Das prováveis consequências da adoção da tese de que a Defensoria ostenta legitimidade ampla para a ação civil pública
Pensemos nas consequências de se dar legitimidade autônoma à Defensoria para proteger interesses difusos. O que fará o órgão, o único legitimado constitucionalmente a fazer a defesa dos interesses individuais dos necessitados? Atuará primordialmente na defesa individual dos necessitados ou dará menos atenção a ela para tutelar interesses difusos?
Dados obtidos pelo MPF nos autos da ação civil pública n. 2009.80.00.004678-1 sobre a atuação da Defensoria Pública da União nas varas federais e do trabalho em Alagoas bastam a responder a esses questionamentos.
Por primeiro, ressalto que, no contexto de escassez de recursos humanos comum a todos os órgãos do Estado, nada há de ilegal em eleger prioridades. O Defensor Público-Geral da União assevera nos consideranda da Portaria n. 48, de 09/12/2008, que "a maior parte dos assistidos da Defensoria Pública da União encontra-se perante os Juizados Especiais Federais". Essa é, portanto, a área eleita como prioridade pela Defensoria. Vejamos o que ela tem feito por seus assistidos na seara que considera prioritária. Comecemos examinando o modo de atuação da Defensoria no Juizado Especial Federal(JEF) em Maceió.
Segundo informações prestadas pelo Juizado Especial Federal(JEF) em Maceió [09], a Defensoria Pública da União atua em 195 feitos no Juizado, enquanto uma única advogada voluntária o faz em 291 processos. De acordo com esses dados, uma advogada voluntária, sozinha, lida com uma volume de processos 50% maior que os de todos os cinco Defensores Públicos da União em Alagoas somados. Ressalte-se que há 14.416 ações tramitando no JEF em Maceió. Em boa parte delas, autor ou réu, devido à competência do Juizado Especial Federal, poderiam se enquadrar no conceito de necessitados. Ainda assim, a Defensoria atua em somente 1,35% dos processos no JEF.
Foquemos agora nas varas do trabalho. Nelas a situação não é diferente da notada no JEF. O Defensor Público-Geral da União, por meio da Portaria n. 484/2008, o art. 2º, parágrafo quarto, estipulou o seguinte:
§ 4º - Em relação às atribuições da Justiça do Trabalho, como ainda não se tem uma exata dimensão da demanda pela Defensoria Pública da União nesta área, resolve-se desenvolver um Projeto Piloto em Brasília-DF, que, posterior e gradativamente, será estendido a todas as unidades do país nas próximas criações de cargos.
A pergunta que se põe diante desse dispositivo é evidente: até a "implantação posterior e gradativa" do Projeto Piloto, o que ocorrerá com os necessitados que precisarem da Defensoria Pública nas varas de trabalho? Essa dúvida é esclarecida pelos dados prestados pela Direção de Secretaria do Juiz Diretor do Foro das Varas dos Trabalhos em Maceió [10]. Segundo os ofícios remetidos ao MPF, a Defensoria Pública não atua em nenhum processo trabalhista nas varas de trabalho da capital de Alagoas.
Nem se diga que a razão desse tipo de atuação no Juizado Especial Federal e nas Varas do Trabalho está no fato da população não provocar a Defensoria. Em primeiro lugar, quanto ao JEF, estamos a tratar de campo no qual, como reconhece o próprio Defensor Público-Geral da União, concentra-se a maior demanda da Defensoria. Em segundo, pelo perfil financeiro de grande fatia dos reclamantes na Justiça do trabalho, é impossível crer que ao menos parte deles não procure advogados públicos gratuitos: os defensores.
A legitimidade da Defensoria para atuar em defesa de interesses difusos pode gerar ainda conflitos insolúveis entre o órgão e os necessitados que deveria representar. Vejamos o exemplo a seguir. O art. 18 da Lei 9.985/00 trata da utilização de Reservas Extrativas(RESEX). Essas áreas só podem, nos termos da lei, "ser utilizadas por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade". Resolve a Defensoria Pública atuar em defesa do meio-ambiente e de todas as populações extrativas, asseverando que dentre elas se encontram alguns necessitados. Para tanto, oferece ação visando à desintrusão da população não extrativista da RESEX. Entre os que deverão ser expulsos, está uma família de necessitados, moradores de casebres localizados no interior da RESEX .Quem irá defendê-los? Defensores Públicos, que terão como adversários no processo nada mais nada menos que simplesmente sua própria instituição. Em casos como esses, a defesa dos necessitados s deverá ser exercida contra interesses da própria Defensoria. Nessas circunstâncias, parece claro o risco que correm os necessitados.
Diante dos números e dos exemplos dados, conferir legitimidade para a Defensoria atuar em defesa de interesses difusos acaba por prejudicar sua atuação na representação judicial dos necessitados. Assim, a atuação em defesa dos direitos difusos não é mais uma arma que será utilizada pela Defensoria para a importantíssima tarefa de proteger os necessitados. Pelo contrário. É um instrumento que acaba por se voltar contra o cumprimento do seu papel constitucional. Pelo visto, para que a defensoria proteja o interesse de todos os titulares dos direitos difusos, muitos necessitados serão abandonados.
Conclusão: o papel da Defensoria Pública na tutela coletiva
Não se está aqui querendo afastar a Defensoria Pública do Processo Coletivo. No entanto, faz-se imprescindível harmonizar à constituição as leis 11.448/07 e LC 80/94, com redação dada pela LC 132/09. Não poderá a Defensoria atuar em hipótese alguma em defesa dos direitos difusos. Porém, é perfeitamente possível sua atuação nos casos de interesses coletivos e individuais homogêneos em que as coletividades são, respectivamente, identificáveis e identificadas. A análise da legitimidade da Defensoria, nessas circunstâncias, deverá se dar caso a caso, como bem ensina Emerson Garcia. In verbis:
"No que diz respeito aos interesses coletivos e individuais homogêneos, mostra-se incabível uma avaliação prévia, "in abstracto", da legitimidade da Defensoria Pública. Tal há de ser feito em harmonia com as circunstâncias fáticas e jurídicas subjacentes ao caso concreto."
Do exposto, para a preservação do perfil constitucional da Defensoria e dos princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público, concluo pela necessidade de se conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 5º, II, da Lei nº 7.347/1985 e à LC 80, de modo a excluir a possibilidade de a Defensoria Pública promover a defesa de interesses difusos. Sem tal limitação, a nobre tarefa que a Constituição outorga com exclusividade à Defensoria corre sério risco de não ser exercida a contento.
Notas
- A legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento da ação civil pública. Delimitação de sua amplitude. Breves apontamentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2287, 5. out. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13616>. Acesso em: 05 nov. 2009.
- Veja-se o que diz Antoni Gidi sobre o tema: "Entretanto, também há que se vislumbrar uma espécie de direito próprio dessas entidades a defender os direitos superindividuais em juízo, já que ninguém mais poderia fazê-lo. Afinal, alguém há que ser ordinariamente legitimado para a propositura de uma ação coletiva para que possa haver um outro que o seja extraordinariamente. O extraordinário é um conceito relacional e pressupõe a existência do ordinário da mesma forma que o especial pressupõe a existência do comum"(Coisa Julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 58)
- Esse é o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli: "A legitimação extraordinária ou especial dá-se em proveito da efetividade da defesa do interesse violado. Nas lesões a interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas, seria impraticável buscar a restauração da ordem jurídica violada se tivéssemos de sempre nos valer da legitimação ordinária, e com isso, deixar a cada lesado a iniciativa de comparecer em juízo, diante dos ônus que isso representa(...)"(A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 62)
- O maior representante dessa teoria é o professor Nery Júnior, que diz: Como os direitos difusos e coletivos não têm titulares determinados, a lei escolhe alguém ou algumas entidades para que os defendam em juízo. (O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos – um estudo sobre a ação civil pública trabalhista. Revista Ltr, São Paulo, v. 64, n. 2, p .156-157)
- Id.ib.
- Id.ib.
- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituiçào Brasileira de 1988, v 3. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 40.
- Id.
- Ofício n. 1959/2009/JEF 6ª Vara/JF/AL, expedido pelo Exmo. Sr. Juiz Federal Frederico Dantas, titular do Juizado Especial Federal(JEF).
- Ofício n. 1208/2009-8ª Vara, enviado pelo Sr. Diretor de Secretaria Marcelo Fraxe Pessoa.