalmente admitidas. [05]
Quanto ao critério da liberdade, externa e interna, conceituar, como faz Bobbio, o Direito como pertencente à liberdade externa e a moral como liberdade interna também constitui um erro terminológico a partir da filosofia prática. O Direito, mesmo externamente considerado, exigirá condições que tornam a coexistência universal possível ao arbítrio dos demais (BECKENKAMP, 2003, pg. 166).
Ainda quanto à interioridade do Direito, Salgado afirma que a ordem coativa do Direito recebe da razão os atributos da interioridade, visto que não se trata de uma ordem coativa qualquer, mas ditada pela razão, segundo o princípio da partilha igual da liberdade de todos os membros da sociedade humana (SALGADO, 1986, pg. 289).
Portanto, visto a razão fornecer os atributos da interioridade, também o direito posto constitui-se como parte da doutrina moral, não sendo, consequentemente, apenas um imperativo hipotético técnico. Conforme Beckenkamp (2003, pg. 171):
A doutrina do direito natural fornece, portanto, os princípios que devem nortear a implementação da exterioridade do direito, sem os quais pode-se muito bem instituir positivamente uma esfera jurídica que não corresponda às exigências da legislação prática da razão. Procedendo a partir da própria razão, a doutrina do direito natural permite estipular, em primeiro lugar, princípios racionais para a interação com outros arbítrios no estado de natureza e, em segundo lugar, princípios de constituição do estado civil, dividindo-se, assim, em duas partes essenciais: "A divisão suprema do direito natural tem de ser aquela entre o direito no estado de natureza e o direito civil, dos quais, o primeiro é chamado o direito privado, o segundo, o direito público." (MS, AA VI, 242)
Nesse mesmo sentido, afirma Salgado (1986, pgs. 283) que Kant desenvolve o seu pensamento afirmando que se a minha ação pode conviver com a liberdade de todos - segundo leis universais ela é justa. Assim conclui Kant, segundo Salgado, que o que constitui um empecilho à liberdade é injusto e que o afastamento desse empecilho é, pela mesma forma, justo. Daí se considera que a coação (própria do Direito) contrária à minha ação justa é um obstáculo à liberdade, exatamente porque não restaura o bem maior do homem e critério definidor do justo, a liberdade. Com isto, mostra Kant o caráter ético da própria coação do Direito.
Quanto ao primeiro critério implícito, a distinção entre autonomia e heteronomia, vê-se que a tese de Bobbio é plenamente contestável. A exigibilidade, para Bobbio, da conduta externa entre os diferentes arbítrios pertenceria ao poder Estatal e, logo, a obediência a uma lei jurídica seria heterônoma. No entanto, conforme o professor Beckenkamp (2009, pg. 79 e 80):
(...) é preciso cuidar para que a doutrina kantiana do direito público seja entendida devidamente como parte do direito natural, estando em questão precisamente as condições sob as quais um Estado pode ser reconhecido como racional, ou seja, como fonte de leis universalmente válidas. Entre essas condições está a de que o povo ou a totalidade dos indivíduos submetidos a um Estado constitua o poder legislador, de tal modo que as leis a que todos têm de se submeter são originárias da vontade de todos, o que define a liberdade jurídica ou externa de cada um: "Minha liberdade externa (jurídica) [...] é a autorização de não obedecer a quaisquer leis externas a não ser àquelas a que eu tenha podido dar minha anuência." (Zum ewigen Frieden, AA VIII, 350 nota).
De tal modo, o professor (Beckenkamp, 2008, pg. 34) conclui: "Nesta medida, mesmo as leis positivas de um Estado constituído são leis da autonomia, e não leis heterônomas" (Grifo meu).
Da mesma forma, o critério implícito de distinção entre moral e Direito, proposto por Bobbio, comparando os imperativos categóricos e hipotéticos também fica inutilizado. Na razão prática pura, para Bobbio, os princípios de Direito puramente racionais seriam estabelecidos pela autorização de fazer ou deixar de fazer algo, isto é, não uma obrigação ou um imperativo. Contudo invertendo-se a ordem, sendo, a partir da razão prática pura o direito uma autorização de impedir a restrição dos outros a mim na execução do que uma lei me autoriza, vê-se que o Direito não é apenas jurídico no sentido do que é posto, mas também, como corresponde a um direito do outro, um dever moral, isto é, um dever que o ser racional admite como máxima da vontade. Nas palavras do professor Beckenkamp (2009, pg. 78):
Para se chegar daí a um imperativo, entretanto, é preciso inverter a relação, uma inversão tornada necessária pela mesma razão prática pura: uma vez que o lícito ou autorizado já traz o selo da racionalidade, impedir os outros na execução do que é lícito constitui para mim um ilícito, estando, portanto, submetido a uma lei obrigatória, de que decorre diretamente o imperativo categórico do direito: "age exteriormente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma lei universal" (MS, AA VI, 231). Em termos mais triviais, a inversão pode ser formulada assim: o meu direito constitui um dever para os outros, o direito dos outros constitui um dever para mim. Esse meu dever é inicialmente um dever jurídico, ou seja, um dever que me pode ser cobrado externamente; mas, como corresponde a um direito do outro que lhe foi conferido pela razão, ele será indiretamente também um dever ético, ou seja, um dever que um ser racional deve admitir como máxima de sua vontade (Grifo meu).
Ou seja, o Direito também deve ser admitido como um imperativo categórico, pois tal é fundado sob normas práticas puras, o que o compreende como uma exigência incondicional da razão prática. E desta feita, torna-se inadmissível a interpretação de Bobbio, intitulada de ‘implícita’, que conceitua o Direito, a par duma filosofia prática, como imperativo hipotético técnico.