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Considerações sobre um desconhecido Direito de Família e as dificuldades do advogado familiarista

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28/11/2009 às 00:00
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2. A DIFICULDADE DE APLICAÇÃO DA LEI DA GUARDA COMPARTILHADA

Em sequência ao disposto no tópico anterior, o advogado que tenta obter para seu cliente masculino a guarda compartilhada, ciente de que é a regra imposta pela lei – e parece que a maioria dos Magistrados ainda não se atentou para tal importante modificação legislativa –, sabe perfeitamente que é uma luta absolutamente desigual, onde a lei, embora esteja ao lado dos direitos da criança ou do adolescente que se pretende proteger, parece letra morta.

A tal respeito, citar-se-á uma situação que não me é exclusiva, mas sim da maioria dos colegas que também labutam na área do Direito de Família, sendo oportuno antes atentar a alguns dispositivos legais pertinentes.

Primeiramente, a Constituição, de forma límpida, deixa claro que é direito da criança e do adolescente a convivência familiar. E, no aspecto familiar, refere-se à família extensa, a qual inclui avós, tios, primos e todos os demais que o menor tiver vínculos de afetividade e afinidade, além, é claro, da convivência com ambos os pais, conforme textualizou os novos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, modificados pela recentíssima Lei de Adoção. Não se acredita que haja interpretação diversa da presente.

Após esse breve relato acerca da evolução legislativa referente à matéria, concluímos que, apesar de o Princípio do Melhor Interesse da Criança estar previsto em nosso ordenamento jurídico desde 1.941, o interesse da criança em si somente passou efetivamente a sobrepor-se aos interesses os pais a partir de 1.977 e, ainda assim, de forma tímida, dentro da separação consensual, pois somente nessa hipótese a Lei faculta ao Juiz não homologar o acordo estabelecido pelos pais, se ficar convencido de que ele poderá trazer sérios prejuízos para a criança ou adolescente.

Observe-se que o legislador civilista não se reportou às demais hipóteses de separação, até porque, em relação a elas, a Lei traçava as diretrizes a serem seguidas, sempre prevalecendo os interesses dos pais sobre os filhos.

Esta situação somente foi modificada a partir de 1.988, com a promulgação da Constituição Federal e do advento da Lei 8.069/90, quando a criança deixou de ser percebida como um ser em que faltam as qualidades dos adultos, para ser encarada como uma pessoa que se encontra num estágio de desenvolvimento pessoal, período em que se vislumbram as melhores qualidades do homem.

Como conseqüência dessa transformação, as crianças passaram a ser consideradas como sujeito de direitos, cabendo à sociedade cercá-las de cuidados especiais, dentre eles o direito de ser sempre priorizada. Assim, num confronto de seus direitos com os direitos de um adulto, prevalecerá sempre o delas. (SANTOS, Ângela Maria Silveira dos. Da proteção da pessoa dos filhos. In: LEITE, Heloísa Maria Daltro [coord.]. O novo direito civil – do direito de família. 1. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 147).

Recentemente, em uma das modificação inseridas no Código Civil pela Lei nº 11.698, de 13.06.2008, prevendo o caso de litígio entre os genitores, assim ficou a nova redação do artigo 1.584 do Código Civil:

Art. 1.584, CC. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:

II – decretada pelo juiz, em atenção às necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.

E os dois primeiros parágrafos do mesmo artigo ainda acrescentam:

Parágrafo 1º. Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, à sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.

Parágrafo 2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.

Pois bem. A lei mudou. Os códigos comprovam tal modificação. A guarda unilateral foi extirpada do modelo ideal ou preferencial de guarda dos filhos, não cabendo aos pais a escolha pura e simples pela guarda unilateral em desfavor da forma compartilhada, ao contrário do que possa vir a parecer pela leitura isolada do texto do inciso I do artigo 1.584 do Código Civil.

A esse respeito, torna-se oportuno anotar um aspecto especialmente importante nesta exposição. Diz o inciso I do artigo 1.584, CC, que a guarda unilateral poderá ser requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar. Ao mesmo tempo, diz o artigo 1.586, do mesmo Código Civil, que, em havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente a situação deles para com os pais. Ou seja: o que a lei faculta aos genitores é requerer ao juiz a adoção, àquele caso, da guarda unilateral. Recebido o pedido, como é de lei, o juiz deve determinar a realização de uma audiência com as partes, a qual, em princípio, servirá para ratificarem o intuito de se separarem ou de dissolverem a união estável, de comprovarem o lapso temporal necessário ao divórcio, bem como para confirmarem todos os termos ali expostos por consensualidade sobre os direitos disponíveis. Durante a realização de tal audiência, o juiz deverá – e não poderá – dar efetividade aos preceitos do parágrafo 1º. do artigo 1.584 do Código Civil, ou seja, deverá instruir as partes sobre o que seja a guarda compartilhada e as vantagens de tal modelo. Se ainda assim as partes mantiverem o intuito de manter a guarda unilateral, o Magistrado, atento ao grave risco que a experiência mostra cabalmente (de que a guarda unilateral é uma forma de extinção gradual dos vínculos de afetividade que unem o menor e o genitor não detentor da guarda, transformando-o em mero pagador de pensão, o que resulta em prejuízo manifesto à formação e desenvolvimento das crianças e adolescentes), deverá determinar a realização de estudo psicossocial do caso, nos termos do que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, para, somente depois, ter elementos para fundamentar sua decisão, a qual, se for pela guarda unilateral, deverá ser justificada com elementos de prova constantes dos autos, autorizando o recurso do Ministério Público, sob pena de manifesta inconstitucionalidade por ofensa ao seu artigo 227, que determina que o Estado deverá assegurar a convivência familiar à criança e ao adolescente.

É também por este motivo que a Lei n. 11.441/2007, ao possibilitar a separação judicial e o divórcio consensuais em cartório, não os possibilitou quando houvesse filhos menores ou incapazes do casal, haja vista a preocupação constitucional com o bem estar destes e a adequação da guarda pretendida pelo extinto casal.

Alguém alegará que, mesmo imposta a guarda compartilhada, nada obriga o genitor a conviver com o menor após a extinção do casal, o que não deixa de ser uma verdade. Todavia, se tal situação ocorrer, duas verdades restarão: 1. o Estado não abraçou tal abandono, tendo declarado naquela sentença predominantemente homologatória que a presença do pai se fazia necessária no desenvolvimento da criança, o que pode ser um fator de reflexão até para o pai mudar seu posicionamento ao tomar ciência da importância de sua presença na vida de seu descendente, e 2. a figura paterna é, conforme orienta a Psicologia, uma posição, um lugar a ser preenchido; ou seja, caso o pai torne-se de fato relapso, ausente, um outro homem, que venha a se tornar o novo cônjuge de sua genitora, dedicando-lhe o carinho, afeto e atenção não outorgados pelo pai distante, tende a suprir a ausência paterna com maestria, não ocasionando nenhum prejuízo ao desenvolvimento sadio e próspero desta criança, ao contrário do pai biológico que perderá, definitivamente, o afeto de sua descendência.

Decorrência desse novo paradigma da guarda compartilhada, principalmente a manutenção dos vínculos afetivos e cessação da discriminação entre o genitor guardião e o não guardião, é a criação da Lei nº 12.013, de 06 de agosto de 2009, que, alterando a redação do artigo 12 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1.996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, obriga os estabelecimentos de ensino a informar pai e mãe, conviventes ou não com seus filhos, e, se for o caso, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução da proposta pedagógica da escola.

Diante de toda essa nova realidade e retornando à experiência profissional a ser citada, tratando da realidade dos advogados do Direito de Família, diante de inúmeras modificações advindas da lei, largamente festejadas pela doutrina especializada e pela interdisciplinaridade, especialmente pela Psicologia – que sempre lutou contra os nefastos efeitos invariavelmente ocasionados pela guarda unilateral, ocasionadora do rompimento do vínculo afetivo entre o menor e o genitor não guardião –, somos sempre tomados de extrema perplexidade ao adentrarmos em uma sala de audiências onde a guarda de filhos é debatida – e onde normalmente estão os ex-consortes a digladiar-se por patrimônio, créditos, débitos e nomes de família, além de acusações recíprocas por desrespeitos cometidos, onde o sentimento de revolta e desejo de vingança costuma abraçar a alma dos contendores – e o Magistrado, sem maiores delongas, limita-se a questionar às partes se aceitam compartilhar a guarda dos filhos livremente, e, em caso negativo, descartar liminarmente este compartilhamento. Entre pessoas que nutrem profundas mágoas, que desejam ver-se vingadas, que momentaneamente desejam o mal do adversário, não seria uma vitória se a uma delas fosse dado o direito de punir a outra com a privação do direito à convivência com o filho que tanto ama? Não seria essa a forma perfeita de causar à parte adversa um sofrimento igual ou superior ao que estaria sentindo? A atitude do Magistrado, de descartar de imediato a guarda compartilhada porque a genitora assim não o quis (e aqui digo genitora porque é o que rotineiramente acontece, advindo da lesiva presunção já descrita de que a maternidade é sempre preferencial), é atitude que resulta em tornar letra morta a alteração legislativa, em desrespeitar o trabalho exaustivamente realizado pela interdisciplinaridade, em desconsiderar os árduos e dolorosos estudos realizados pela Psicologia, em desumanizar o tratamento a ser dado pelo Judiciário às crianças e adolescentes, enfim, é enterrar definitivamente a letra da lei e todos os ditames constitucionais retro citados.

Dessa forma, talvez pelo fato de a Lei nº 11.698/2008 ser absolutamente recente e por outorgar diretriz oposta a um século de comodismo e pouca preocupação de fato com o que seriam os reais interesses dos menores, os advogados militantes na seara do Direito de Família estão a ver tal lei ser ainda ineficaz, mas não devem conformar-se com tal situação – e tenho certeza de que assim não o farão –, lutando contra tal habitualidade e fazendo romper a mentira da superioridade da guarda materna, o que deve ser observado também pelos advogados que labutam em defesa dos direitos da genitora, pois, em caso de guarda, os direitos a serem tutelados são os dos menores e não da cliente que os constituiu, de forma que conscientizem, a si e às suas clientes, de que nos Juízos de Família não devem haver perdedores, pois esses, se existirem, são sempre as crianças e adolescentes.


3. A DIFICULDADE DE ACEITAÇÃO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO UMA REALIDADE PRESENTE E O DIREITO AO CASAMENTO

Realidade já constante do corpo da Constituição Federal, mas que ainda resvala em amplo preconceito, e aqui não só dos Magistrados, mas de grande parte da sociedade civil, incluindo-se os operadores do Direito, entre os quais parte da classe dos advogados, trata-se de reconhecer a desnecessidade de um novo corpo legislativo que regulamente a união homoafetiva, pois a proteção legislativa estatal já existe, só não tendo obtido ainda a efetividade necessária.

Não existe um único dispositivo na Constituição Federal que diga que a família deva ser constituída somente entre pessoas de sexos diferentes. Aliás, quando se estuda o casamento entre pessoas de sexo divergentes está se analisando, tão somente, o casamento da Igreja Católica, não sendo possível esquecer que o Estado brasileiro, por imperativo constitucional, embora garanta o direito individual à crença religiosa, é um Estado laico, não podendo impor preferência a qualquer espécie de religião.

Nem a constituição nem o Código Civil impõem a diversidade de sexo dos noivos como condição para a celebração do casamento. Assim, para sustentar a existência de casamento inexistente, invoca-se como exemplo o casamento homossexual. Ora, se esse exemplo, até há algum tempo, poderia servir, hoje se tornou praticamente imprestável para tal fim. A diversidade de sexo do par não é mais um elemento essencial para o casamento, ao menos em alguns países (Holanda, Bélgica, Espanha e Canadá, por enquanto), que autorizam o casamento de duas pessoas sem preocupação com o sexo ou a orientação sexual dos noivos. Se a divergência de sexo não está na lei e o casamento não mais tem a procriação por finalidade, talvez, como alerta Luiz Edson Fachin, haja um equívoco na base da formulação doutrinária e jurisprudencial acerca da diversidade de sexos como pressuposto do casamento. (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.009, p. 252).

Os que defendem tal teoria – não reconhecimento legal da família homoafetiva –, de forma equivocada ou tendenciosa, tentam fundamentar sua decisão em uma interpretação restritiva do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, o qual possui os seguintes dizeres:

Art. 226, CF. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Parágrafo 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

Assim, os que combatem a existência de proteção estatal às uniões homoafetivas tentam impor que as "espécies" de família são somente aquelas descritas na Constituição Federal, que exige a divergência de sexos para o seu reconhecimento.

Sempre que se fala em família não fundada no casamento, surge a polêmica questão da união de pessoas do mesmo sexo. Como dito no tópico sobre uniões estáveis, a Constituição Federal de 1.988 excluiu a possibilidade de se reconhecer as uniões entre homossexuais como entidades familiares, pois no artigo 226, parágrafo 3º., expressamente se refere à união ‘entre o homem e a mulher’. (VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades familiares. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002, p. 143-144).

Tal entendimento nunca foi defendido por isentos estudiosos das necessidades e desejos do Direito de Família. A realidade homoafetiva nasceu desde que o ser humano se reconheceu como tal, e não é dado ao Direito, em pleno século XXI, ignorar tal situação.

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Assim, independentemente das pressões políticas e religiosas que a cercam, mas que não serão tratadas no presente estudo, a consciente Constituição Cidadã de 1988, naquele citado parágrafo 3º do artigo nº 226, não é taxativa e justificou-se tão somente pela preocupação em acabar com outro odioso preconceito, qual seja, reconhecer definitivamente a união extramatrimonial entre homem e mulher como entidade familiar e elevar sua proteção a nível constitucional, e o fato de sugerir que a lei deveria facilitar a conversão da união estável em casamento não foi um favorecimento ou uma predileção pelas entidades familiares constituídas sob a forma do matrimônio, mas, tão somente, para não burocratizar por demasia tal conversão, pois há muitas hipóteses práticas, e tão somente práticas, em que a existência do casamento realmente torna mais cômoda a vida das pessoas.

Mas, e aqui reafirmamos, não há que se falar em uma prevalência entre união estável diante do casamento ou o inverso, porque as duas referem-se a uma só realidade, qual seja, formas de constituição de uma mesma entidade familiar.

Mas voltando a cerne do presente tópico, a dificuldade e o preconceito dos advogados que labutam para gays, lésbicas, transexuais e travestis é manifesta, inclusive chegando ao absurdo de tais profissionais terem sua sexualidade questionada (ou seja, em manifesta violação à intimidade e vida privada) ao exercerem seu ofício em prol de tais grupos sociais.

E quanto constrangimento é ocasionado às partes que desejam ver seus direitos resguardados! Quanta dificuldade é imposta aos casais homossexuais quando querem inclusive fazer o bem a alguém, como adotar uma criança! Quantas ofensas, contrariedades e humilhações lhes são impostas ao pretenderem casar-se, sendo que este é um direito que lhes é constitucionalmente assegurado!

Nossa sociedade precisa repensar a desigualdade com que trata, não apenas no aspecto social, mas também jurídico, aqueles que não correspondem ao "ideal" e que estão presentes para lembrar a diferença que muitas vezes choca justamente por esconder aquilo que alguns mais temem: o encontro com sua própria verdade ou com um preconceito disfarçado. Indivíduos que assumem suas desigualdades não podem ser condenados como se fossem seres desprovidos de qualquer qualidade e estivessem impossibilitados de dar amor e cuidados a uma criança só por não representarem o tradicionalmente aceito. (CHEMIN, Silvana Aparecida. SESARINO, Shirley Valera Rialto. Adoção e homossexualidade: a civilização e seu mal estar. In: CARVALHO, Maria Cristina Neiva de. MIRANDA, Vera Regina [coord.]. Psicologia jurídica – temas de aplicação. 1. ed., Curitiba: Juruá, 2008, p. 132).

Mas parte da doutrina, notadamente a especializada em direitos disponíveis, não tarda a defender o impedimento da união ou casamento homoafetivos, pregando a citada interpretação restritiva ao artigo 226 da Constituição Federal.

O ordenamento jurídico, dessa forma, passou a tutelar as entidades familiares, ressalvando que não poderão ser formadas por pessoas de mesmo sexo. Enquanto a união de pessoas do mesmo sexo não alcança o ‘status’ de família – o que provavelmente ocorrerá quando a questão estiver pacificada em um número mais significativo de países –, não podem ser reconhecidos em seu favor efeitos jurídicos no âmbito do Direito de Família. Os homossexuais, então, não podem se casar ou constituir união estável, e estão biológica e legalmente impedidos de assumir uma prole comum.

No tocante à impossibilidade de constituir família matrimonializada, verifica-se que, a despeito de não haver no Código Civil disposição que expressamente determine a realização de casamento entre homem e mulher, a diversidade de sexo é considerada seu pressuposto essencial. Observa-se, nos dispositivos que regulam o casamento, a constante menção a ‘cônjuges’, ou a ‘homem’ e ‘mulher’, como sujeitos de relação jurídica matrimonial. (VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades familiares. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002, p. 144).

Em boa e firme posição, todavia, encontra-se a doutrina familiarista especializada que, com lucidez e despida de preconceitos, acompanha o entendimento mais humanizado e preponderante no presente artigo, trazendo a lume o amplo alcance do citado artigo 226 da Constituição Brasileira.

Percebe-se, por conseguinte, estar em rota de colisão com a norma constitucional o entendimento que exclui a proteção constitucional familiar de outros modelos de família não previstos exaustivamente no art. 226 da Lex Fundamentallis. Trata-se, em verdade, de problema hermenêutico, uma vez que a interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais conduz, com mão segura, à idéia da inclusão de outros modelos familiares.

Na esteira do que aqui se sustenta, nossos Pretórios têm reconhecido que a presença do caráter afetivo como mola propulsora de algumas relações, a caracteriza como entidade familiar (independente da previsão constitucional), merecendo a proteção do Direito de Família e determinando, por conseguinte, a competência das varas de Família para processar e julgar os conflitos delas decorrentes, como afirmado pela Corte gaúcha em aresto referido alhures. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nélson. Direito das famílias, 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2.008, ps. 36-37).

E, como família, os casais homossexuais têm efetivos e idênticos direitos como outra família qualquer, e aqui, em particular, citamos o direito pleno à adoção, embora decisões nesse sentido ainda sejam exceções.

Adoção. Casal formado por duas pessoas de mesmo sexo. Possibilidade. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram provimento. Unânime. (SÉTIMA CÂMARA CÍVEL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 70013801592. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Porto Alegre, 05.04.2006).

E a adoção por homossexuais também é apoiada pela interdisciplinaridade:

Fica a questão se o mais importante é uma criança institucionalizada em condições mínimas de recursos materiais, afetivos e psíquicos, ou adotada por um indivíduo, que tem como único empecilho sua questão sexual, mas capaz de propiciar a essa criança o adequado desenvolvimento afetivo e psíquico, tão necessários durante os primeiros anos de vida. A razão deve prevalecer sobre a emoção, pois nem sempre uma família constituída por um casal heterossexual ou por apenas um dos pais, é garantia de uma conduta socialmente regular e estável, capaz de assegurar proteção, educação e transmissão de valores a uma criança. Diariamente somos invadidos por todos os meios de comunicação com notícias de crianças submetidas por seus pais biológicos aos mais diversos tipos de sofrimento físico e emocional. Também não podemos esquecer que uma família tradicional ao adotar uma criança esperando formar uma relação perfeita onde todos supostamente apresentam os requisitos desejados para que isso aconteça, não estará segura que tudo ocorrerá confirme o imaginariamente idealizado. (CHEMIN, Silvana Aparecida. SESARINO, Shirley Valera Rialto. Adoção e homossexualidade: a civilização e seu mal estar. In: CARVALHO, Maria Cristina Neiva de. MIRANDA, Vera Regina [coord.]. Psicologia jurídica – temas de aplicação. 1. ed., Curitiba: Juruá, 2008, p. 131).

Argumentar-se-á, a categoria dos intermediariamente liberais, que eles podem até viver em união estável ou situação análoga, mas em casamento jamais, pois dispõe o artigo 1.514 do Código Civil que o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

O que se pode entender, à primeira vista, com tal comentário é que, no Código Civil Brasileiro, existe a regulamentação do casamento entre pessoas de sexos opostos, de forma que faltaria lei específica autorizando o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Mas, será que realmente falta? Será o Código Civil o único dispositivo legal que trata do contrato/instituto do casamento? Ou será que existe uma lei superior ao Código Civil que, após reconhecer que todas as famílias são iguais em direitos e proteção Estatal, sejam constituídas ou não do vínculo do casamento, não exige que uma família só seja considerada como tal em havendo divergência de sexos? Pois é, caros estudiosos do Direito, existe uma Constituição Federal nesse sentido, e essa mesma Constituição, por seu artigo 226, parágrafo 1º, garante que o direito ao casamento é uma das formas de proteção especial outorgada à família em sentido amplo! Pensar diversamente seria cercear direitos fundamentais a uma categoria de pessoas em virtude de sua mera opção sexual, o que é inconcebível!

A possibilidade legal de efetivo casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade respaldada na Constituição, ao qual o Código Civil deve adaptar-se. E o primeiro texto legislativo a conceituar a família sem vinculação com os sexos dos consortes é a Lei Maria da Penha, conforme se vê em seu festejado artigo 5º, inciso II, e seu parágrafo único.

Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2.006).

Por tal motivo, entendo ser totalmente desnecessária – e, de certa forma, preconceituosa – a aprovação do Projeto de Lei nº 1.151, de 26.10.1995, apresentado pela então deputada Marta Suplicy, que encontra-se parado no Congresso Nacional desde a data de 31.05.2001, quando foi retirado da pauta de discussão por mero acordo de líderes, tendo, desde então, somente obtido, em 14.08.2007, um requerimento do Deputado Celso Russomanno pedindo sua inclusão na ordem do dia, requerimento esse que, diante de pressões pseudomoralistas, até os dias atuais sequer foi apreciado.

O que deveria buscar tal projeto de lei, aliás, é tão somente o que qualquer família já tem direito – daí sua real dispensabilidade, bastando apenas abrir os olhos e aceitar a nova realidade constitucional imposta –, como o direito à constituição de um bem de família, partilha do patrimônio familiar (e não societário), de obter benefícios previdenciários, de obter direitos sucessórios, de terem reconhecimento de seu efetivo estado civil de casados ou de conviventes conforme o desejem, e não simplesmente criar o lastimável rótulo de parceiros civis por uma sugestão infeliz do sempre admirado – inclusive por este escritor – Dr. Luiz Edson Fachin.

Esse jurista paranaense, escrevendo sobre a convivência de pessoas do mesmo sexo, em outubro de 1.996, concluiu seu artigo, ponderando que ‘humanismo e solidariedade constituem, quando menos, duas ferramentas para compreender esse desafio que bate às portas do terceiro milênio com mais intensidade. Reaprender o significado de projeto de vida em comum é uma tarefa que incumbe a todos, num processo sacudido pelos fatos e pela velocidade das transformações. Em momento algum pode o Direito fechar-se feito fortaleza para repudiar ou discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos jurídicos que emergem das parcerias de convívio e de afeto. Esse é um ponto de partida para desatar alguns nós que ignoram os fatos e desconhecem o sentido de refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso socioafetivo.’" (AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Estatuto da Família de Fato. 2. ed. São Paulo: Atlas S/A, 2.002, p. 475).

O tratamento discriminatório de tal projeto de lei se configura especialmente ao descrever as formas de dissolução desta entidade familiar, afirmando, numa ótica patrimonialista e insensível, que a extinção da parceria civil registrada pode ser requerida demonstrando-se a infração contratual em que se fundamenta o pedido.

Artigo 5º. Qualquer das partes poderá requerer a extinção da parceria civil registrada: I – demonstrando a infração contratual em que se fundamenta o pedido; II – alegando o desinteresse na sua continuidade (Projeto de lei nº 1.151/95).

Tal debate é tão forte, tão enraizado de preconceitos e dogmas contraditórios, que se torna oportuno transcrever alguns trechos do voto em separado ao citado projeto de lei, de autoria do deputado federal Severino Cavalcanti e que acompanha os autos legislativos em questão:

(...) o caráter profundamente rejeitável do projeto:

a) Um tríplice atentado contra a lei moral.

Vemos assim que, do ponto de vista moral, este projeto se apresenta como triplamente abominável e nefasto.

– No campo individual, estimula o pecador a manter-se em seu pecado – pecado este muito grave, que clama a Deus por vingança – ao proporcionar-lhe segurança psicológica, social e econômica para a prática do mesmo.

– no campo social, induz a sociedade com naturalidade e simpatia tal pecado, incutindo-lhe um espírito de completa amoralidade e radical relativismo.

– no campo institucional, propõe ao Poder Público o reconhecimento oficial e a legislação dessa forma de vida. Caso o projeto venha a ser aprovado e sancionado, isso será mais uma afronta feita a Deus pelo Estado brasileiro, a ser acrescentada a várias outras, com a agravante de ser ainda pior que as anteriores.

b) atrai a cólera divina sobre o Brasil.

Escrevemos como católicos, que acreditam em Deus e esperam a manifestação de Sua justiça. Se um país ofende muito gravemente a Justiça Divina através da multiplicação de um pecado que é praticado com desfaçatez e arrogância por indivíduos, pela sociedade e pelo Estado, o que esse país deve esperar de Deus? Misericórdia? A misericórdia de Deus é para aqueles que a pedem, e não para aqueles que a desprezam. Este tríplice pecado não é um pedido de misericórdia, mas um desprezo da mesma.

Resta então a justiça. E a história tem mostrado que Deus castiga os povos e as nações que prevaricam, embora algumas vezes tal castigo tarde em chegar, parecendo até que não virá.

Aprovando o projeto de lei comentado acima, o Brasil se coloca entre as nações que nada mais têm a esperar de Deus, senão o desencadear de sua ira. E esta virá sobre todos, e não apenas sobre os governantes e os legisladores que reconhecem e legalizam o pecado. Mas também sobre todos os que o praticam, encaram-no com naturalidade, indiferença ou simpatia. E, muito especialmente, sobre aqueles que, por sua própria condição, têm a obrigação e os meios legais para combatê-lo e, por omissão ou ação, não o combatem e até o favorecem. (CAVALCANTI, Severino. Câmara dos deputados do Brasil. Diário Oficial da Câmara dos Deputados. Brasília: Câmara dos Deputados, 1.997, 1.834 p.)

Concluindo o raciocínio que havíamos iniciado: se a Constituição permite que a união de duas pessoas do mesmo sexo possa formar uma família, e que é direito de qualquer família ser regulamentada pelo casamento, poderia uma lei hierarquicamente inferior proibir o casamento de pessoas do mesmo sexo? Ou, mais além, poderia uma lei hierarquicamente inferior disciplinar uma espécie de casamento para famílias heteroafetivas e outra espécie para famílias homoafetivas, tratando desigualmente situações absolutamente iguais, em especial diante do artigo 5º, caput, e inciso I, entre outros, da Constituição Federal?

Ora, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma possibilidade real e presente, já contém todos os dispositivos legais necessários, já é plenamente regulamentado, não precisa de mais nada. Se precisar de algo, é de que os aplicadores do Direito, em especial os Magistrados, reconheçam a realidade, ainda que para um ou outro não lhes pareça simpática, mas que façam valer os ditames constitucionais e legais pertinentes, ou então neguem, por termo escrito e em claras letras, que, ao contrário do que consta da Constituição pátria, a República Federativa do Brasil não tem como objetivo promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, sugerindo uma emenda constitucional – se é que isso seria possível – para suprimir o inciso IV da cláusula 3ª da Carta Magna aqui transcrito.

Todavia, enquanto essa realidade jurídica não se torna uma realidade fática, resta-nos o consolo de perceber que os Tribunais, paulatinamente, já vêm, a passos lentos, encarando a união homoafetiva como uma atualidade, uma verdade inegável, uma luz que não pode ser apagada.

São cada vez mais frequentes decisões judiciais que atribuem consequências jurídicas a essas relações. Como ainda o tema é permeado de preconceitos, predomina a tendência jurisprudencial de visualizar tais vínculos como mera sociedade de fato. Tratados como sócios, aos parceiros somente é assegurada a divisão dos bens amealhados durante o período de convívio e de forma proporcional à efetiva participação na sua aquisição. Felizmente, começa a surgir uma nova postura. Reconhecidas as uniões homoafetivas como entidades familiares, as ações devem tramitar nas varas de família. Assim, nem que seja por analogia, deve ser aplicada a legislação da união estável, assegurando-se partilha de bens, direitos sucessórios e direito real de habitação. (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.009, p. 47-48).

Dois exemplos são dignos de nota, pois se referem às duas primeiras decisões judiciais que reconheceram, para efeitos diversos (a primeiro, para fins de competência processual; e a segunda, para fins de partilha de patrimônio), a união homoafetiva como entidade familiar e, como era de se esperar, foram fruto do vanguardismo dos sempre rememorados Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 599075496, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. Breno Moreira Mussi, julgado em 17.06.1999)

União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a maior hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (Apelação Cível nº 70001388982, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 14.03.2001)

Digna de nota, também, o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela concedida na Ação Civil Pública nº. 2000.71.00.009347-0, concedida pela Terceira Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, em demanda proposta pelo Ministério Público Federal em desfavor do Instituto Nacional de Seguridade Social, a qual importou na edição da Instrução Normativa nº 25, de 07 de junho de 2.000, garantindo aos companheiros de homossexuais falecidos o direito à pensão previdenciária, bem como o auxílio reclusão, haja vista que o trabalhador homossexual contribui para o regime da previdência da mesma forma que o trabalhador heterossexual.

Outra decisão digna de ser aplaudida e referenciada foi a expedida nos autos da Ação Civil Pública nº 2003.61.00.026530-7, proferida pelo meritíssimo Magistrado da Sétima Vara da Justiça Federal de São Paulo, a qual, também em antecipação dos efeitos da tutela pretendida, obrigou a Superintendência de Seguros Privados do Ministério da Fazenda a editar a Circular nº 257, de 21 de junho de 2.004, equiparando os companheiros homossexuais aos heterossexuais, para fins de dependência preferencial da mesma classe, com direito a percepção de indenização referente ao seguro DPVAT.

Posteriormente, novamente provocado pelo Ministério Público Federal, o Judiciário, por intermédio da Nona Vara da Justiça Federal em São Paulo, também mediante antecipação de tutela dos efeitos pretendidos na sentença, nos autos da Ação Civil Pública de nº. 2005.61.00900598-6, determinou que a União, por intermédio das unidades integrantes do Sistema Nacional de Transplantes, requisite autorização do companheiro homossexual sobrevivente para que se proceda à doação de órgãos do consorte falecido, reconhecendo que não havia – como de fato não há – motivos para tratar diferentemente tais entidades familiares, já que igual autorização era exigida das pessoas heterossexuais casadas.

Ou ainda:

Bem por isso, o Tribunal Superior Eleitoral, em fundada decisão, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar para fins de inelegibilidade eleitoral (CF, art. 14, parágrafo 7º), observando se tratar de um ‘dado da vida real’, em que, ‘assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos". (TSE, Ac. unân., Rec. Especial Eleitoral 24564/PA, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004). (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nélson. Direito das famílias, 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2.008, p. 55).

Mas, ratifica-se, que, até que se faça a correta e definitiva leitura dos termos constitucionais, tal questão está muito longe de ser aceita e finalmente pacificada, como vemos em recentíssima, porém injusta e inconstitucional, decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que insiste em negar a figura familiar na união de pessoas do mesmo sexo, determinando a competência das varas cíveis para a partilha de patrimônio adquirido em comum, num constrangedor conservadorismo de considerar o ente familiar homossexual como mera sociedade de fato.

Agravo de instrumento. Constitucional. Civil. Processo civil. Competência para processar e julgar ação de reconhecimento e dissolução de relação homoafetiva. 1 - A definição do juízo a que legalmente compete apreciar tais situações fáticas conflitivas, é exigência do princípio do juiz natural e constitui garantia inafastável do processo constitucional. 2 - Ausente regra jurídica expressa definidora do juízo responsável concretamente para conhecer relação jurídica controvertida decorrente de união entre pessoas do mesmo sexo, resta constatada a existência de lacuna do direito, o que torna premente a necessidade de integração do sistema normativo em vigor. Nos termos do que reza o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, a analogia é primeiro, entre os meios supletivos de lacuna, a que deve recorrer o magistrado. 3 - A analogia encontra fundamento na igualdade jurídica. O processo analógico constitui raciocínio baseado em razões relevantes de similitude. Na verificação do elemento de identidade entre casos semelhantes, deve o julgador destacar aspectos comuns, competindo-lhe também considerar na aplicação analógica o relevo que deve ser dado aos elementos diferenciais. 4 - A semelhança há de ser substancial, verdadeira, real. Não justificam o emprego da analogia meras semelhanças aparentes, afinidades formais ou identidades relativas a pontos secundários. 5 - Os institutos erigidos pelo legislador à condição de entidade familiar têm como elemento estrutural - requisito de existência, portanto - a dualidade de sexos. Assim dispõe a declaração universal dos direitos humanos em seu preâmbulo e no item 1 do artigo 16. No mesmo sentido a constituição brasileira promulgada em 05/outubro/1988 (artigo 226 e seus parágrafos), o Código Civil de 2002 e Lei n.º 9.278, de 10/maio/1996, que regulamenta o parágrafo 3º do artigo 226 da CF. 6 - As entidades familiares, decorram de casamento ou de união estável ou se constituam em famílias monoparentais, têm como requisito de existência a diversidade de sexos. Logo, entre tais institutos, que se baseiam em união heterossexual, e as uniões homossexuais sobreleva profunda e fundamental diferença. A distinção existente quanto a elementos estruturais afasta a possibilidade de integração analógica que possibilite regulamentar a união homossexual com base em normas que integram o direito de família. 7 – As uniões homossexuais, considerando os requisitos de existência que a caracterizam e que permitem identificá- las como parcerias civis, guardam similaridade com as sociedades de fato. Há entre elas elementos de identidade que se destacam e que justificam a aplicação da analogia. 8 - Entre parcerias civis e entidades familiares há fator de diferenciação que, em atenção ao princípio da igualdade substancial, torna constitucional, legal e legítima a definição do juízo cível como competente para processar e julgar demandas relativas a uniões homossexuais, que sujeitas estão ao conjunto das normas que integram o direito das obrigações. 9 - Agravo conhecido e provido para declarar a incompetência da vara de família e competente uma das varas cíveis da circunscrição especial judiciária de Brasília, DF, para processar e julgar ação de reconhecimento e dissolução de relação homoafetiva. 10 - Precedentes judiciais. Em especial, conflitos de competência nºs. 20030020096835, 20050020054577 e 20070020104323, Primeira Câmara Cível deste egrégio tribunal. (TJDF; Rec. 2008.00.2.012928-9; Ac. 357.875; Quinta Turma Cível; Relª Desª Diva Lucy de Faria Pereira Ibiapina; DJDFTE 26/05/2009; Pág. 91) (Publicado no DVD Magister nº 26 - Repositório Autorizado do TST nº 31/2007)

O que gera extrema incongruência é o fato de que foi exatamente o Brasil a primeira nação a propor, perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a edição de medidas que coíbam a discriminação entre cidadãos com base em sua orientação sexual. Esta posição externa é enfraquecida com a visão interna divergente sobre o mesmo tema, cuja barreira única é o preconceito, vício esse combatido expressamente pela Constituição, conforme aqui já citado repetidas vezes.

Torna-se necessária uma mobilização cada vez maior dos operadores do Direito para fazerem da Constituição Federal uma letra viva, a fim de extirpar, o quanto possível, o preconceito nos julgamentos, de forma a outorgar às famílias, entidades criadas e mantidas pelo afeto mútuo, independentemente da questão menor de sua orientação sexual, o que lhes é de direito, respeitando sua dignidade, intimidade, liberdade e igualdade, fatores esses que caracterizam o Estado Democrático e Social de Direito.

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Sobre o autor
Roberto Lins Marques

Advogado militante. Pós-graduando em Direito Civil. Ex-membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG .Graduado no Curso de Formação de Governantes da Escola de Governo do Triângulo Mineiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Roberto Lins. Considerações sobre um desconhecido Direito de Família e as dificuldades do advogado familiarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2341, 28 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13927. Acesso em: 23 abr. 2024.

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