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Nós e a Alemanha

17/11/2009 às 00:00
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A relação do Brasil com a Alemanha, em especial no campo do Direito, nunca foi corretamente equacionada ou mesmo adequadamente estudada.

Parece absurdo, dada a importância que, inegavelmente, tiveram e têm, no pensamento jurídico pátrio, pensadores e juristas germanófilos e germanófonos.

Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda são apenas alguns dos jusfilósofos, legisladores e doutrinadores germanizados que construíram o Direito brasileiro com suas ideias, leis, manuais.

Parece, e é absurdo. Basta alguém tentar estudar ou discorrer sobre o tema para perceber que, se quiser de fato aprender algo sobre estes homens, terá de sair do campo do estritamente jurídico. Será preciso recorrer a historiadores, literatos, e críticos culturais. Historiadores do Direito, nem pensar.

Aliás, existe atualmente algo como "Juristória" ou "Juristoriadores"? Este é um daqueles campos de estudo em que existem apenas grandes mestres solitários, como Raymundo Faoro ou Nelson Saldanha. Mestres sem discípulos.

Felizmente, existem também os que, como Gilberto Freyre, não deixam assunto de tamanha importância e riqueza cultural passar em branco. Num ensaio sobre o tema, ele afirma [1]:

Sabe-se que, em nossos dias, um dos maiores juristas-sociólogos brasileiros - Pontes de Miranda - é intelectual marcado por influências recebidas da Alemanha: de juristas, de sociólogos, de pensadores alemães. O mesmo é certo, entre nós, de um Fróes da Fonseca, de um Pinto Ferreira, de um Gláucio Veiga, de um Gonçalves de Mello, de um Newton Sucupira, quase todos professores ilustres da Universidade Federal de Pernambuco.

(...)

O elemento germânico na formação cultural do Brasil continua, sob vários aspectos, assunto virgem para sociólogos brasileiros da Cultura, da Arte, das Letras. (...) Felizmente alguns desses aspectos vêm sendo estudados com minúcia e em profundidade para o que não há exagero em dizer-se que vêm concorrendo os colóquios de estudos teuto-brasileiros.

Cito um livro publicado nos anos 70, que é uma coletânea de ensaios. Fiz menção, acima, ao artigo "A propósito de Colóquios de estudos teutobrasileiros", cuja data precisa não pude apurar, mas que decerto precede, e bastante, a data de publicação da obra que o contém.

Triste pensar que este capítulo essencial da História do Direito brasileiro reste hoje tal e qual. Se algo mudou, foi para pior. Pois os "colóquios teutobrasileiros" de que trata o grande intelectual pernambucano resumem-se, na atualidade, a espetáculos de mistificação.

Explico-me. Não se vê falar, mesmo quando se analisa a influência de grandes autores germanófonos no Brasil, como Savigny, Kelsen, Larenz, numa necessária distinção entre as sutilezas que cada um possui, per se e quando de sua introdução na pátria.

Kelsen e Savigny, por exemplo, nasceram em locais que hoje não mais confeririam cidadania alemã: o primeiro em Praga; o segundo é nativo da célebre região da Alsácia-Lorena, hoje pertencente à França. Kelsen era judeu, e teve de se exilar nos EUA quando da ascensão de Hitler; é um kantiano, filosoficamente denso e pródigo em construções lógicas quase impecáveis. Savigny foi um romântico, um historicista com profundas crenças na existência de uma cultura dotada de traços capazes de manter unido um povo então ainda desagregado politicamente, além de polemista brilhante, - apesar de ter sido derrotado nas mais famosas de que participou (contra Thibaut a respeito da codificação do direito; contra Ihering sobre a natureza jurídica da posse).

Ademais, há de se considerar que a "Alemanha" que eles representam não é um bloco monolítico ou monocromático. FREYRE, por exemplo, diria que há que se considerar "duas alemanhas" [2]:

(..) a imperial Alemanha - dura, arrogante, militarista, prussianizada, certa de sua superioridade étnica; (...) [e] a outra Alemanha: a docemente lírica, a sonhadora, a goetheana, a beethoveana, a universalista, a artística, a sábia, a douta, a mestra, a do vinho, a dos castelos no Reno, e das igrejas da Baviera.

Apesar da percepção do Mestre de Apipucos, cuida-se de uma visão, talvez, algo simplória. E há ainda que se considerar que, em nosso tempo, existiram, literalmente, "duas Alemanhas", o que pode tornar equívoca a expressão.

Existem mais do que "duas Alemanhas", mas o ponto de FREYRE é que, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial, que enterrou quase que definitivamente a "Alemanha Imperial", coexistiam, nem tão harmonicamente assim, mais de uma tradição que poderia arrogar-se o título de representante típica da alma teuta.

Essas tradições, em sua luta pela supremacia, aportaram no Brasil e aqui foram acolhidas e devidamente "temperadas" sob o sol tropical, com pitadas de azeite de dendê e leite de coco.

Quando se fala hoje em influência alemã no Direito, em especial no Direito Constitucional, é esquecido que o Brasil tem uma longa, secular história de diálogo com a Alemanha. Diálogo que remonta à grande influência de "germanizados e germanizantes", responsáveis pela "revolução teuto-recifense", como "Tobias Barreto e Sylvio Romero (...), Martins Júnior e Clóvis Bevilaqua. A influência germânica terá dado, de comum a todos, um toque científico, ou neocientífico além de neofilosófico, à sua erudição ou aos seus saberes." [3]

Influência germânica que, embora esquecida, pode ser detectada na pompa, na seriedade e na carranca séria e introspectiva de alguns de nossos juristas e autoridades, alguns até em altos postos do Judiciário brasileiro. Influência esta que, segundo FREYRE [4]:

Com a chamada Escola do Recife firmou-se, com efeito, no Brasil, com variantes nada desprezíveis, um tipo meio germânico de erudito-científico (...)

Tipo meio germânico e meio excêntrico, capaz de ignorar que nem todos são falantes fluentes desta estranha língua, e salpicam seus textos, doutrinários e decisórios de termos e conceitos tedescos. Às vezes sem traduzi-los.

Quando digo que os atuais "colóquios teuto-brasileiros" são mistificadores, quero dizer que ignoram ou esquecem, talvez muito convenientemente, os bravos pioneiros da Escola do Recife. A conveniência estaria no fato de que, ao contrário do que ocorre hodiernamente, o germanismo de outrora não se configurava num movimento dotado de uma cartilha com claros objetivos - ou, pelo menos, claras ações - de cunho político [5]:

O germanismo de caráter intelectual nunca se constituiu, no Recife - ou no Brasil - numa rígida seita projetada, pelos seus objetivos, sobre a política ou a cultura nacional - o caso, entre nós, e no México e, até certo ponto, no Chile, do Positivismo comteano - nem tomou aspecto de afirmação de seita a reação que se ergueu contra o mesmo germanismo da parte dos velhos do Recife impregnados de latinidade e alguns afrancesados até à alma.

O germanismo atual não só atua politicamente, como adquire, cada vez mais, ares de seita intelectual, com suas sumas autoridades, com seu inegável proselitismo, tudo feito num ambiente que lhe concede as graças da respeitabilidade acadêmica.

Uma coisa, porém, há em comum com a Escola do Recife, que vem a robustecer a tese da mistificação deliberada. E é exatamente a incompreensão essencial das coisas alemãs. A esse respeito, atente-se para a curiosíssima indiscrição de FREYRE, quando, na obra que mencionei, confidencia o que teria ouvido acerca de um encontro ocorrido entre Tobias Barreto, o germanófilo tupiniquim por definição, e a comitiva do Príncipe Henrique, herdeiro do trono austro-húngaro, que numa viagem ao redor do mundo, passou pelo Recife em 1883 [6]:

(...) sempre que Tobias Barreto dirigia-se em língua alemã ao Príncipe Henrique, Sua Alteza se mostrava embaraçado: faziam-se então necessários os préstimos de um intérprete ou tradutor. O que parece é que o insigne autor de Estudos Alemães, concordando em ser o único brasileiro na comitiva que acompanhou, ao interior de Pernambuco, aquele príncipe prussiano, não conseguiu, pelo seu semidomínio - aliás, admirável - de autodidata, sobre a língua alemã, integrar-se de todo, linguisticamente, naquele grupo maciçamente, quase imperialisticamente, germânico em excursão pelos canaviais pernambucanos.

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Esta pequena anedota trai a incompreensão fundamental dos brasileiros face à Alemanha, tal como foi notada, em 1936, por aquele que talvez seja o mais sardônico de todos os brazilianists: Ernest Hambloch.

Hambloch, que foi cônsul britânico no Brasil, e por aqui morou várias décadas, anotou - em obra polêmica que lhe rendeu a expulsão do país –, como, nos anos 30, Hitler tinha muito mais apelo que Mussolini na direita brasileira [7]:

Eles [os brasileiros] podem imaginar as águas turvas do regime fascista num país latino. Mas a linguagem difícil e as diferenças etnológicas tornam o nazismo antes um fenômeno remoto, que leva alguns brasileiros a flertar com ele especulativamente.

Linguagem difícil, mal compreendida mesmo pelos que aqui melhor representavam as letras e o ideário germânico. No entanto – ou talvez exatamente por isso - presta-se muito bem, como "o latim em outros séculos", ao status e à função de "língua litúrgica, língua dos textos de Kelsen, hieraticamente reverenciados" [8].

O germanismo atual empregaria, assim, a Alemanha como uma espécie de lugar mítico, como um instrumento ideológico e político. Eles não entendem, não querem entender a Alemanha. Eles a recriam, numa curiosa interpretatio brasiliana, projetando nela seus valores e suas crenças. Uma terra onde tudo são Direitos Fundamentais, Controle de Constitucionalidade e Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. E nem nisto são originais. Antecedidos que foram pelos mais modestos, porém mais sinceros, membros da Escola do Recife. Ou até mesmo, na sua instrumentalização ideológica, pelo brilhante "Germania", de Tácito, que fez dos Germanos aquilo que se queria que os romanos fossem: livres, corajosos, republicanos.

O alemão tornou-se, assim, por meio de um engodo e de uma mistificação, a língua do Direito Constitucional. Ou melhor: a língua de um grupo ou setor de operadores do Direito que pretendem tornar-se ‘o’ Direito Constitucional. A citação de autores alemães, e de certos autores em especial, adquire o peso que, antigamente, dava-se, na escolástica, às citações do Doutor Angélico ou do Estagirita: tudo soa profundamente jurídico e erudito quando falado em alemão. E ainda: cuida-se de movimento capitaneado por quem de fato exerce grande poder político, condutores da jurisprudência e da doutrina nacionais.

É um movimento que, na realidade, presta um desserviço ao pensamento e às letras jurídicas. E que deve ser desmascarado sempre e onde quer que seja possível.


NOTAS

[1] FREYRE, Gilberto. Nós e a Europa Germânica; em torno de alguns aspectos das relações do Brasil com a cultura germânica no decorrer do século XIX. Rio de Janeiro: Grifo Edições; Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 51)

[2] Op. cit., p. 52

[3] Op. cit., pp. 130-133.

[4] Op. cit., p. 133.

[5] Op. cit., p. 134.

[6] Op. cit., p. 138.

[7] HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade o presidente do Brasil. Um Estudo do Brasil Constitucional (1889-1934). Brasília: Editora UnB, 1981, p. 35

[8] SALDANHA, Nelson. Da teologia à metodologia: secularização e crise do pensamento jurídico. – Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 85-87.

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Sobre o autor
A. L. Figueira Cardoso

Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, A. L. Figueira. Nós e a Alemanha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2330, 17 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13869. Acesso em: 26 dez. 2024.

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