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O senso de justiça e a sujeição à lei na teoria de John Rawls

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14/11/2009 às 00:00
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3. OBEDIÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À LEI

No que concerne à obediência à lei, na obra de Rawls, tem-se dois referenciais: por um lado, no âmbito internacional, em, O Direito dos Povos, o estudo das diferentes sociedades admitidas pelo autor, e por outro, em, Uma Teoria da Justiça, o estudo do que é uma lei injusta e da desobediência civil.

3.1.1 Povos Liberais (Regime Doméstico)

Rawls considera como povos liberais aquelas sociedades, razoavelmente justas, cujo regime é o democrático constitucional [104]. Estes povos, conforme os compreende Rawls, possuem três características elementares: i) eles têm um governo constitucional razoavelmente justo; ii) possuem afinidades comuns [105]; iii) são possuidores de uma natureza moral [106]. A primeira característica, segundo Rawls, é notadamente, institucional; a segunda é cultural; a terceira, exige uma ligação firme com uma concepção político-moral de direito e justiça.

Outra característica dos povos liberais é que são razoáveis e racionais, como os cidadãos em uma sociedade nacional, e sua conduta racional, enquanto organizada e expressa nas leis e políticas do seu governo, é similarmente limitada pela percepção do que é razoável [107].

Na Sociedade dos Povos, Rawls argumenta que há, paralelamente aos princípios da justiça em uma sociedade democrática, um conteúdo baseado na idéia de razão pública [108]. Distinto, porém, dessa idéia de razão pública, é o ideal da razão pública. Rawls entende que, na Sociedade dos Povos esse ideal é realizado ou satisfeito sempre que juízes, legisladores, executivos e outros funcionários do governo, e candidatos a cargos públicos agem a partir da idéia de razão pública e em conformidade com ela, e explicam aos outros cidadãos as razões para sustentar questões políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que consideram ser a mais razoável. Rawls aduz que, quando assim agem, estas pessoas cumprem o seu dever de civilidade [109]. Os cidadãos, na sociedade nacional, cumprem seu dever de civilidade, e concomitantemente sustentam a idéia de razão pública ao fazerem o que podem para que os juízes e funcionários governamentais a sustentem. O dever de civilidade, para os cidadãos, na Sociedade dos Povos, conforme o entende Rawls, tem um processo similar, isto é, eles devem fazer o que podem para que os juízes e os funcionários do governo sustentem-na em suas práticas e discursos.

3.1.2 Povos Decentes

O termo decente, usado por Rawls para fazer referência a Povos ou Sociedades Decentes em, O Direito dos Povos, descreve sociedades não-liberais cujas instituições cumprem certas condições especificadas de direito e de justiça política e levam seus cidadãos a honrar um Direito razoavelmente justo no entendimento e parâmetros da Sociedade dos Povos. Esses povos, segundo o autor, possuem na estrutura básica o que ele chama de uma "hierarquia de consulta decente" [110], o que faz com que seus membros participem efetivamente, em termos de decisão, na definição dos rumos da política no seio destas sociedades.

Neste sentido, conforme a argumentação de Rawls, a

"(...) estrutura básica (das sociedades decentes) deve incluir uma família de corpos representativos cujo papel na hierarquia seja participar de um processo de consulta estabelecido e cuidar daquilo que a idéia do bem comum de um povo considera como os interesses importantes de todos os membros do povo" [111].

Neste aspecto, os membros dessas sociedades, na vida pública, são reconhecidamente membros de grupos diferentes. Assim, no entender de Rawls, com vistas à efetivação desse direito que cada cidadão tem de participar nas decisões políticas, cada grupo é representado no sistema jurídico por um corpo numa hierarquia de consulta decente.

Rawls elenca dois critérios a partir dos quais especifica as condições para que uma sociedade hierárquica decente, como ele as chama, seja um membro de boa reputação da Sociedade dos Povos [112]. Este primeiro critério elaborado por Rawls especifica que a sociedade hierárquica decente não tem objetivos agressivos e reconhece que deve alcançar seus fins legítimos mediante a diplomacia, o comércio e outros caminhos pacíficos. Ela respeita a ordem política e social de outras sociedades embora sua doutrina subjacente seja tida como abrangente dentro e com influência sobre a estrutura de governo e da sua política social. Assim, se busca maior influência, ela fará isso de maneira compatível com a independência de outras sociedades [113]. No tocante ao objetivo deste trabalho, o segundo critério tem mais relevância. Este critério tem três partes, assim estabelecidas por Rawls:

A primeira parte é que o sistema de Direito de um povo hierárquico decente, em conformidade com a sua idéia de justiça do bem comum (...), assegura a todos os membros do povo aquilo que veio a ser chamado direitos humanos. Um sistema social que viola esses direitos não pode especificar um esquema decente de cooperação política e social [114]

Do exposto, nota-se que, estando em conformidade com a idéia de justiça do bem comum [115] de cada povo, o conjunto daquilo que é chamado direitos humanos [116] ocupa um lugar central no sistema de Direito destas sociedades. É por esta idéia de justiça do bem comum nestas sociedades hierarquicamente decentes que se atribui direitos humanos a todos os membros [117]. O significado dessa idéia de bem comum é mais claro distinguindo-a, num lado, do objetivo comum de um povo [118], e insistindo, do outro lado, em que o sistema jurídico decente deve conter uma hierarquia de consulta decente.

Os direitos humanos, para Rawls, estabelecem um padrão necessário mas não suficiente para a decência das instituições políticas e sociais. Eles limitam o Direito nacional admissível da sociedade com boa reputação em uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Além do que, os direitos humanos, como classe especial de direitos, têm, na Sociedade dos Povos, três papéis: i) seu cumprimento é condição necessária da decência de instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica; ii) seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva de outros povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas; iii) eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos [119]

Além disso, Rawls os compreende como tendo duas características, quais sejam: a primeira é vê-los como pertencentes a uma concepção de justiça política liberal e como um subconjunto dos direitos e liberdades assegurados a todos os cidadãos livres e iguais num regime democrático liberal constitucional, ao passo que a segunda, é vê-los como pertencentes a uma forma associativa a qual vê as pessoas, primeiro, como membros de grupos e, somente então, como sujeitos de direitos e liberdades que as capacitam a cumprir seus direitos e obrigações e a participar de um sistema decente de cooperação social. Nesse sentido, aquilo que é chamado de direitos humanos veio a ser condição necessária de qualquer sistema de cooperação social [120].

Entre os direitos humanos, Rawls lista prementemente os seguintes, a saber: o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade formal expressa pelas regras de justiça natural – que ordena que casos similares devem ser tratados de maneira similar. [121]

A segunda parte do segundo critério de participação de sociedades hierárquicas decentes na Sociedade dos Povos, é enunciada por Rawls da seguinte forma:

[O] sistema de Direito de um povo decente deve ser tal que imponha deveres e obrigações morais (distintos dos direitos humanos) bona fide a todas as pessoas dentro do respectivo território. Como os membros do povo são considerados decentes e racionais, assim como capazes de desempenhar um papel na vida social, eles reconhecem que esses deveres e obrigações ajustam-se à sua idéia de justiça do bem comum e não vêem seus deveres e obrigações como meros comandos impostos mediante a força. Têm a capacidade do aprendizado moral e sabem a diferença entre o certo e o errado tal como compreendidos na sua sociedade. [122]

Ora, a questão que está implícita nesta argumentação de Rawls, é que numa sociedade que outorgue aos seus membros o direito de participação nas questões fundamentais da política, por exemplo, através da hierarquia de consulta decente, os deveres e obrigações, que têm implicações morais, isto é, devem ser levados seriamente, são oriundos da justiça do bem comum subjacente à essa sociedade. Os cidadãos dessas sociedades, segundo Rawls, como pessoas decentes e racionais, têm a capacidade do aprendizado moral [123] tal como reconhecida na sua sociedade, mesmo que não sejam consideradas como cidadãos livres e iguais e nem como indivíduos que mereçam representação. Assim, podem reconhecer quando, como membros responsáveis, seus deveres e obrigações morais conformam-se à idéia de justiça do bem comum do povo – visto que cada pessoa pertence a um grupo representado por um corpo na hierarquia de consulta, e cada pessoa participa de atividades distintas e desempenha certo papel no esquema geral de cooperação [124]. Além disso, a concepção de pessoas dessas sociedades, conforme o aduz Rawls, não implica a aceitação de que elas, primeiro, são cidadãs e têm direitos básicos iguais como cidadãos iguais. Tais sociedades, antes, compreendem "as pessoas como membros responsáveis e cooperativos dos seus grupos respectivos". [125]

A terceira parte do segundo critério de participação das sociedades hierárquicas decentes na Sociedade dos Povos, por fim, é exposta da seguinte maneira:

Finalmente, [...] deve haver uma crença sincera e não irrazoável, da parte dos juízes e outros funcionários que administram o sistema jurídico, de que a lei é realmente guiada por uma idéia de justiça do bem comum. Leis sustentadas pela força somente são motivos à rebelião e à resistência. [126]

Neste sentido, Rawls argumenta que é irrazoável, se não irracional, os juízes e outros funcionários do governo pensarem que a idéia da justiça do bem comum está sendo seguida, se os direitos humanos atribuídos por ela a todos os membros são violados repetidamente. Além disso, a crença sincera e não irrazoável dos juízes e de outros funcionários, para Rawls, deve ser refletida na sua boa-fé e disposição para defender publicamente as injunções da sociedade como justificadas pelo Direito, sendo os próprios tribunais fórum para esta defesa.

Outrossim, é que uma hierarquia de consulta decente, nas decisões políticas, permite que as diferentes vozes sejam ouvidas adequadamente, em vista de valores religiosos e filosóficos da sociedade, como expressos na sua idéia de bem comum. Rawls entende que as pessoas, em algum ponto da consulta, como membros de "instituições", têm o direito de expressar dissidência política, e, o governo, a obrigação de considerar, com seriedade a dissidência de um grupo e oferecer resposta conscienciosa – visto que deve existir, além de uma crença sincera da parte dos juízes e outros oficiais na justiça do sistema jurídico, a admissão por parte destes, da possibilidade de dissidência: eles devem estar disponíveis às objeções, e não podem recusar-se a ouvir, porque daí tal regime seria de um governo paternalista. À esta resposta, os dissidentes têm o direito de não aceitarem, renovando sua dissidência, explicando, por conseguinte, o porquê de tal, o que impõe a necessidade de uma resposta adicional ainda mais completa. Rawls entende que a dissidência expressa uma forma de protesto público e permissível, desde que permaneça dentro da estrutura básica da idéia de justiça do bem comum [127].

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3.1.3 Povos Fora-da-Lei (Outlaw States)

A terceira sociedade admitida em, O Direito dos Povos, é aquela denominada Estado Fora-da-Lei, ou, na expressão rawlsiana original, Outlaw States. Estas sociedades compreendem aquelas que se recusam a aquiescer a um Direito dos Povos razoável [128].

Como anteriormente referido, o arrolamento dos direito humanos, para o filósofo americano, é intrínseco ao Direito dos Povos e têm um efeito, em sentido moral, sendo ou não sustentados localmente. Rawls compreende que a sua força política estende-se a todas as sociedades e eles são obrigatórios para todos os povos e sociedades, inclusive, para os Estados Fora-da-Lei. Um Estado Fora-da-Lei que viola esses direitos deve ser condenado a ponto de, em casos graves, ser sujeitado a sanções coercitivas e mesmo à intervenção [129].

Os direitos humanos são como um subconjunto adequado de direitos possuídos pelos cidadãos em um regime democrático constitucional liberal ou dos direitos dos membros de uma sociedade hierárquica decente – e esses povos, no Direito dos Povos, tal como os povos liberais e decentes, não toleram os Estados Fora-da-Lei. A recusa da parte destas sociedades em tolerar tais Estados é conseqüência do liberalismo e da decência visto que tais Estados são agressivos e perigosos, isto é, neles há a violação dos direitos humanos em sua estrutura básica [130].

3.1.4 Sociedades Oneradas

As Sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, ou sociedades oneradas, são aquelas submetidas a condições históricas, sociais e econômicas as quais tornam difícil, se não impossível, alcançar um regime bem-ordenado, liberal ou decente [131]. Estas sociedades estiveram, durante tempo significativo, expostas a condições desfavoráveis, o que torna difícil um regime aceitável na Sociedade dos Povos. Rawls propõe-se inquirir até que ponto as sociedades bem-ordenadas, isto é, as sociedades liberais e decentes devem tolerar e, inclusive, ajudar tais sociedades.

Embora estas sociedades não sejam expansionistas e nem agressivas, no entender de Rawls, elas carecem de tradições políticas e culturais, de capital humano e conhecimento técnico e, muitas vezes, dos recursos materiais e tecnológicos necessários para que sejam bem ordenadas. Segundo o filósofo, os povos bem-ordenados têm um dever de assistir às sociedades oneradas [132], e essa assistência não é em sentido econômico. Embora o aspecto econômico seja relevante, uma sociedade com poucos recursos naturais e pouca riqueza pode ser bem ordenada se as suas tradições políticas, sua lei e sua estrutura de propriedade e classe, juntamente com as crenças morais e religiosas e a cultura subjacentes, são tais que sustentem uma sociedade liberal ou decente [133].

Tendo em vista o dever de assistência dos povos bem-ordenados para com as sociedades oneradas, Rawls elabora três diretrizes para este dever. De acordo com a primeira diretriz, uma sociedade, para ser bem ordenada, não precisa ser rica. Com o intuito de corroborar esta assertiva, Rawls evoca três princípios elementares do princípio de "poupança justa". Primeiro, o propósito do princípio de poupança justa é estabelecer instituições básicas justas para uma sociedade democrática constitucional livre (ou qualquer sociedade bem-ordenada) e assegurar um mundo social que torne possível uma sociedade digna para todos os seus cidadãos; segundo, a poupança pode parar assim que as instituições básicas justas tenham sido estabelecidas; e terceiro, a grande riqueza não é necessária para estabelecer instituições justas. Diferentemente de elevar o nível de riqueza, o objetivo deste dever de assistência é concretizar e preservar instituições justas ou decentes [134].

A segunda diretriz é voltada à cultura política das sociedades oneradas. A cultura política destas sociedades, afirma Rawls, é de suma importância. Todavia, enfatiza o autor, não existe nenhuma receita para que os povos bem-ordenados ajudem uma sociedade onerada a mudar sua cultura política. Uma possibilidade levantada pelo autor é a de que dar ênfase sobre os direitos humanos pode ajudar regimes ineficazes e a conduta dos governantes que foram insensíveis ao bem-estar de seu próprio povo pode ajudar tais sociedades a sair de tal situação, porquanto estes direito elementares pertencem às instituições e práticas comuns de todas as sociedades liberais e decentes [135].

Por fim, a terceira diretriz para executar o dever de assistência é que seu objetivo seja mudar as sociedades oneradas, para que sejam capazes de gerir os seus próprios negócios de um modo razoável e racional, e por fim, tornarem-se membros da sociedade dos povos bem-ordenados [136]

3.1.5 Absolutismo Benevolente

As sociedades sob a insígnia de absolutismos benevolentes são, para Rawls, aquelas que honram os direitos humanos, mas em função de negarem a seus membros um significativo papel nas decisões políticas, não são consideradas bem-ordenadas [137].

Apesar de não serem sociedades bem-ordenadas, Rawls estatui que elas têm o direito à autodefesa. Um absolutismo benevolente não é uma sociedade bem-ordenada por não oferecer aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas – embora respeite e honre os direitos humanos. Em, O Direito dos Povos, para Rawls, qualquer sociedade que não seja agressiva e honre os direitos humanos tem o direito de autodefesa [138].

3.2 A Obediência à uma Lei Injusta e a Desobediência Civil

Na teoria rawlsiana, uma lei injusta é aquela que não está de acordo com as enunciações e implicações provenientes dos princípios da justiça, os quais estão na base do estabelecimento de todos os deveres e obrigações. Mas, para o filósofo, o fato de uma lei ser injusta não é motivo e razão suficiente e justo para deixar de obedecê-la.

3.2.1 A Injustiça de uma Lei

A discussão sobre a obediência, ou não, a uma lei injusta, na teoria rawlsiana, é situada, principalmente, no § 53, da obra, Uma Teoria da Justiça. Nesta passagem, Rawls afirma que a questão relevante consiste em saber em quais circunstâncias e em que medida somos obrigados a obedecer ordenações injustas. A elaboração teórica de tal indagação parte da pressuposição de que é claro que o nosso dever e obrigação de aceitar ordenações concretas pode ser sobrepujado, em certas ocasiões, por exigências que dependem do conceito de justo e que, consideradas todas as circunstâncias, podem justificar a não obediência, em certos momentos, a uma lei injusta.

A injustiça de uma lei e, igualmente, de uma política, para Rawls, pode surgir de dois modos: num, as leis, em grau diverso, podem afastar-se dos padrões de justiça publicamente aceitos; noutro, essas leis podem conformar-se com a definição de justiça de uma sociedade ou de uma classe dominante, que pode não ser razoável em si mesma, em virtude de algumas concepções serem mais ou menos razoáveis que outras [139]. Entretanto, para Rawls, a construção dessa teoria funcional baseada nestes dois modos pelos quais uma lei torna-se injusta é complexa, no sentido de que, inicialmente, quando as leis afastam-se dos padrões publicamente reconhecidos é pensável que se recorra ao senso de justiça da sociedade – para o caso da desobediência – e, num outro caso, se deve discutir por que temos o dever de obedecer a leis injustas.

Para Rawls, o dever de justiça e o princípio da eqüidade pressupõem que as instituições sejam justas. Mas isso não é suficiente. É preciso, para a elaboração de uma teoria que se esclareça o porquê de se obedecer uma lei que seja injusta. Assim, Rawls postula que possa existir uma sociedade na qual o sistema social seja bem ordenado, sem apresentar uma ordenação perfeita, isto é, uma sociedade quase justa na qual exista um regime constitucional viável que satisfaça o princípio da justiça.

Rawls entende, também, que a constituição é vista como um procedimento justo, porém imperfeito visto que não há como garantir, mediante procedimentos políticos factíveis, que as leis hão de ser justas. Nas atividades políticas, prossegue o filósofo, é impossível atingir uma justiça procedimental perfeita. No pensamento de Rawls, numa sociedade cujo regime político interno seja de quase justiça, os cidadãos têm o dever de acatar ordenações e políticas injustas em virtude do dever natural de apoiar instituições justas.

Além disso, há o problema da instabilidade, latente nesta discussão levada a efeito por Rawls em torno do dever de obediência, tendo em vista que o dever natural mais elementar e fundamental, a partir da teoria da justiça, é o de apoiar e promover as instituições justas. Isto é, há o risco, no caso da não obediência a certas ordenações injustas, de se incorrer na geração da instabilidade das instituições. Para promover a estabilidade das instituições, é preciso, em certos casos, obedecer certas ordenações injustas. A estabilidade das instituições justas, no contexto de, Uma Teoria da Justiça, é simplesmente fruto do estímulo da aceitação da exigência de apoio e acatamento destas instituições. Tal estabilidade é ameaçada, fundamentalmente, por duas posturas, quais sejam: a postura egoísta, e a desconfiança da lealdade alheia.

Deste modo, tendo em vista que o objetivo dos cidadãos é barganhar benefícios para si isto é, cada cidadão vivendo em sociedade, compreendendo-a como um sistema de cooperação social, procura por meio desta, através da cooperação social entre pessoas livres e iguais haurir benefícios para si – cada cidadão tem o dever de acatar e obedecer instituições, políticas e leis injustas em vista da manutenção desta sociedade.

3.2.2 Definição da Desobediência Civil

Rawls alerta que uma teoria acerca da desobediência civil [140] deve, antes de tudo, definir o âmbito dentro do qual situa-se e que identificar, igualmente, as considerações que são, de fato, pertinentes.

Para o filósofo, a desobediência é iniciada com um público cujos constitutivos principais são a não-violência e a consciência no sentido de que propõe uma mudança na lei. O ato de protesto configurante da desobediência civil não viola necessariamente a mesma lei contra a qual se protesta. Há, para Rawls, uma distinção entre a desobediência civil direta e indireta. Além disso, Rawls entende literalmente que a desobediência civil é um ato contrário à lei, e que os envolvidos, mesmo considerando que uma lei protestada seja mantida, estão preparados para opor-se a ela. [141]

A desobediência civil, observa Rawls, é um ato político [142]. Assim o é porque orienta-se e justifica-se por princípios embasadamente políticos, isto é, aqueles princípios reguladores da constituição e das instituições sociais. Nota-se que o autor compreende, no Uma Teoria da Justiça, que a concepção de justiça, comumente partilhada, subjaz à ordem política. Há presunção, por parte do autor, de que haja uma concepção pública de justiça. Ora, é a partir desta concepção que, numa sociedade razoavelmente democrática, os indivíduos regulam suas atividades políticas e interpretam sua constituição, de modo que a violação contínua e deliberada dos princípios básicos dessa concepção por um longo tempo incita, ou à submissão, ou à resistência.

A desobediência civil é um ato público [143], no sentido estrito do termo, ou seja, ela é feita em público, sendo comparada, pelo filósofo, ao ato de falar em público. Por conta disso, é caracterizada como uma ação que não violenta, sendo esta incompatível com a noção de apelo público latente em si. Há, para Rawls, uma outra razão pela qual a desobediência civil é considerada uma ação não violenta [144]: ela expressa uma desobediência à lei dentro dos limites da fidelidade à lei (essa fidelidade é expressa pela natureza pública e não violenta do ato), embora seja situada na margem externa da legalidade. Ou seja, é a fidelidade à lei que move a desobediência.

Portanto, resulta que a desobediência civil, numa sociedade bem-ordenada, é definida por Rawls como uma forma de protesto nos limites da fidelidade à lei, sendo, nesta perspectiva, distinta, por um lado, da objeção de consciência, e por outro, da própria ação armada.

3.2.3 Justificação da Desobediência Civil

Em sua argumentação acerca da justificação da desobediência civil, na qual Rawls não menciona o princípio da eqüidade, mas somente o dever natural de justiça, base primeira dos vínculos políticos com um regime constitucional, Rawls esclarece que esta reserva-se aos limites internos de um estado democrático, isto é, é restrita às injustiças internas – entendendo aqui que estas são promovidas por suas instituições –, de uma sociedade bem-ordenada.

Para o autor, há três pressupostos, que são condições a partir das quais elabora-se uma justificação da desobediência civil. A primeira condição pressuposta concerne à injustiça, a qual constitui o objeto da desobediência civil. Rawls considera, como acima apontado, que a desobediência civil é um ato político, dirigido ao senso de justiça razoável da comunidade. Ela deve ser restringida a casos de injustiça evidente, sobretudo, à violação do princípio da liberdade igual, uma vez que este define o status comum da cidadania igual dentro de um regime constitucional. Dessa maneira, Rawls exclui da desobediência civil as violações ao princípio da diferença, posto que suas infrações são mais difíceis de serem verificadas em razão de o princípio ser aplicado a práticas e instituições sociais e econômicas. A despeito disso, argumenta o filósofo, é melhor deixar a resolução dessas questões ao processo político – desde que as liberdades iguais necessárias estejam preservadas.

A segunda condição imposta por Rawls diz respeito à suposição de que os apelos normais dirigidos à maioria política já foram feitos de boa-fé e não obtiveram êxito, mostrando-se os meios legais evidentemente inúteis. Nos casos em que a desobediência civil é o último recurso, pondera Rawls, deve-se ter certeza de que ela é factualmente necessária. De fato, na perspectiva rawlsiana, só se encontra a segunda condição se houver comprovadamente necessidade da desobediência civil. Caso não haja, não se a tem.

A última condição se configura, para Rawls, no sentido de que em certas ocasiões o dever natural de justiça [145] pode exigir uma determinada restrição, qual seja, o problema das minorias. Entende o filósofo que tal problema se coloca quando minorias, durante certo tempo, sofrem graus de injustiça e, por esta razão, alicerçadas nas condições referidas anteriormente, têm razão para a prática da desobediência civil. Rawls reconhece que pode haver uma situação na qual diversas minorias tenham, comprovada e evidentemente, razão para a prática da desobediência civil. Isso pode gerar, no seio desta sociedade quase justa, uma grave desordem, e esta poderia minar a eficácia da constituição justa. Assim, a solução ideal, no entender de Rawls é um acordo de cooperação política entre as minorias, o qual objetiva regular o nível total, nesta sociedade, de desarmonia, sob pena de, se assim não for feito, gerar-se um dano permanente na constituição conforme à qual tais cidadãos têm um dever natural de justiça.

O autor considera ainda, à luz dessas três condições, se é sensato e prudente exercer o direito à desobediência civil tendo em vista que, num estado de quase justiça, é improvável que se reprima a dissensão legítima de modo vindicativo, mas é importante que a ação seja concebida de forma adequada para exercer um apelo efetivo sobre a comunidade mais ampla.

3.2.4 Papel da Desobediência Civil

Por fim, Rawls esclarece o papel da desobediência civil no âmbito de um sistema constitucional e mostra sua ligação com o governo democrático, supondo que a sociedade em questão é, como vinha fazendo, quase justa e que os princípios da justiça são, em sua maior parte, reconhecidos como termos básicos da cooperação voluntária entre pessoas livres e iguais.

O que Rawls pretende é deixar claro que, pela prática da desobediência civil, um cidadão apela ao senso de justiça da maioria com o intuito de tornar público, no tocante à pessoa, que as condições de cooperação livre estão sendo violadas. Disso, tem-se que, numa sociedade bem-ordenada, na qual as instituições são injustas, apesar de imperfeitas, os cidadãos quando são lesados comprovadamente, a partir das condições anteriormente especificadas, não precisam obedecer às leis que lhes ferem porque, segundo Rawls, a desobediência civil é um recurso estabilizador de um sistema constitucional, embora, como afirma o próprio Rawls, seja por definição ilegal. A desobediência civil, com a devida moderação e o critério justo, auxilia a manter e a reforçar as instituições justas visto que, restituindo à injustiça dentro dos limites da fidelidade à lei, ela serve para prevenir desvios da rota da justiça e para corrigi-los quando acontecem.

Rawls alerta que o recurso à desobediência civil, mesmo repousando unicamente sobre uma concepção de justiça que caracteriza a sociedade democrática, sendo, assim, parte da teoria do governo livre, acarreta riscos evidentes. Assim, argumenta Rawls, uma das razões de ser das formas constitucionais e de suas interpretações judiciais é a de estabelecer uma interpretação pública da concepção política da justiça e uma explicação da aplicação de seus princípios para as questões sociais.

O filósofo é convicto de que, tendo em mente os possíveis desvios que uma lei possa ter da concepção pública do justo compartilhada pelos cidadãos numa sociedade bem-ordenada, é mais relevante que a lei e suas interpretações sejam estabelecidas do que o fato de serem estabelecidas corretamente. Cada cidadão, a partir da perspectiva rawlsiana, é considerado autônomo e responsável por aquilo que faz, isto é, numa sociedade democrática se sabe reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Entretanto, tal fato não significa que a decisão da prática da desobediência civil seja como lhe aprouver. O filósofo entende que, para agir de modo autônomo e responsável, o cidadão deve observar os princípios que embasam e orientam a interpretação da constituição, vendo como esses princípios deveriam ser aplicados concretamente. Caso comprove a necessidade e a justificação da desobediência civil, isto é, quando as circunstâncias assim colocarem-se, sua prática será consciente e, portanto, de acordo com a teoria da desobediência civil.

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Sobre o autor
Marcos Rohling

Professor da Rde Pública de Ensino de São José, Santa Catarina, Graduado em filosofia, pela UFSC, graduando em Direito, pela UNISUL, e mestrando em´Ética e Filosofia Política pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROHLING, Marcos. O senso de justiça e a sujeição à lei na teoria de John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2327, 14 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13863. Acesso em: 5 out. 2024.

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