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Como tornar claras nossas idéias jurídicas?

27/11/2009 às 00:00
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O texto investiga a possibilidade, ou não, da completa adequação do raciocínio lógico formal ao campo do direito, nomeadamente no que tange à hermenêutica e aplicação das normas jurídicas.

Sumário:1. À guisa de Introdução. - 2. Lógica, clareza e distinção no direito. - 3. A Construção lógica. - 4. Hermêutica e interpretação criativa do direito. - 5. Para além das contradições. - 6. Decisões e decisões. - 7. O ilógico necessário. – 8. Referência bibliográfica.


1. À guisa de introdução.

O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações acerca do ensaio "How to Make Our Ideas Clear" [01], de Charles S. Peirce, com vistas a investigar a possibilidade, ou não, da completa adequação do raciocínio lógico formal ao campo do direito, nomeadamente no que tange à hermenêutica e aplicação das normas jurídicas.

Também visa a discutir as idéias de Eros Roberto Grau expostas no prefácio do livro Metodologia da Ciência do Direito, de Fernando Aguillar (Max Limonad, 1999), que, de certa forma, se colocam em sentido contrário àquelas do filósofo norte-americano.

Busca-se, destarte, na síntese desse contraponto, medir a validade das assertivas de um e de outro autor, relativamente ao que diz respeito à logicidade e à distinção das idéias jurídicas e, sobretudo, ao que toca à necessidade de se evitar a (suposta) insegurança jurídica proporcionada tanto pela imprecisão terminológica quanto pela plasticidade da natureza do direito.


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A idéia básica do texto de Peirce, admitida a simplificação, é a de que, segundo os filósofos lógicos, existem concepções claras e/ou obscuras, bem como distintas e/ou confusas, apontando o Autor um caminho seguro que possibilite às nossas idéias mais clareza e distinção.

Recorda o Autor que, para o lógico, uma idéia clara se define como sendo aquela compreendida de maneira tal que seja reconhecida em qualquer lugar onde se encontre, sem que seja confundida com nenhuma outra. A idéia obscura, ao contrário, não alcança essa claridade.

Afirma o filósofo, ainda, que uma idéia distinta se define como aquela que não contém nada que não seja claro. Assim, pode-se intuir uma idéia de maneira distinta quando se pode dar a ela uma definição precisa em termos abstratos. Uma idéia confusa segue o caminho inverso. Para o presente texto, o que interessa é verificar se tal raciocínio se aplica de forma adequada à compreensão e à construção da ordem jurídica.

Preliminarmente, convém recordar as idéias de Eros Roberto Grau, o qual, tecendo comentários sobre a cientificidade do direito, aponta às incertezas que ele pode proporcionar diante da multiplicidade de interpretações que as normas permitem, característica natural do direito. Entende esse Autor que, como a realidade jurídica não admite apenas uma interpretação, ela não estaria em condições de fornecer uma única resposta "correta" para cada caso (não haveria, portanto, espaço para crenças gerais). O direito apresentaria, portanto, uma série de "respostas corretas", a depender da possibilidade de enquadramento destas no ordenamento legal no qual o problema esteja posto. Essa afirmação, inclusive, corrobora o entendimento exposto no próprio livro por ele prefaciado, segundo o qual não existe "direito", mas que existem "direitos".

É de se reconhecer que as idéias de Grau não são originais, tampouco ele está sozinho na construção desse pensamento. Utilizando-se do conceito kelseniano para distinguir as interpretações autênticas das inautênticas, remete-se o leitor às idéias do autor austríaco, para quem

"A interpretação jurídico científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente" (Kelsen, 1999:396).

Por outro lado, admitindo-se o corpo das leis como a materialização do pensamento do legislador, segundo o raciocínio do filósofo norte-americano, a incerteza jurídica retrataria apenas um momento de irritação na mente do intérprete, anteriormente à formalização de sua crença, que seria a acomodação do pensamento. Dessa forma, o que no direito se apresenta como característica natural, para Grau, seria tomado por Peirce como obscuridade e indistinção, logo, uma deficiência do sistema a ser sanada pelo uso da lógica.

Mesmo distanciando-se das idéias de Peirce, ao defender que existe uma área cinzenta no direito, não apenas o preto e o branco, onde respostas diversas são igualmente possíveis, recorda Grau, contudo, que este número de respostas não é ilimitado e, em última análise, a interpretação atuaria mais no campo da prudência do que no da ciência. Ao abordar o tema, Grau remonta o texto de Aristóteles escrito para seu filho Nicômaco, no qual o filósofo, dentre outras éticas, clama pela Justiça, reforçando a idéia de que somente o homem (juiz) prudente será capaz de combater a máxima de que "o direito ocidental capitalista contemporâneo recusa qualquer possibilidade de justiça material que ameace o primado da justiça formal" [02].


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Admitida a hipótese proposta por Grau, qual seja, a de que a interpretação da realidade jurídica (p) forneça um sem número de respostas possíveis (q, r, s etc.) para cada problema enfrentado, sendo essas respostas equivalentes entre si, forçoso admitir que seja irrelevante para a ciência do direito a escolha feita pelo magistrado dentre aquelas possíveis [03] (p q; ou p → r, ou p → s etc., sendo q ~ r e r ~ s) [04]. Destarte, o aplicador do direito vive em um mundo onde a conduta é regida por uma normatividade multifacetada, simultânea e mesmo contraditória, na qual o dever-ser depende mais da perspectiva do que de uma ontologia.

Por outro lado, destaque-se a visão de Peirce, para quem a realidade (aí inserida a realidade jurídica) é aquilo que é, independentemente do que se possa pensar sobre ela. Afirma o autor norte-americano: "Assim, podemos definir o real como aquilo cujas características são independentes do que qualquer um pode pensar que são". Naturalmente, nesse mundo, a ontologia se sobrepõe à perspectiva.

Perceba-se a oposição entre as idéias mencionadas: ou o direito seria um jogo de probabilidades igualmente válidas (p q; ou p → r, ou p → s etc., sendo q ~ r e r ~ s), dependendo sua natureza tão-somente do ponto de vista do aplicador, e, nesse caso, por exemplo, condenar ou absolver um réu seriam os dois lados possíveis de uma mesma moeda, ou o direito teria uma só natureza ([p q] ~ r), e sua aplicação com significado diverso daquele que não o "real", ou seja, o concebido pelo legislador, decorreria de uma hermenêutica imperfeita. Nessa última hipótese, o direito teria resposta única para cada problema que enfrentasse.

Observe-se que o grande desafio do estudo e conceituação da natureza do direito, cujo sucesso é a chave para resolução de boa parte dos conflitos que ela provoca no intérprete, é apreender adequadamente a sua ontologia. E, em um jogo de palavras que sintetiza bem essa natureza, poder-se-ia dizer que o ser do direito é um dever-ser de conduta.

Em outros termos, entender e aplicar o ser (ou a realidade) do direito (p), enquanto norma de regulação social, é buscar conformar uma situação (outra realidade) social que ainda não é, mas que se pretende que seja (deve ser q). O problema consiste, contudo, em saber que realidade social deveria ser essa? (o que deve ser q?). E este é o dilema que perpetua o conflito entre criador e aplicador do direito.

O fato de a realidade jurídica (p) criada pelo legislador proporcionar ao aplicador extrair interpretações diversas sobre o que ela pretenda que "deva-ser" em termos de conduta humana (q, r, s), como ressaltou Grau, constitui a materialização da situação que Dworkin denomina de "divergência teórica sobre o direito", diferente da "divergência empírica sobre o direito" (Dworkin, 1999:8).

Divergindo empiricamente, os juristas, nomeadamente os magistrados, questionam a existência (existe p?) no ordenamento jurídico vigente de norma capaz de regular o caso que tenham em mãos (na hipótese do sistema romano-germânico), ou se há decisão jurídica em caso análogo que lhes sirva de precedente/paradigma (na hipótese do sistema anglo-saxão).

Discutem, portanto, se o problema colocado pode ser solucionado por norma legal e/ou jurisprudência preexistentes, ou se é o caso de ocorrência de lacuna da lei, ou da jurisprudência. Não se cogita aqui acerca de a manifestação normativa ter sido criada de forma clara ou obscura, consubstanciando uma idéia distinta ou confusa do legislador ou do tribunal.

Na divergência teórica, ao contrário, sabe-se que a lei e/ou a jurisprudência existem, mas, não se chega a um consenso sobre o que realmente elas pretendam dizer, exigir ou regular (Em que implica p?). É uma divergência de interpretação, portanto. Nos termos de Peirce, ocorreria nas mentes dos magistrados a irritação da dúvida, que excita a ação do pensamento, somente cessada quando alcançada a crença, isto é, a certeza do significado da realidade jurídica e sua conseqüente implicação (p q).

Observe-se, contudo, que os magistrados chegam à divergência teórica do direito não apenas porque tenham diferentes idéias acerca da sua ontologia, mas por possuírem concepções diferentes sobre como o direito atua e, nomeadamente, como deveria atuar no caso concreto. Tais concepções se materializam através do método hermenêutico utilizado por cada magistrado e levam em conta elementos profundamente subjetivos, tais como os ódios, os amores, os conceitos e preconceitos (não se discute mais o que é p, mas pretende descobrir se p q; ou p → r, ou p → s etc.).

O questionamento que daí decorre é: seria possível ao legislador, aplicando a orientação lógica, criar enunciados jurídicos absolutamente claros e distintos, relativamente a toda e qualquer ação humana? Conceito esse que, uma vez criado, evitasse por parte do aplicador do direito o uso de juízos de valor que pudessem ser contrapostos, tal como a escolha de um caminho em detrimento de outro, igualmente possível, porém (supostamente) equivocado? Ou, ao contrário disso, por mais claro e distinto que o legislador possa ser na construção da realidade jurídica, as cambiantes sócio/histórico/políticas irão todavia proporcionar que o aplicador do direito não volte a ver a realidade como concebida originalmente pelo legislador? Tal qual o homem que, diante da água corrente de um rio, perceba que, uma vez saído da realidade do banho, jamais voltará a banhar-se nas mesmas águas, como poeticamente ensinava Heráclito, o Obscuro? Para chegar a resposta, necessário tecer alguns comentários sobre a hermenêutica jurídica.


4. Hermêutica e interpretação criativa do direito

Um dado que na visão do jurista é perfeitamente compreensível, qual seja, que magistrados diversos interpretem diversamente uma mesma realidade, sem que com isso haja um rompimento da unidade do ordenamento jurídico, representaria para a visão de Peirce a materialização de uma contradição permanente, quando p pudesse implicar em q, r ou s, simultaneamente, sendo q ~ r e r ~ s.

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Como demonstrado, conduto, a interpretação criativa por parte dos aplicadores do direito é imprescindível para a formação da realidade jurídica, pois atua como critério de atualização do texto legal, tornando-o apto a ser aplicado em situações diversas, nas mais distintas épocas. Para além das contradições, a interpretação criativa permite ao magistrado a leitura de uma lei de modo a ajustá-la ao máximo aos princípios de justiça material que deve sempre nortear o direito. Na sua ausência, seria pouco provável que as normas editadas há muito tempo pudessem se adequar às viragens sociais constantes que o tempo proporciona.

Por inexistir regra hermenêutica obrigatória e asseguradamente eficaz para a leitura das leis e correspondente solução dos litígios que se lhes apresentam, os magistrados estarão relativamente livres para apreciarem os fatos e as provas, bem como para decidirem com independência sobre a questão que tenham em mãos. E essa relativa liberdade, que é acompanhada de um elevado compromisso social, é absolutamente necessária para o bom desempenho de seu mister, mesmo porque a história tem demonstrado a que resultado se chega quando os juízes estão atrelados profissional e ideologicamente aos detentores de poder político e econômico.

E porque os homens não comungam totalmente de pensamentos, aspirações e simpatias, sendo o juiz um homem comum dotado de esfera de poder, não pode haver surpresa no fato de que apreciações distintas proporcionam decisões até mesmo antagônicas [07].

A legislação processualista brasileira determina que o juiz aprecie livremente a prova, atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegadas pelas partes, devendo indicar na sentença os motivos que formaram o seu convencimento [08]. Nesse sentido, a sentença é muito mais uma tentativa de persuasão de que o ponto-de-vista do magistrado está correto, não por ser a única resposta possível, mas por criar um vínculo de coerência e verossimilhança entre o caso examinado e a legislação pertinente à matéria. É, em última instância, uma mera proposição de crença.

De fato, havendo uma única resposta para cada problema apresentado pelo direito, existindo uma regra interpretativa exclusiva para cada caso, o ofício do juiz seria menos árduo. Nesse mundo imaginário, a lei se apresentaria como premissa maior, os fatos seriam a premissa menor, e a sentença seria a conclusão clara e distinta como o mais perfeito dos raciocínios. O direito estaria sempre a proporcionar silogismos perfeitos.

Ocorre, todavia, que, nem sempre a premissa maior é perfeitamente visualizável pelo magistrado, a leitura que se faça das premissas menores dependem de provas, que raramente reproduzem com fidelidade os fatos ocorridos e, consequentemente, os raciocínios que se apresentam vão carregados de ruídos e interpretações equivocadas, tanto da lei quanto dos fatos.

Por isso, a solução é buscar fornecer às partes não a única resposta correta para o problema que se apresenta, até porque não se sabe qual ela seria, mas a melhor solução visualizada pela prudência do magistrado para as diversas versões que as partes apresentem da realidade por elas vividas.


6. Decisões e decisões.

Poder-se-ia argumentar, por outro lado, que, inexistindo regras hermenêuticas obrigatórias para a solução dos conflitos, bem como existindo liberdade de convencimento para os magistrados, que necessitariam muito de coerência do que qualquer elemento para julgar, o direito não poderia apresentar uma decisão melhor que outra para cada caso, senão uma decisão tão-somente diferente (p → q; ou p → r, ou p → s, etc. sendo q ~ r e r ~ s).

Tal conclusão não parece ser a mais adequada. De fato, se não existissem decisões jurídicas "melhores" que outras para cada caso que o direito enfrenta, e se cada concepção do direito fosse apenas "diferente" das demais, a opinião de que a escravidão é algo iníquo, ou mesmo de que não é justo que se punam inocentes não teriam lá maiores significados [09].

Em outras palavras, o fato de que o direito possa oferecer uma infinidade de respostas formal e igualmente válidas para cada caso não induz ao raciocínio de que elas todas sejam materialmente equivalentes entre si, e que, dentre elas, não possa existir a mais adequada. Tomando-se o direito como uma tentativa de realização da justiça material, a melhor resposta será aquela que mais se aproximar do ideal desse justo.

Com isso, desnuda-se uma contradição no pensamento de Grau, quando este pretende que as respostas possíveis das interpretações jurídicas sejam equivalentes entre si, retomando a idéia de Kelsen de que "o direito é uma moldura, dentro da qual há várias possibilidades de aplicação", e, "sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma dela se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do direito" (Kelsen, 1999:390/391).

Ora, ao afirmar que os magistrados devem operar com regras de prudência, ao invés de regras de ciência, não está aquele Autor, no fundo, imaginando que, dessa forma, poder-se-ia chegar a uma resposta jurídica melhor que outra? Não fosse dessa forma, indiferente seria para o direito se os magistrados atuassem guiados tão-somente por regras jurídico-científicas.

É exatamente o fato de o direito oferecer respostas, não necessariamente "corretas", mas, "melhores" que outras, que o torna aquilo que é: um fenômeno social ambivalente que consubstancia força e reação à força.


7. O ilógico necessário.

A característica de o direito não oferecer resposta correta para cada caso, permitindo ao magistrado o livre convencimento na apreciação das provas, podendo ele distinguir entre as melhores e as piores respostas, torna axiomática a afirmação de Dworkin de que: "As pessoas freqüentemente se vêem na iminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo" (Dworkin, 1999:3). E tal constatação faz aflorar o indispensável comprometimento político-social que esse profissional deve ter na realização de seu trabalho.

Não há como negar que o direito é um método de controle social poderoso. Warat afirma que "o Direito sancionado pelo Estado e o poder estatal organizado juridicamente surgem simultaneamente como forma de dominação política das sociedades mais desenvolvidas. Sendo assim, o poder estatal e o Direito estatal constituem-se reciprocamente" (Warat, 1996:78).

Ao mesmo tempo, é ele quem permite a libertação das amarras existentes. Nos termos de Antoine Jeammaud, para ficar no exemplo do próprio Grau, "Em outras palavras, a partir do momento em que há direito numa sociedade, desde que esse direito goze de uma eficácia suficiente e ainda que contribua a um fenômeno de dominação, esse modo de dominação, tão opressivo quanto possa ser, deve ser ajustado a um discurso justificativo mínimo e a um mínimo de formas. É nisso que o direito é irredutível à violência, que ele é uma alternativa a ela" (Aguillar, 1999:75).

E se o direito assim se apresenta, não se pode negar que ele é, além de uma forma de opressão, uma tentativa de justiça. Contrariando, uma vez mais, o que disse Grau a respeito da inexistência desta. Ora, se a justiça não existir, toda essa discussão restaria estéril, porquanto irrelevante que os juízes sejam homens virtuosos na prudência, ou que sejam cientistas jurídicos.

No que diz respeito ao pensamento de Peirce, não se pode deixar de reconhecer o imenso contributivo do filósofo norte-americano para a clarificação das idéias. Mas a lógica exposta em seu ensaio não pode ser aplicada sem reservas à realidade jurídica, sob o risco de tornar o direito frio como uma equação matemática. E é sabido que o direito, antes disso, é vivo e pulsante, como um artéria social.

Logo, a ambivalência do direito (p → q; ou p → r, ou p → s, etc. sendo q ~ r e r ~ s) é característica marcante de sua ontologia. Seria impensável exigir do legislador a criação de conceitos distintos em direito, cujas leituras levassem a uma única interpretação. É, antes, de uma plasticidade que carece o direito, bem como as demais ciências humanas.

Perceba-se que não será por acaso que os exemplos utilizados por Peirce em seu texto estão todos ligados às ciências naturais, tais como as noções de peso, de velocidade, de distância etc. Até houve um tempo em que se acreditou que se pudessem construir conceitos jurídicos como se constroem obras de engenharia. Isso se deu no Séc. XVIII, quando o jusracionalismo imperava e a lógica formal se apresentava como o único caminho para iluminar um mundo renascido das trevas da idade média.

Pensadores como François Geny, Eugen Ehrlich, Kantorowicks, Nietzsche, Recaséns Siches e tantos outros demonstraram, pelo resgate da dialética e, em alguns casos, de uma ilogicidade do ser, o quanto de belo a vida perderia na tentativa de construção de um mundo puramente lógico.

Em resumo, conclui-se que o direito não funciona como a matemática. Sua lógica, portanto, é diversa. Se tem razão Peirce na orientação de que a realidade é aquilo que é, independentemente do que pensamos que ela seja, não menos verdadeiro é o fato de assim ser a realidade do direito, independentemente daquilo que Peirce poderia ter um dia pensado sobre o que ela seria. Evidentemente que não se pode afastar totalmente a lógica do direito, senão reduzi-la a seu verdadeiro papel, que é o de organizar as nossas incertezas, ao invés de impor as nossas certezas [10].

Finalmente, sem desconsiderar o incomensurável valor das contribuições de Kelsen, Grau e de Aguillar, que muito serviram para suporte e superação, infere-se do exposto neste pequeno estudo que, para além de uma estrutura puramente lógica, deve-se buscar acentuar no direito a justiça material das decisões propostas, ainda que não rigorosamente lógicas. E, para tanto, é mais importante a qualidade do magistrado que examina o problema do que o arcabouço jurídico no qual ele se encontra. Prefere-se, assim, a opinião segundo a qual a justiça é manifestação da virtude, e do justo o magistrado se aproxima quando busca, dentre as várias opções possíveis, uma resposta melhor que outra.


8. Referência bibliográfica.

AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia da Ciência do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1999.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

TUGENDHAT, Ernest, WOLF, Ursula. Propedêutica Lógico-Semântica. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

VERICAT, José. Charles S. Peirce. El hombre, un signo (El pragmatismo de Peirce). Barcelona: Crítica, 1988

WARAT, Luís Alberto, PÊPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do Direito. Uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996.


Notas

  1. Na tradução para o espanhol "Como Esclarecer Nuestras Ideas", por José Vericat.
  2. É a opinião de Grau no referido prefácio.
  3. Essa é, inclusive, a ideia de Kelsen, para quem o problema de se achar a resposta adequada é metajurídico, ligado à filosofia ou à sociologia.
  4. Vide o Modus Ponens.
  5. Muito embora a legislação brasileira tenha expressamente optado pela interpretação teleológica, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.
  6. A pena sobe para até 30 anos no caso de crime qualificado.
  7. Quando se diz decisões antagônicas, naturalmente se considera pontos de vistas heterogêneos, de vários magistrados, sobre a mesma questão, fornecendo, cada um por si, um julgamento coerente com as razões declaradas. Não se tratam, portanto, de decisões antagônicas ou contraditórias nos seus próprios termos, onde nada se teria de decisão irregular. Também não é a hipótese do exercício de interpretações paranóicas, mas de análises plausíveis de verificação fática.
  8. É o que está previsto no art. 131 do Código de Processo Civil brasileiro.
  9. São exemplos de Dworkin, na obra citada.
  10. Vide Ernildo Stein, prefaciando a Propedêutica Lógico-Semântica de Ernst Tugendhat e Ursula Wolf,. Editora Vozes, 1996.
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Sobre o autor
Edil Batista Júnior

Procurador do Banco Central do Brasil em Recife. Pós-graduado lato sensu em direito administrativo e constitucional. Mestre e Doutor em Direito pela UFPE. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA JÚNIOR, Edil. Como tornar claras nossas idéias jurídicas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2340, 27 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13911. Acesso em: 23 dez. 2024.

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