9. Natureza decadencial do prazo reservado ao exercício da pretensão tendente a obter a invalidação dos atos administrativos e a conversão das situações de direito.
Para que restem preservadas a lógica, a coerência, a harmonia e a unidade do ordenamento jurídico, é preciso que se considere, como de decadência, o interregno subordinante do oportuno e útil exercício da ação, preordenada à invalidação do ato administrativo, por uma razão que ao jurista é defeso excluir de suas meditações, quando focadas na aplicação dos institutos sob análise (prescrição e decadência), tanto no Direito Público quanto no Direito Privado: o seu termo inicial, ao invés de ficar na dependência da violação de um direito constituído, coincide com o momento em que se aperfeiçoa a prática levada a efeito pelo gestor da coisa pública. Ou seja: perpetrado e publicizado o ato administrativo viciado, nasce, para a Administração, que compreende, para esse efeito, os agentes públicos integrados ao Parquet, o direito de perseguir a sua invalidação, por defeito de legalidade.Ora, se há identidade entre a consumação ou o aperfeiçoamento do ato e o termo inicial da ação, é induvidoso que o prazo, principiado nesse momento, é extintivo ou de caducidade, e, portanto, elisivo do próprio direito, e não de prescrição, eis que, a essa conformação, seria necessário o surgimento de uma pretensão, decorrente da violação a um direito material, e com ela coincidente.
Diante dessa compreensão, tem-se como prescritivos somente os prazos condicionantes da propositura, pelo Estado ou contra ele, das ações condenatórias ou indenizatórias, ao passo que os pleitos anulatórios, caracterizando-se por nítido e indisfarçável viés desconstitutivo, ou constitutivo negativo, consideram-se submetidos a prazos decadenciais ou de caducidade, que o juiz, sem ser provocado, poderá decretar por impulso oficial, à semelhança do que ocorre no Direito Privado (cfr. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, in Princípios Gerais de Direito Administrativo, Forense, 1978, vol. I, pág. 408).
Além disso, sendo a decadência uma imposição da segurança jurídica, enquanto a prescrição é apenas conveniente à sua preservação, como valor aspirado por toda a coletividade, a adesão a esse entendimento, por parte da doutrina e da jurisprudência, facilitará, de forma decisiva, a aceitação da conversão de situações de fato, opulentadas por duradoura permanência, em situações de direito, como um desiderato do conjunto de administrados, e não só do seu beneficiário, isoladamente considerado.
Essa aspiração, nos dias que correm, tem assento constitucional, pois repousa na segurança jurídica, que, na qualidade de sub princípio do Estado de Direito, tem um compromisso irredutível com a ideia de justiça material, como ensinam, contemporaneamente, os cultores do Direito Constitucional.
Almiro do Couto e Silva
, em trabalho de excelente lavra, mostra, com base em fundamentos hauridos dos ordenamentos jurídicos alemão e francês, que uma situação de fato, marcada por longos anos de permanência, gera, no administrado, a certeza de que ela se incorporou ao seu patrimônio subjetivo, ou passou a fazer parte da sua existência, constituindo, por esse motivo, óbice à livre revogação do ato administrativo, ou ao seu anulamento pelo vício de legalidade que a fez nascer.Observa o autor agora mencionado, a respeito desse relevante tema jurídico, que "Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa, etc, o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se trate de atos administrativos, prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria." (...) "HAURIOU, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ‘Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente e em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis? Quantos perigos para as relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogaçãO e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve prazo de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão sem lhe impor nenhum prazo.’ E conclui: ‘Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.’ (La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105-106)." (cfr. Os Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança Jurídica no Estado de Direito Contemporâneo, in Revista da Procuradoria Geral do Estado – Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, nº 46, 1988, págs. 11 – 29).
No direito brasileiro, o magistério do Professor Miguel Reale, que faz parte do estudo comparativo empreendido por Almiro do Couto e Silva, consigna: "29. Outro aspecto relevante da temporalidade, no concernente ao assunto aqui versado, diz respeito, digamos assim, à perempção que pode se operar quanto ao exercício pela autoridade administrativa do seu poder-dever de policiamento da legalidade." (...) Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si convalescer, - como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, - mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato. Escreve com acerto José Frederico Marques que a subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo razoável pode ser considerado requisito implícito do due process of law. Tal princípio, na verdade, não é válido apenas no sistema do direito norte-americano, do qual é uma das peças basilares, mas é extensível a todos os ordenamentos jurídicos, visto como corresponde a uma tripla exigência, de regularidade normativa, de economia de meios e formas e de adequação à tipicidade fática. Não obstante a falta de termo que em nossa linguagem rigorosamente lhe corresponda, poderíamos traduzir due processo of law por devida atualização do direito, ficando entendido que haverá infração desse ditame fundamental toda vez que, na prática do ato administrativo for preterido algum dos momentos essenciais à sua ocorrência; porém destruídas, sem motivo plausível, situações de fato, cuja continuidade seja economicamente aconselhável, ou se a decisão não corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade social tipicamente configurada em lei. Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever infinito de auto-tutela." (cfr. in Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, 2ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1980, Capítulo VII, Nulidade e Temporalidade, págs. 70/71).
Esse posicionamento conta com a simpatia, também, de Karl Larenz, que invoca, para justificá-lo, o princípio da confiança, como "...condição fundamental para uma vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens,...", em especial quando "...o que a suscita sabia ou tinha que saber que o outro ia confiar." (cfr. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica, Madri, Civitas, 1985, págs. 91, 95 e 96), e de Gilmar Ferreira Mendes, como ressuma da lição que ministrou no Plenário do Supremo Tribunal Federal, como relator para o acórdão, na assentada em que se deu o julgamento do Mandado de Segurança sob nº 24.268 – 0 (cfr. DJU, 17.09.2004).
Eduardo García de Enterría
e Tomás Ramóm Fernández sustentam, com base na experiência europeia, que o longo tempo transcorrido desde a prática do ato ilegítimo, além de incorporá-lo ao patrimônio e à vida do seu titular ou destinatário, faz com que a situação, dele decorrente, seja aceita pelo meio social, erguendo-se, em consequência, como obstáculo ao seu desfazimento. Recomendam os acatados professores que, em casos assim, haja uma rigorosa ponderação entre as exigências da legalidade, de um lado, e as imposições da segurança jurídica, de outro, para que a sociedade não conviva com a sistemática consagração das situações atributivas de vantagem, já que, para tanto, faz-se imperioso o respeito a certos critérios limitativos, como a equidade e a boa fé. Em seguida, citam, elogiosamente, pronunciamentos do Conselho de Estado da Espanha: "Em rigor, el artículo 106 da LCP no es outra cosa que uma advertencia em ordem a la modulación em ciertos casos de las consecuencias inherentes al ejercicio de las faculdades revisoras y uma ratificación del caráter restrictivo com que dicho ejercicio deve contemplarse, um temperamento, em definitiva, de los rigores próprios de la revocación, que se corresponde, por outra parte, con la imprescindible limitación de los efectos típicos de la nulidad que se impone em ocasiones a resultas de la concurrencia de otros princípios jurídicos de obligada observancia (protecion de la buena fe o del tercero inocente o de la confianza legitimamente generada por el acto viciado, etc.). El Dictamen del Consejo de Estado de 18 de enero de 1968 hizo uma aplicación verdaderamente ejemplar de este criterio legal, al negar em base al mismo (pues "com todo lo excepcional que es, tiene um caráter interpretativo, estabelece um limite que no puede desconhecer la Administración") la revisión de oficio de uma pensión em base a una nulidad – de um divorcio y subseguinte matrimonio civil – cuya acción pudo ser ejercitada hace más de veintiséis años ...lo cual, si bien podrá estar ajustado a la extrínseca legalidad, no puede recibir amparo em esta via el resultado flagrantemente contrario a la equidad que se produciría". Em términos senejantes, el Ditamen de 12 marzo de 1981 ("en el presente caso han transcurrido más de diez anos desde el otorgamiento de la concessión que se pretende declarar nula, lo que, aparte de cancelar lãs possibilidades procedimentales para instar la anulabilidad de los actos administrativos, por el tiempo transcurrido y habida cuenta de las inversiones efectuadas y de la importancia de las prestaciones entre las partes no es dudoso que la declaración de nulidad de pleno derecho de los actos administrativos de que se trata afectaría gravemente al derecho dos particulares".). En el mesmo sentido la Sentencia de 4 de febrero de 1993 en relación a um intento de revisión de oficio de um acto por el que se otorgó veinticinco años atrás, sin la preceptiva subasta publica, um derecho de superfície sobre terrenos municipales, derecho que fue inscrito em el Registro de la Propriedad y ulteriormente adquirido por um tercero amparado por dicha inscripción registral. Mas recientemente y em parecidos términos la Sentencia de 23 de octubre de 2000." (cfr. in Corso de Derecho Administrativo I, 1ª ed. Argentina, com notas de Agustín Gordillo, La Ley, pág. 669).10. O direito positivo legislado e a desconstituição, sob o aspecto temporal, dos atos ilegais favoráveis aos administrados.
Além de concorrer para uma melhor aceitação, pela sociedade, da convolação de situações de fato em situações jurídicas definitivas, a identificação do interregno constante da Lei nº 4717, de 1965, art. 21, como prazo substancialmente decadencial, terá a vantagem de conferir unidade e coerência ao ordenamento jurídico.Sim, porque a Lei nº 9784, de 1999, que Regula o Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, dispõe, no seu art. 54, caput, que a Administração decai, em cinco anos contados da data em que foram praticados, do direito de anular os atos de que decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários, ressalvada a hipótese de comprovada má fé, e esclarece, no parágrafo único desse dispositivo, que a caducidade flui do primeiro pagamento, em caso de vantagem patrimonial ou estipendiária.
Cumpre notar, por oportuno, que a norma de regência, no ponto agora destacado, estabeleceu rigorosa coincidência entre a prática do ato e o termo inicial do prazo reservado à propositura da ação, tendente à sua invalidação, ajustando-o, assim, ao mais importante de todos os critérios adotados pela doutrina para caracterizar a decadência, como destacou Orlando Gomes, na obra atrás colacionada.
A jurisprudência não tardou em reconhecer a natureza decadencial do prazo enunciado pela Lei nº 9784, de 1999, bastando, para comprovar esta asserção, mencionar os acórdãos proferidos pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, em sua composição plena, quando dos julgamentos dos Mandados de Segurança sob nº(s) 22.357 – O, relator o Ministro Gilmar Mendes (DJU, 05.11.2004), 25.113, relator o Ministro Eros Grau (DJU, 06.05.2005), 26.356 – 9, 24.448 – 8, relator o Ministro Carlos Brito (DJU, 13/01.2007) relator o Ministro Marco Aurélio (DJU, 6.03.2008), 26.405 – 5 e 26.628 – 7, relatados pelo Ministro Cezar Peluso (DJU, 21.02.2008), e pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial sob nº 9.073, relator o Ministro Peçanha Martins (DJU, 29.05.2006).
Não bastasse, cumpre remarcar que a ação permitida pela Lei nº 4717, de 1965, art. 1º, tem indisfarçável feição constitutivo negativa, pois, através dela, o autor popular faz nascer a jurisdição objetiva, com o escopo de anular ou de declarar nulo, para que deixe de produzir os efeitos que lhe são próprios, ato lesivo ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos entes administrativos expressamente enumerados.
Se ambas as ações guardam identidade, no ponto agora examinado, é fora de dúvida que inexiste razão lógica ou jurídica para tratar, como de prescrição, o prazo previsto pela Lei nº 4717, de 1965, art. 21, e, como de caducidade, o lapso temporal reservado pela Lei nº 9784, de 1999, para a anulação de atos favoráveis a funcionários públicos, já que a decadência, enquanto fenômeno próprio dos pleitos constitutivos (cfr. Humberto Theodoro Júnior, op. cit., págs. 355/354), deve ser reconhecida em ambos os casos remarcados.
É dizer: embora use, no seu art. 21, a forma verbal prescreverá, a denominada Lei da Ação Popular, à identidade da Lei do Processo Administrativo, art. 54, terminou por regular autêntico prazo decadencial, extintivo ou de caducidade, que o juiz, sem contestação, pode pronunciar de ofício, em consonância com a voz unânime da doutrina, que redundou na regra substanciada no Código Civil, art. 210.
Resulta, destas observações, que, por imperativo da unidade do ordenamento jurídico nacional, as ações, se tendentes a invalidar ou a desfazer, por defeito de legalidade, ato ou contrato administrativo, sujeitam-se à caducidade, que é própria das demandas constitutivas, cabendo ao juiz, com exclusão de qualquer outra conduta, pronunciá-la de ofício, ainda que a lei, considerada em sua literalidade, mas não em sua essência ou substância, refira-se ao correspondente interregno como prazo de prescrição.
Por último, impende observar que o caráter decadencial ou extintivo dos prazos reservados à propositura da ação anulatória, no âmbito do Direito Público, ademais de passível de reconhecimento por impulso oficial, pode ser conhecido e proclamado em ambos graus ordinários de jurisdição, não sendo de excluir a possível oposição, pela parte ou pelo Ministério Público, de embargos de declaração com efeitos infringentes, se omissa, a respeito, a contestação ou a apelação (cfr. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código Civil Anotado, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, págs. 266/267, notas ao art. 207, sob nº(s) 2, 3, 5, 6 e 8).