RESUMO
Encontra-se atualmente em discussão no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 341/2009, a qual tem como objetivo "retirar do texto constitucional matéria que não é constitucional".
Tal desiderato seria alcançado através da redução dos atuais 250 artigos da parte permanente e 96 da parte transitória para 75 artigos na parte permanente e um único artigo na parte transitória. A versão apresentada em substitutivo reduz o número para 61 na parte permanente e o mesmo artigo único na parte transitória.
Este artigo único da parte transitória seria o agente da desconstitucionalização de parte da atual Constituição, vale dizer, da transformação de diplomas constitucionais em diplomas de valor infraconstitucional, conforme se vê:
Toda matéria suprimida da constituição continuará em vigor até sua substituição pela legislação complementar ou ordinária prevista.Artigo único
Tal tentativa de modificação constitucional causa preocupação pelo seu conteúdo, o qual parece partir de uma idéia atrasada do que seja Constituição, no sentido mais contemporâneo do conceito.
Procuraremos, deste modo, despretensiosa e sem a pretensão de encerrar o assunto – muito pelo contrário, visto que a idéia é apenas iniciar uma discussão – delimitar os problemas que podem ser vistos na idéia (de modo genérico, e não necessariamente com exclusividade desta PEC 341/2009) e procurar apresentar uma possível solução para a questão do ponto de vista jurídico e político.
DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA
Pretendemos observar ao longo deste trabalho que:
a)Aparentemente a passagem de uma Constituição analítica para uma Constituição sintética significaria uma descontinuidade constitucional, no sentido que lhe dá o jurista Gomes Canotilho;
b)há vedações explícitas e implícitas ao que pode ser alterado pelo Poder Constituinte derivado;
c)o conceito de Constituição sintética ou de uma Constituição apegada ao que os proponentes definem como sendo o "conteúdo material da Constituição", composto pelos itens: a estrutura política do poder; as formas de seu exercício; o controle e os direitos e garantias constitucionais; e, como bem frisam, "nada mais", é demasiado limitado, ignorando que vivemos hoje o que já é denominado "A Era dos Direitos", era esta que encontra-se já na terceira (ou, na visão de Paulo Bonavides, na quarta) geração ou dimensão, conforme a terminologia que se queira utilizar.
d)Ainda que não fosse este um modo incorreto de ver a Carta Magna à luz da atual Era dos Direitos, há que se notar que a forma analítica da Constituição foi uma opção política do Poder Constituinte Originário, opção política esta que não pode ser ignorada pelo Poder Constituinte derivado: tal transformação, de uma Constituição Analítica para uma Constituição Sintética, seria uma autêntica ruptura com o ordenamento constitucional vigente, algo a que o atual Congresso Nacional não parece estar, em absoluto, autorizado;
Isto tudo considerado, a idéia é procurar responder, através da pesquisa nos melhores doutrinadores, à pergunta fundamental deste trabalho: é possível, no ordenamento constitucional vigente, passar de uma Constituição analítica para uma Constituição sintética, através de uma emenda constitucional?
A DESCONTINUIDADE CONSTITUCIONAL
CANOTILHO afirma que:
"A distinção entre constituições longas e constituições curtas (breves) não tem qualquer justificação científica. Nos tempos actuais, ela ainda é referida por alguns autores com o fito de criticarem as constituições longas, sistematicamente associadas a constituições programáticas, prolixas, confusas e ideológicas. Pouco ou nenhum interesse apresenta tal dicotomia a não ser, talvez, para se recordarem os dois paradigmas de legiferação constituinte experimentados pelo constitucionalismo. A Constituição dos Estados Unidos tinha apenas sete artigos, com numerosas divisões em secções, faltando-lhe inclusivemente um catálogo de direitos (objecto das primeiras dez emendas aprovadas em 1791 – Bill of Rights). A Constituição francesa de 1795 (a "Constituição do Directório) inaugurou outro paradigma – o paradigma das constituições longas -, pois continha 377 artigos." (grifos do autor no original, exceto pelos sublinhados)
Ou seja, vê-se que a argumentação primeira a justificar a proposta não parece encontrar justificativa científica, visto esbarrar em um par de paradigmas apontados pelo autor, quais sejam, a constituição americana de 1791 e a constituição francesa de 1795: são, ambos, resultados de uma opção política do poder constituinte originário, opção esta que não parece poder ser alterada sem uma descontinuidade constitucional.
Novamente apelamos a Gomes Canotilho para conceituar continuidade e descontinuidade constitucional, desde logo advertindo que utilizaremos as palavras do Mestre apenas para construir uma analogia, visto que o mesmo adverte que tais conceitos são conceitos centrados na continuidade ou na descontinuidade da Constituição formal, ou seja, pressupõem a existência de um Poder Constituinte originário, o que não é o caso em nossa análise:
"O código binário continuidade/descontinuidade aplicado no direito constitucional significa basicamente o seguinte: existe continuidade constitucional quando uma ordem jurídico-constitucional que sucede a outra se reconduz, jurídica e politicamente, à ordem constitucional precedente; fala-se de descontinuidade constitucional quando uma nova ordem constitucional implica uma ruptura com a ordem constitucional anterior. Neste sentido, existirá uma relação de descontinuidade quando uma nova constituição adquiriu efectividade e validade num espaço jurídico sem que para tal se tenham observado os preceitos reguladores de alteração ou revisão da constituição vigente que, assim, deixa de ser, por sua vez, válida e efectiva no mesmo espaço jurídico." (grifos no original, exceto quanto ao sublinhado)
E prossegue, para explicar a diferença entre continuidade e descontinuidade formais e materiais:
"Quando a nova constituição é feita e aprovada sob os esquemas regulativos da "velha" constituição existe continuidade formal; quando o novo texto constitucional postergou os preceitos do "velho" texto quanto ao procedimento de alteração estamos perante a descontinuidade formal.
(...)
A compreensão das rupturas ou descontinuidades constitucionais não se basta com um critério formal. Alguns autores (exemplo: Carl Schmitt) aludem a uma descontinuidade em sentido material quando se verifica uma destruição do antigo poder constituinte e da sua obra (momento desconstituinte) por um novo poder constituinte alicerçado num título legitimatório radicalmente diferente do anterior. Não é suficiente a não observância dos procedimentos formais de revisão ou emenda; é ainda necessário um novo título de legitimação." (grifos no original, exceto quanto aos sublinhados)
Qual a analogia que gostaríamos de construir, a justificar uma tão extensa citação do insigne jurista português? Responder-se-á através das seguintes premissas:
a)do ponto de vista formal, certamente não se está caminhando, ao se propor uma alteração da Constituição analítica para uma Constituição sintética, em qualquer descontinuidade constitucional, vale dizer: o procedimento de alteração do texto é exatamente o previsto na Constituição vigente;
b)porém – e é este o ponto fulcral da argumentação – parece-nos existir uma descontinuidade material no ordenamento constitucional, visto que verifica-se aquilo a que o autor chama de momento desconstituinte (na acepção mais literal do termo, representado pelo citado artigo único da parte transitória da proposta) por um novo poder constituinte alicerçado num título legitimatório radicalmente diferente do anterior, qual seja: o de Poder Constituinte derivado, e não originário.
Isto porque a proposta de "Constituição material" parece-nos criar um novo modelo de Estado: um Estado que não se obriga a assegurar, em sua Norma Fundamental, os direitos sociais, atualmente previstos no art. 7º do texto constitucional; do mesmo modo, que não se obriga a garantir, com segurança constitucional, a chamada Ordem Social, conforme previsto atualmente nos arts. 193 a 232; que não se compromete com o cidadão e contribuinte em garantir, de modo permanente, a regra do não-confisco tributário, atualmente previsto 150, inc. IV da Carta Magna.
Relega isto tudo e muito mais à deliberação infraconstitucional pelo Congresso Nacional; Congresso este que sabemos fraco, corrompido por mensalões, fisiológico, suscetível a pressões de bancadas as mais diversas: da bancada dos bois à bancada da bola, da bancada religiosa à bancada dos bancos... quem teve a oportunidade de acompanhar a recente tramitação da chamada PEC dos Vereadores sabe o quão afeitos são os nossos congressistas às pressões paroquiais e quão pouco afeitos são às pressões populares, à segurança jurídica e ao bom senso...
Parece, porém, esbarrar em algo ainda pior, qual seja: a existência de cláusulas pétreas, conforme estabelecido no art. 60, inc. IV da Constituição Federal. Exemplo concreto disto encontra-se na questão da eliminação do sistema constitucional tributário, particularmente no que diz respeito às suas limitações ao poder de tributar.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a o princípio tributário da anterioridade consiste em direito individual e, logo, cláusula pétrea de nosso ordenamento constitucional, conforme se vê:
"Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição. A Emenda Constitucional n. 3, de 17-3-1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica o art. 150, III, b e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º, art. 60, § 4º, inciso IV e art. 150, III, b da Constituição)." (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 15-12-93, DJ de 18-3-94) (grifamos)
Trata-se este, talvez, do reconhecimento mais explícito pelo guardião maior da Constituição Federal de que aquilo a que chamamos cláusulas constitucionais pétreas, logo, a parte irrevogável da Carta Política, não consiste apenas na literalidade do § 4º do art. 60, mas que, ao contrário, estes estão espraiados por toda a extensão de seu texto.
E trata-se, também, de cláusula irrevogável, em absoluto, da Carta: a prosperar uma emenda constitucional tal como a aqui descrita, necessária será a manutenção do princípio da anterioridade tributária, ali solitário e sem as demais garantias constitucionais ao poder de tributar.
AS VEDAÇÕES IMPLÍCITAS À REFORMA CONSTITUCIONAL
Trabalharemos apenas muito brevemente a respeito das vedações implícitas às alterações constitucionais, visto que entendemos que estas vedações serão subentendidas ao longo de todo o presente trabalho.
A respeito das alterações constitucionais, LOPES (1993) afirma que:
"Há que se pensar ainda na utilidade das reformas constitucionais a fim de que se verifique a harmonia entre estas e os limites. Uma reforma destina-se, no âmbito da rigidez constitucional, a: promover a adequação da Constituição àquilo que exsurge como direito novo e que decorre de uma idéia jusnaturalista de supralegalidade constitucional; prover ao natural sentimento de continuidade do Estado; evitar o rompimento da ordem legal do Estado." (g.n.)
A primeira das vedações implícitas a ser citada é, obviamente, que a Constituição não deve ser descontinuada por emenda constitucional, conforme já descrito em parte específica deste trabalho.
Do mesmo modo, entende-se, conforme Kildare Gonçalves Carvalho, que o poder de revisão é um poder constituído, e deve sempre respeitar a regra de competência, logo, deve respeitar as suas limitações naturais. Como afirma o mesmo doutrinador, "a função do poder constituinte derivado não é elaborar uma nova Constituição, mas defendê-la, garantindo-lhe a identidade e a continuidade como um todo" (GONÇALVES, pg. 313).
A CONSTITUIÇÃO MATERIAL: UM CONCEITO VÁLIDO NA ERA DOS DIREITOS?
Verifica-se que o grande argumento na passagem de uma Constituição sintética para uma Constituição analítica parte do pressuposto de que a Constituição deve tratar exclusivamente dos interesses da formação do Estado ou, como descreve Gomes Canotilho, um "instrumento de governo, ou seja, um texto constitucional limitado à individualização dos órgãos e à definição de competências e procedimentos da acção dos poderes públicos" (CANOTILHO, pg. 217).
Parece-nos que tal pressuposto provém diretamente da distinção feita pelo Direito Romano, o qual consiste na raiz de nossa tradição jurídica, entre Direito Público e Direito Privado, como observa KILDARE GONÇALVES CARVALHO (pg. 01):
"A divisão do Direito entre Público e Privado prende-se à utilidade e à necessidade, sobretudo didáticas, pois, do ponto de vista da ciência jurídica, têm sido falhos, insuficientes e obscuros os critérios distintivos. Não são poucos esses critérios. Analisando-os, destaca-se inicialmente o critério do interesse o da utilidade contido no Direito Romano: o Direito Público versa sobre o modo de ser do Estado; o Privado, sobre o interesse dos particulares. É falho esse critério, porque não há como separar o interesse individual do público, já que ambos se interpenetram." (grifamos)
Outra questão que se põe é a seguinte: existirá ainda hoje uma constituição que seja puramente material, no sentido que se propõe? No dizer de AMARANTE, ainda antes da promulgação da Constituição, referindo-se ao país que é o portador do paradigma da Constituição sintética, qual seja, os Estados Unidos,
"cuja Constituição só se revela sintética, hodiernamente, em seu texto original, porque, em verdade, é ela, apenas, um ponto de referência da ordem constitucional ali vigente, ampliada que foi por múltiplos processos, entre os quais tem relevo o da adaptação interpretativa de suas normas pela sua mais alta Corte de Justiça."
Verifica-se, então, que a Constituição em questão é formalmente sintética, porém sofreu um paulatino processo de ampliação de seu conteúdo material através da interpretação ao longo dos anos.
Tal processo de ampliação tem o condão de conduzir a uma maior estabilidade no ordenamento jurídico nacional: através dela, cidadãos e Poder Público têm sabido, cada vez mais, quais são os seus direitos e quais são os seus deveres, o que é gera mais e mais segurança.
Isto tem ocorrido, frise-se, em um país onde o abuso de poder por parte do Estado já foi descrito como um mal da terra (ALMEIDA, pg. 29); o mesmo autor afirma que o abuso do poder por parte do administrador brasileiro é tão comum que se criou uma psicologia própria e que, para empregar uma metáfora, "de usar o cachimbo, ficou com a boca torta".
Ainda a respeito da Constituição material, afirma LOPES:
"Registra Celso Bastos que a exata delimitação do que seja substancialmente constitucional não nos pode ser fornecida, na sua totalidade, a priori, isto é, de forma desvinculada de uma determinada sociedade política. Muitas vezes, o que é por esta entendida como matéria de extrema relevância, devendo, em conseqüência, figurar no texto maior em uma dada época, deixa de o ser em outro momento histórico. Da mesma forma, sociedades contemporâneas, em razão da adoção de princípios ideológicos diferentes, chegam a conclusões manifestamente diversas no que concerne à classificação de uma matéria como substancialmente constitucional. É o magistério de Lavagna trazido à baila pelo festejado autor antes referido que não existe um critério absoluto para definir aquilo que é constitucional e aquilo que não o é."
Como esperar, então, que uma Constituição puramente "material" possa ser suficiente para proteger o cidadão comum dos arbítrios do Poder Executivo? Ainda que considerando a boa-fé do proponente da emenda constitucional, não é possível se possa crer que, prosperando, não se reviva uma era de arbítrio em nosso País.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, impende reafirmar que não pode, sob pena de grave inconstitucionalidade, o Poder Constituinte derivado privar-nos da opção constitucional originária por uma Constituição analítica e garantidora de direitos; não com o nosso passado de violência e arbítrio estatal, com um Estado voraz, confiscador; não, tal violência não é possível.
Em síntese a tudo o que foi dito, necessário citar, sem o que este trabalho não teria seu fecho, a obra de Konrad Hesse, denominada "A Força Normativa da Constituição". Isto porque a emenda constitucional que ora se propõe nos leva a uma Constituição à la Lassale, na qual preponderariam, pelas características da sociedade em que vivemos, não mais que os chamados, pelo último autor citado, "fatores reais de poder"; no qual a Constituição não seria mais que um pedaço de papel.
Ao contrário, com a Constituição Cidadã que atualmente que temos – ainda que vilipendiada, (r)emendada as mais inúmeras vezes, desrespeitada continuamente – pode-se acreditar que ainda alcançaremos o ideal constitucional preconizado por Hesse:
"Se não quiser permanecer ‘eternamente estéril’, a Constituição – entendida aqui como Constituição jurídica – não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica. Ela não logra produzir nada que já não esteja assente na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Se lhe faltam esses pressupostos, a Constituição não pode emprestar ‘forma e modificação’ à realidade; onde inexiste força a ser despertada – força esta que decorre da natureza das coisas – não pode a Constituição emprestar-lhe direção; se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital. (negritamos)
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Fernando Henrique Mendes de. Observações sobre o Poder Regulamentar e seus Abusos. Revista dos Tribunais 279. p. 28-29.
AMARANTE, Napoleão Xavier do. A Vocação Jurídica para Uma Constituição Analítica. Revista Seqüência n. 13, Curso de Pós-Graduação em Direito – UFSC, jun/1986, pg. 17-29.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, 7ª edição.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 14ª edição rev., atual., e ampl.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Poder Constituinte Reformador: Limites e Possibilidades da Revisão Constitucional Brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.