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A aplicação da teoria do adimplemento substancial pela jurisprudência brasileira

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23/11/2009 às 00:00
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4- A DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

A teoria do adimplemento substancial é oriunda da doutrina da substancial performance, que surgiu a partir da jurisprudência inglesa do século XVIII, com base na distinção entre as cláusulas condition e warranty, que equivalem, respectivamente, às obrigações principais e acessórias do contrato.

A condition era considerada uma obrigação dependente, na medida em que traduz uma correspectiva obrigação da outra parte, sendo, por isso, entendida como responsável pelo equilíbrio contratual, enquanto que a warranty constituía uma obrigação independente e sem relação de reciprocidade contratual, pelo que se entendia que seu descumprimento não influenciava a comutatividade contratual, a ponto de permitir a resolução do contrato, que é vedada, ao credor, no adimplemento substancial.

Como esclarece ANELISE BECKER [42], os Tribunais ingleses começaram, a partir da doutrina da substancial performance e da consideração da warranty, a questionar se a intensidade da inexecução era suficiente para permitir a resolução ou, pelo contrário, para se reconhecer que a prestação realizada pelo devedor correspondia à substancialidade da obrigação ajustada, apesar de incompleta.

Em termos de Direito Brasileiro, contudo, o tratamento do adimplemento substancial pelo Poder Judiciário e pela doutrina é recente, sendo certo que CLÓVIS COUTO E SILVA [43] já aludia ao instituto em artigo publicado originalmente em 1979, ao enquadrá-lo como exceção ao cumprimento integral da obrigação:

"O princípio da boa-fé atua defensivamente e ativamente; defensivamente, impedindo o exercício das pretensões, o que é a espécie mais antiga; ou ativamente, criando deveres, podendo inclusive restringir o princípio de o cumprimento ser completo ou integral, permitindo outra solução. É a doutrina do adimplemento substancial, estabelecida por Lord Mansfield em 1779, no caso Boone v. Eyre, isto é, em certos casos, se o contrato já foi adimplido substancialmente, não se permite a resolução, com a perda do que foi realizado pelo devedor, mas atribui-se um direito de indenização ao credor".

Talvez pela recente aplicação do adimplemento substancial, a jurisprudência brasileira venha encarando o adimplemento substancial como uma simples comparação entre a insignificância do inadimplemento e o valor total do negócio, como, por exemplo, nas hipóteses de pagamento de 23 das 24 parcelas de empréstimo. É preciso, porém, verificar sua complexa acepção relacionada aos princípios que lhe comandam, assim como estudar a incidência dos requisitos do adimplemento integral sobre sua estrutura.

Ademais, o adimplemento substancial não foi regulado pelo Código Civil de 2002, o que impõe a busca de standards para sua conceituação na doutrina, como fez ANELISE BECKER, em importante artigo, escrito na época de vigência do Código Civil de 1916:

"Examinando-se numerosas decisões, é possível concluir que se fazem necessárias três circunstâncias para que determinado adimplemento possa ser considerado como substancial. A primeira delas é a proximidade entre o efetivamente realizado e aquilo que estava previsto no contrato. A segunda, é que a prestação imperfeita satisfaça os interesses do credor. A terceira (questionável se considerar-se o adimplemento substancial apenas sob uma ótica objetivista) refere-se ao esforço, diligência do devedor em adimplir integralmente".

Quanto ao primeiro critério proposto por ANELISE BECKER, para delimitar o conceito de adimplemento substancial, trata-se de verificar o princípio da correspondência estudado no presente trabalho, devendo-se avaliar a utilidade da prestação e a expectativa do credor, entendidas no âmbito da obrigação orgânica, em que o conjunto das partes deve ser considerado como um todo e não isoladamente.

Dessa forma, não basta analisar apenas uma prestação, pois mesmo o descumprimento de uma parte inteira da obrigação contratada pode não representar uma violação substancial do contrato.

Do mesmo modo, se for apenas analisada a utilidade da prestação abstratamente, sem avaliar outros interesses integrantes da relação obrigacional orgânica, podem ser cometidas injustiças. A prestação pode ser útil para um determinado credor, mas não ser para outro credor, quando pensamos, por exemplo, em deficiente físico que contrata a compra e venda de um automóvel, que lhe é entregue sem as adaptações necessárias à compensação de sua deficiência, embora possamos admitir que o referido bem, ainda assim, seria útil à generalidade dos consumidores.

Da mesma forma, apenas a noção totalizante de obrigação nos permite entender que a prestação pode ser útil para determinado credor, mas não atender suas expectativas, como no caso de contratante que é credora de vestido exclusivo com famoso estilista [44] e, apesar de ter ficado satisfeita ao usar o vestido, vem, posteriormente, descobrir que tal vestido já tinha sido vendido para outra pessoa. Em suma, a prestação imperfeita deve atender aos interesses e expectativas do credor.

O terceiro requisito apontado por ANELISE BECKER, a saber, a diligência e o esforço do devedor no cumprimento dos termos avençados, refere-se à necessidade de as partes pautarem suas condutas de acordo com a boa-fé, o qual incide em todas as fases da obrigação entendida como processo, desde seu nascimento e mesmo após o adimplemento.

Para fins de delimitação da substancialidade do cumprimento, característica do adimplemento substancial, podemos citar, a contrario sensu, RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR [45], que, ao fornecer critérios para os limites da resolução do contrato, explica que esta é legítima quando houver a substancialidade do incumprimento, que será aferida, casuisticamente, de acordo com as circunstâncias do contrato, a natureza da prestação e o interesse da parte:

"Assim, por exemplo, nos contratos com data fixa, depois da qual desaparece o interesse do credor, a mora já é quebra substancial; nos outros, nos quais a data serve apenas para fixar a época da exigibilidade da obrigação ou auxilia na orientação programática das partes, o simples incumprimento é insuficiente para resolver. As circunstâncias do contrato, a natureza da prestação e o interesse da parte revelarão, a cada caso, a substancialidade do incumprimento".

Importante ressaltar que a substancialidade do incumprimento não se confunde com o descumprimento de um dever principal ou de um dever acessório, pois ambos podem resultar, singularmente ou em conjunto, em uma inutilidade da prestação para o credor e, conseqüentemente, representarem uma violação fundamental do contrato, que fundamentará a resolução. Em suma: a substancialidade do incumprimento será verificada de acordo com a análise molecular de um contrato específico, com a consideração concreta dos contratantes e da finalidade negocial.

É preciso, assim, verificar a importância do estudo da teoria da causa dos contratos, como parâmetro de delimitação do adimplemento substancial, na medida em que este é aferido, de acordo com a finalidade de cada modalidade contratual.

4.2. A teoria da causa como parâmetro de configuração do adimplemento substancial

Como vimos ao tratar do princípio da separação de planos, a investigação da causa é importante para a aquisição de propriedade no sistema brasileiro, sendo esse um dos motivos pelos quais é preciso estudar a teoria da causa aliada à figura do adimplemento substancial.

Dessa maneira, convém explicitar as noções de causa do negócio jurídico estabelecidas pela doutrina, a fim de melhor delimitar sua importância como critério de aferição do adimplemento substancial.

Em acepção subjetiva, a causa se traduz nos motivos determinantes que levaram os contratantes a celebrar um negócio jurídico, desempenhando a causa, segundo tal entendimento, papel constitutivo da vontade na formação dos contratos.

Nessa seara, o Código Civil previu, expressamente, a influência da causa subjetiva na formação do negócio jurídico, podendo este ser anulado se existir motivo determinante falso ou ilícito (ex vi dos arts. 140 e 166, III, do Código Civil), pelo que se pode enquadrar a causa subjetiva no plano da validade dos negócios jurídicos, na específica hipótese dela ser determinante na formação do contrato.

A título exemplificativo, citem-se as obrigações assinaladas a termo, em que os contratantes ajustaram que o cumprimento do prazo ajustado é fator essencial na celebração do negócio, como acontece nas costumeiras contratações de buffet de comidas em festas de final de ano, que deve ser entregue ao organizador da festa em horário razoável, sob pena de algumas horas de atraso na referida entrega desnaturar a obrigação.

Passemos, agora, à outra acepção corrente da causa, que é a mais utilizada pela doutrina e tem sentido objetivo, na medida em que significa a função econômico-social inerente aos negócios jurídicos válidos, sendo certo que tal função revela a essência do negócio e o permite, assim, distingui-lo de outros tipos contratuais. MARIA CELINA BODIN DE MORAES [46], em artigo define os importantes papéis da causa objetiva nos contratos:

"Então, embora, a causa seja una, ela cumpre três papéis diferentes, mas interdependentes, daí a confusão em que se vê envolvido o termo:

i) serve a dar juridicidade aos negócios, em especial a contratos atípicos, mistos e coligados; ii) serve a delimitá-los através do exame da função que o negócio irá desempenhar no universo jurídico; iii) serve, enfim, a qualificá-los, distinguindo seus efeitos e, em conseqüência, a disciplina a eles aplicável".

Partindo de tal definição, podemos entender que, embora o Código Civil não tenha expressamente incluído a causa como requisito de validade do negócio jurídico, tal qual são o agente, o objeto lícito – possível - determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil), o artigo 421 incluiu a causa contratual dentro da cláusula geral dos contratos, vez que o exercício destes é delimitado pela função social reconhecida pelo Direito.

Diante da consagração da causa no cerne da disciplina contratual no Código Civil de 2002, a causa tornou-se um elemento decisivo na distinção dos tipos contratuais e na indicação dos efeitos essenciais que cada tipo contratual deve produzir, à luz de sua função sócio-econômica. MARIA CELINA BODIN DE MORAES [47] defende tal posicionamento com argumentos calcados no Código Civil de 2002, com muita propriedade:

"O legislador de 2002 manifestou-se de modo tão poderoso no que tange à função social do contrato que retornou ao tema nas disposições transitórias. Ao regular o direito intertemporal em matéria, reafirmou no parágrafo único do art. 2035: "Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e do contratos"

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Isto, na verdade, confirma que o ordenamento civil brasileiro não dá qualquer guarida a negócios abstratos, isto é, a negócios que estejam sujeitos, tão-somente, à vontade das partes, exigindo, ao contrário, que os negócios jurídicos sejam causais, cumpridores de uma função social. Nesta linha de raciocínio, teria o legislador exteriorizado, através dos termos da cláusula geral do art. 421, o princípio da "causalidade negocial". Embora nós talvez continuemos a dizer, simplesmente, que determinado negócio "não cumpre a sua função social".

Sendo certo que o ordenamento civil outorgou a função, preponderantemente à causa, de interpretação e distinção dos negócios jurídicos em virtude dela ser conceituada como a "síntese dos efeitos jurídicos essenciais" [48] de cada tipo contratual, seu estudo irá auxiliar o intérprete a analisar se o cumprimento realizado pelo devedor foi substancial, a ponto de se reconhecer que o negócio jurídico cumpriu sua finalidade sócio-econômica.

Nesse particular, ANELISE BECKER [49] esclarece que o adimplemento substancial se relaciona à teoria da causa desenvolvida pela doutrina italiana como função econômico-social do contrato: "Uma vez inserindo-se a problemática do adimplemento substancial na questão da funcionalização dos direitos de crédito, está-se tocando na teoria da causa como a função econômica-social daquele direito. Nesta perspectiva, a compreensão e aplicação da doutrina do adimplemento substancial imbrica-se com o exame da causa para saber se, na relação obrigacional concreta, esta foi, ou não, atingida".

Por outro lado, o desaparecimento da causa revelará que o descumprimento obrigacional foi intenso a ponto de permitir a resolução contratual, pelo que se infere, a partir dessa ótica, que o exame da causa, também, é essencial para se aferir a configuração do adimplemento substancial. Por exemplo, a utilização da teoria da causa poderá determinar se um contrato atípico é, por exemplo, aleatório, através da verificação da "síntese" dos seus "efeitos jurídicos essenciais", que, nesse caso, deve se identificar com a assunção de riscos pelas partes. Tendo em vista que a causa contratual indicou a presença de contrato aleatório, essa teoria auxiliará o intérprete na análise do adimplemento substancial, posto que a ocorrência do risco não se confundirá, nesse exemplo, com alguma espécie de descumprimento. Deve, assim, o intérprete questionar o porquê daquele negócio, ou seja, a sua função.

4.3 - Efeitos do reconhecimento do adimplemento substancial

O adimplemento substancial obsta o credor de requerer a resolução contratual e, também, o impede de argüir a exceção de contrato não-cumprido [50], vez que a prestação descumprida pelo devedor é insignificante a ponto de permitir o descumprimento contratual alheio, sob pena de perda do equilíbrio contratual.

RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR [51], ao descrever os critérios adotados pela Convenção de Viena ao regular os limites do direito de resolução, aduz que o decurso do tempo é fator importante para se avaliar a perda da faculdade de resolução:

"O vendedor perde o direito de resolver:

(1) em caso de execução tardia, se não o exerceu antes de ter sabido que a execução teve lugar; (2) em caso de outra espécie de violação, se não o exercer em prazo razoável contado a partir de quando teve ou deveria ter conhecimento da violação, ou a partir do decurso do prazo por ele concedido ao comprador, na forma do art. 63, I, ou depois de o comprador ter declarado que não o aproveitaria para executar suas obrigações (art. 64,2)".

Assim como a Convenção de Viena limita o direito de resolução no tempo, o instituto da supressio, oriundo do princípio da boa-fé objetiva, pode ser utilizado para impedir o credor de resolver o contrato, se criou fundada expectativa no devedor acerca da conservação do contrato.

Nessa ordem de raciocínio, a proibição da resolução contratual e da exceção de contrato não-cumprido, principais efeitos de reconhecimento do adimplemento substancial, é, também, justificada pelo princípio da conservação dos contratos [52].

5.4. À guisa de conclusão - crítica ao critério matemático e à precária motivação das decisões judiciais, na aplicação do adimplemento substancial:

Muito antes da Constituição Federal de 1988, que consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da república [53] e princípio norteador da ordem econômica [54], CLÓVIS COUTO E SILVA [55] já advertia que o conceito de pessoa já era decisivo no plano do Direito Civil e que o Direito, em geral, também, se presta à proteção de interesses extra-patrimoniais.

RUY ROSADO [56] defende que o critério econômico é um dos elementos metajurídicos úteis para se avaliar a legitimidade da resolução contratual, na medida em que o contrato desempenha função econômica, embora o fundamento principal de avaliação a ser utilizado deva residir em princípios éticos, em virtude da sua prevalência sobre os aspectos econômicos.

Dessa forma, a doutrina do Direito Civil-Constitucional considera a análise econômica do Direito como apenas um dos critérios interpretativos válidos e que fica, de qualquer forma, sujeita à legalidade constitucional e, conseguintemente, à primazia dos interesses existenciais. PIETRO PERLINGIERI [57], ao analisar a validade da economic analysis, pondera que a complexidade do Direito impede que o critério econômico seja suficiente para a resolução de todas as questões jurídicas: "Com isso não se nega que possa ser útil o emprego de esquemas e critérios microeconômicos para escrutinar o direito e para avaliar a congruidade de seus institutos. É, todavia, necessário ter consciência que se é verdade que a análise custo-benefício contribui para realizar a eficiência, ela sozinha não consegue representar a especificação e a complexidade da ciência jurídica".

Mesmo sem ingressar na polêmica dos limites dos critérios econômicos em decisões judiciais, o que seria impossível neste trabalho, é interessante notar que aspectos patrimoniais podem ter influência sobre direitos existenciais, o que acentua a necessidade de estabelecimento de mecanismos de equilíbrio dos interesses patrimoniais e extra-patrimoniais, os quais prevalecem sobre os direitos patrimoniais, quando houver lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse passo, a adoção de um critério matemático [58] rígido, como quer certa jurisprudência que admite a configuração do adimplemento substancial sempre que for cumprida 80% da prestação em todos os tipos contratuais, acaba por desconsiderar a importância dos deveres anexos da boa-fé e a finalidade específica de cada negócio na aplicação do referido instituto. Apenas a título exemplificativo, cite-se precedente judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [59]:

"Apelação cível. Ação de busca e apreensão. Alienação fiduciária. Adimplemento substancial. Ocorrência.

A teoria do adimplemento substancial atua como instrumento de eqüidade, impondo que, nas hipóteses em que a extinção da obrigação pelo pagamento esteja muito próxima do final, exclua-se a possibilidade de resolução do contrato, permitindo-se tão-somente a propositura da ação de cobrança do saldo em aberto.

O adimplemento de mais de 80% das parcelas avençadas no contrato conduz à ausência de mora, que, por ser pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, enseja a extinção do feito sem resolução de mérito.

Negado seguimento" [60].

A adoção generalizada desse critério matemático, além de desconsiderar os critérios estritamente jurídicos estudados no presente trabalho, também é questionável sob o ponto de vista da eficiência, fundamento básico da análise econômica do Direito, tendo em vista o evidente repasse do percentual médio de inadimplência em desfavor da globalidade de potenciais devedores em contratos de alienação fiduciária, leasing, mútuo em geral, etc.

Avaliando, no exemplo ora sob comento, a totalidade dos interesses envolvidos em cada caso concreto, deve o juiz perquirir o esforço do devedor em adimplir a integralidade das obrigações contratuais, propondo, assim, medidas conciliatórias das partes [61] para, além de resguardar o direito de crédito e a menor onerosidade do sistema, garantir direitos existenciais. Deve o juiz, por exemplo, propor o parcelamento das prestações não cumpridas em condições dignas para o devedor, dialogando com as partes e exercendo seu munus de forma efetiva.

Nessa análise complexa dos interesses em jogo, o juiz deve estabelecer critérios casuísticos para avaliar a boa-fé do devedor em cumprir o restante das prestações, verificando se existe algum justo impedimento que impeça aquele de adimplir a integralidade das prestações, sob pena do instituto do adimplemento substancial, que foi desenvolvido para garantir o equilíbrio contratual e impedir o enriquecimento sem causa, ser utilizado como estímulo ao enriquecimento ilícito.

Se não foi possível ao devedor esclarecer, em ação movida pelo credor para a resolução contratual, um justo e concreto impedimento para efetuar o pagamento das parcelas vencidas de determinado contrato de trato sucessivo, não é provável a obtenção de resultado prático em futura execução ou ação de cobrança contra o devedor, razão pela qual deve o juiz perquirir os reais motivos da inadimplência do devedor, em busca do princípio da efetividade do Processo e da verdade real, que é o ideal do Processo Civil contemporâneo [62].

A contrario sensu, se o reconhecimento do adimplemento substancial não pode se fundar em critério exclusivamente matemático, também, não se pode rejeitá-lo sob o fundamento de que só a falta de pagamento da última parcela de contrato de trato sucessivo autorizaria a aplicação do adimplemento substancial. Nesse sentido, cabe transcrever acórdão do Superior Tribunal de Justiça, o qual apesar de assentado em alguns fundamentos, ao tratar do adimplemento substancial, vinculou a aplicação desta teoria à restrita hipótese de falta de pagamento da última parcela do prêmio relativo a contrato de seguro, in verbis:

"Civil. Art. 1450 do Código Civil. Inadimplemento de contrato de seguro. Falta de pagamento de mais da metade do valor do prêmio. Indenização indevida pelo sinistro ocorrido durante o prazo de suspensão do contrato, motivada pela inadimplência do segurado.

- A falta de pagamento de mais da metade do valor do prêmio é justificativa suficiente para a não oneração da companhia seguradora que pode, legitimamente, invocar em sua defesa a exceção de suspensão do contrato pela inadimplência do segurado.

- Apenas a falta de pagamento da última prestação do contrato de seguro pode, eventualmente, ser considerada adimplemento substancial da obrigação contratual, na linha de precedentes do STJ, sob pena de comprometer as atividades empresariais da companhia seguradora". [63]

Por outro lado, podemos encontrar acórdãos representativos de outro modelo de jurisprudência, cuja argumentação se resume na indicação genérica do princípio da boa-fé objetiva ou de outros princípios, tais como o princípio da razoabilidade, sendo certo que a motivação inadequada, em desacordo com o princípio da motivação das decisões judiciais [64], é o traço característico dessa linha de pensamento jurisprudencial.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu, em hipótese de promessa de compra e venda de imóvel vinculado a mútuo contraído por promitente vendedor junto à Caixa Econômica Federal, que o pagamento de "uma maioria" das prestações contratuais seria suficiente para a configuração do adimplemento substancial, que foi presumido pelos julgadores, os quais não utilizaram nenhum critério jurídico ou mesmo matemático. Confira-se o precedente:

"Apelação cível. Promessa de compra e venda. Cessão e transferência de direitos e obrigações contratuais. Pretensão de rescisão do contrato que não se mostra pertinente ante o montante já pago da avença. Aplicação da teoria do adimplemento substancial.

Recurso desprovido, por maioria.

(...)

Ainda, coube ao apelado assumir o pagamento "das obrigações relacionadas com as 76 (setenta e seis) prestações vincendas de R$ 105,76", cláusula nove do contrato (fl. 15). Consoante o documento acostado pela autora à fl. 17, restam pendentes de pagamento quarenta e quatro prestações. Ocorre que o apelado acostou às fls. 56-66, vários comprovantes de pagamento das prestações do financiamento. Assim, possível concluir que houve a quitação de uma maioria das parcelas. Portanto, constata-se que o contrato foi cumprido em sua substância fundamental, ainda que não integralmente.

Nesse compasso, possível a aplicação da teoria do adimplemento substancial.

Assim, o saldo remanescente, sejam as parcelas do financiamento ou dívidas de IPTU, deve ser buscado pela autora na via adequada.

Na verdade, não se trata de afirmar que há impossibilidade absoluta de cumprimento do contrato, mas constatar que ele já foi substancialmente executado pelas partes, não havendo como rescindi-lo, considerando-se os princípios da probidade e da boa-fé, que devem pautar as relações contratuais" [65].

Nessa linha de exposição, torna-se, cada vez mais necessário, o uso de critérios jurídicos na interpretação do instituto do adimplemento substancial, pelo que deve o juiz considerar, de forma não exaustiva, dada a casuística inerente ao tema, os seguintes critérios: (i) todos os interesses envolvidos no exame do caso concreto; (ii) a preservação da causa do contrato na hipótese de reconhecimento do adimplemento substancial; (iii) a utilidade e expectativas do credor, aferidas segundo critérios objetivos e não por meros caprichos do credor; (iv) o cumprimento dos deveres da boa-fé por ambas as partes, tanto no âmbito do Direito Material, como na esfera processual, valendo-se, dentre outros mecanismos, da supressio; (v) a natureza da obrigação (fungível ou infungível, etc.).

À guisa de conclusão, podemos ressaltar que o instituto do adimplemento substancial padece de critérios científicos em sua aplicação pela jurisprudência brasileira, que deve, assim, procurar interpretá-lo, de forma mais consentânea com os princípios do Direito Civil-Constitucional, notadamente o da boa-fé e o da solidariedade social, em conjunto com as regras da mora, do incumprimento relativo e definitivo, sem prejuízo de outras, cuja aplicação se mostrar relevante, no exame do caso concreto.

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Sobre o autor
Thiago Drummond de Paula Lins

Advogado e Pós-Graduando em Direito Civil-Constitucional pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINS, Thiago Drummond Paula. A aplicação da teoria do adimplemento substancial pela jurisprudência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2336, 23 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13896. Acesso em: 22 dez. 2024.

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