3. Aspectos processuais do conceito de crime organizado
Como vimos, pelo menos no que diz respeito à Justiça Federal, o conceito de organização criminosa tem sido utilizado no âmbito processual, para a determinação de competência em razão da matéria para a tramitação de inquéritos e o julgamento de ações penais. O art. 109 da Constituição estabelece a competência dos juízes federais. A Lei n. 5.010, de 30 de maio 1966 e o art. 11, parágrafo único, da Lei n. 7.727/89 e resoluções dos cinco tribunais regionais federais existentes no País permitem a distribuição dessa competência entre suas diversas varas, desta forma organizando a Justiça Federal brasileira.
No TRF da 4ª Região (Sul do Brasil), as Resoluções n. 20, de 26 de maio de 2003; n. 42, de 19 de julho de 2006; n. 56, de 6 de setembro de 2006; e n. 63, de 5 de outubro de 2006, estabeleceram a competência das 2ª e 3ª Varas Federais de Curitiba/PR, da 1ª e da 2ª Varas Criminais de Foz do Iguaçu/PR, da 1ª Vara Federal de Porto Alegre/RS e da Vara Federal Criminal de Florianópolis/SC, para o processo e julgamento de crimes de lavagem de dinheiro, contra o Sistema Financeiro Nacional e praticados por organizações criminosas, independentemente do caráter transnacional da infração. Para esses crimes, a competência dos juízos federais das capitais sulistas abrange todo o território do Estado em que se situam, com exceção da subseção judiciária federal de Foz do Iguaçu/PR, na tríplice fronteira, que preserva sua competência na matéria. Essa distribuição de trabalho é acompanhada pelo Ministério Público Federal, que também reparte sua atribuição de persecução criminal em modelo similar em tais cidades ou regiões.
No entanto, a principal norma processual a respeito de criminalidade organizada ainda é a Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995. A despeito das deficiências apontadas pela doutrina, quanto à indeterminação de conceitos e inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos, uma das quais já reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n. 1570-2, trata-se do único diploma que regula certos procedimentos especiais de investigação.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e §2º; e 144, §1º, I e IV, e §4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte. (STF, Pleno, ADI 1570-2, Rel. Min. Maurício Corrêa).
Com efeito, na parte que subsiste, a Lei do Crime Organizado regula a utilização de procedimentos de investigação e formação de provas, denominados pela doutrina internacional de técnicas especiais de investigação (TEI). São elas:
a)a ação ou entrega controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organização criminosa, de modo que a intervenção legal se concretize no momento mais apropriado do ponto de vista da formação da prova (art. 2º, inciso II);
b)o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais (art. 2º, inciso III), que consiste no acesso a dados fiscais e eleitorais necessários à prova de delitos praticados por organização criminosa;
c)a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante autorização judicial (art. 2º, IV);
d)a infiltração de agentes policiais ou de inteligência em organização criminosa, mediante autorização judicial circunstanciada e sigilosa (art. 2º, V).
e)a colaboração criminal premiada, que consiste na redução da pena de 1/3 a 2/3 daquele agente que espontaneamente colaborar para o esclarecimento da autoria e da materialidade de infrações penais praticadas por organização criminosa (art. 6º).
A disciplina sobre o acesso a dados bancários e financeiros, que também constava da Lei 9.034/95, foi alterada pela Lei Complementar n. 105/2001, que, em seu artigo 1º, §4º, prevê a possibilidade de obtenção de tais informações mediante autorização judicial:
§4º A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
I – de terrorismo;
II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
IV – de extorsão mediante sequestro;
V – contra o sistema financeiro nacional;
VI – contra a Administração Pública;
VII – contra a ordem tributária e a previdência social;
VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;
IX – praticado por organização criminosa."
Deste modo, qualquer crime praticado por "organização criminosa" pode ser investigado mediante a quebra de sigilo bancário, na forma da Lei Complementar 105/2001. Para identificar a hipótese de cabimento da medida de afastamento do sigilo, bastará ao juiz utilizar o conceito de "organização criminosa" do art. 2º da Convenção de Palermo.
Ao lado da disciplina das TEI, a Lei do Crime Organizado contém normas sobre: a especialização de órgãos policiais para o combate a organizações criminosas (art. 4º); a identificação criminal obrigatória de agentes envolvidos em organizações criminosas (art. 5º); a proibição de concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, para os agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa (art. 7º); a duração da instrução criminal em caso de réu preso (81 dias) e réu solto (120 dias), nos processos por crime organizado (art. 8º); o cumprimento de pena em regime inicial fechado (art. 10). Todos esses dispositivos demandam a utilização do conceito contido no tratado internacional firmado em Palermo.
As implicações não cessam aí. À Lei n. 9.034/95 soma-se um plexo jurídico composto por diplomas legais dotados de dispositivos penais e/ou processuais imprescindíveis ao combate a organizações criminosas:
a)Lei n. 7.210, de 11 de junho de 1984, alterada pela Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD);
b)Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que regula a prisão temporária;
c)Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos;
d)Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996, que cuida da interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas;
e)Lei n. 9.613, de 3 de maio de 1998, que dispõe sobre a lavagem de ativos;
f)Lei n. 9.807, de 13 de julho de 1999, que dispõe sobre medidas de proteção a vítimas, testemunhas e ao réu colaborador;
g)Lei n. 10.054, de 7 de dezembro de 2000, que dispõe sobre a identificação criminal;
h)Lei Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001, que dispõe sobre o sigilo bancário;
i)Lei n. 10.446, de 8 de maio de 2002, que dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os fins do art. 144, §1º, inciso I, da Constituição;
j)Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição;
k)Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, que dispõe sobre o tráfico de drogas.
Entre estas, cumpre destacar a Lei n. 10.792/2003, que introduziu na Lei das Execuções Penais de 1984 o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). O RDD relaciona-se com a criminalidade organizada, na medida em que podem ser submetidos a suas regras "presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade" (§1º do art. 52) e "o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando" (§2º do art. 52 da LEP).
Vê-se, portanto, que a utilização do conceito jurídico de "organização criminosa", conforme definido em Palermo, reduz a possibilidade de inserção de presos no RDD. Não será a participação do preso em qualquer grupo ou quadrilha que permitirá sua inclusão em tal regime; mas apenas a participação em "organização criminosa". Nesta linha, a opção pelo conceito da Convenção de Palermo, que tem força de lei, representa uma solução garantista, pois limitadora da ação do Estado contra o indivíduo encarcerado.
Destaque-se também o art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006, que permite a aplicação de causa especial de diminuição de pena, de 1/6 a 2/3, ao agente que seja primário, tenha bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas "nem integre organização criminosa" [05]. Exercendo função garantista, o conceito do art. 2º da Convenção de Palermo permitirá ao juiz limitar a regra de exclusão do referido §4º do art. 33 da Lei Antidrogas, na medida em que o magistrado só poderá negar a redução de pena àqueles acusados que efetivamente fizerem parte de grupos estruturados na forma prevista no tratado, fechando-se assim o espaço a interpretações ampliativas ou arbitrárias que prejudiquem o acusado.
4. Crime organizado e lavagem de dinheiro
Lavagem de dinheiro e criminalidade organizada são temas umbilicalmente ligados. O objetivo último de qualquer organização criminosa é a legitimação de valores derivados de suas práticas ilícitas, com ou sem lucro. Contrabando de mercadorias, violação de direitos de autor, tráfico de armas, de pessoas e drogas, exploração da prostituição e outras infrações graves geram vultosas somas de dinheiro ilícito que precisam ser recicladas e introduzidas na economia formal ou utilizadas, com aparência de legitimidade, pelos beneficiários finais de tais esquemas criminosos. Obtida a vantagem ilícita, torna-se necessário desvinculá-la de sua origem criminosa. E isto se faz mediante práticas de lavagem de dinheiro, que passam pela colocação (placement), pela dissimulação (layering) e pela integração (integration) dos capitais sujos em atividades empresariais de fachada ou para a aquisição de bens e serviços, quase sempre de alto valor, para os membros da associação criminosa. Parte desse dinheiro espúrio serve ainda para a prática de corrupção, mediante a destinação periódica ou ocasional de cotas a servidores públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, que possam de algum modo ser úteis à organização criminosa.
Algumas organizações criminosas promovem a reciclagem de seus próprios ativos, nelas havendo agentes especializados na dissimulação da origem de tais capitais ilícitos. Outros grupos criminosos organizados "terceirizam" suas operações de lavagem de dinheiro, ao contratarem contadores, advogados, consultores tributários e operadores do mercado de capitais, que se ocupam das tarefas de dissimulação e integração. Há assim uma profissionalização da atividade de lavagem de ativos, na medida em que tais escritórios se dedicam, mediante remuneração das organizações criminosas, à adoção de vários mecanismos para ocultação patrimonial, desde a engenharia financeira ao planejamento tributário, passando também pela corrupção. É aí então que surgem as estratégias mais elaboradas para a reciclagem de ativos, como a utilização de interpostas pessoas (chamadas "laranjas" ou testas-de-ferro), a constituição de pessoas jurídicas instrumentais (empresas de fachada, empresas offshore, trusts, fundações, entidades filantrópicas), tanto no Brasil como no exterior, ou a realização de complexas operações nos mercados de câmbio, de títulos e de valores mobiliários e negócios fraudulentos no comércio exterior, a exemplo de importações e exportações superfaturadas ou subfaturadas.
Portanto, a legislação sobre lavagem de dinheiro não poderia desconhecer sua interligação com o tema da criminalidade organizada. O crime de lavagem de dinheiro está tipificado no art. 1º da Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998. Considerado processualmente autônomo (art. 2º), o delito de reciclagem, todavia, tem sua configuração típica dependente da ocorrência de um crime antecedente ou precedente. No Brasil, que adota uma legislação de modelo misto nesta matéria, há uma lista de crimes antecedentes (numerus clausus), sem os quais não se consuma a lavagem de ativos, e um inciso aberto (o inciso VII), relativo aos crimes praticados por organizações criminosas.
São dois os momentos em que a Lei de Lavagem de Dinheiro refere-se aos crimes praticados por organizações criminosas. Inicialmente, entre os delitos antecedentes (aqueles do rol do art. 1º), a Lei n. 9.613/98 considera que se consuma o delito de reciclagem quando se oculta ou dissimula ativos provenientes, direta ou indiretamente, de "crimes praticados por organização criminosa" (inciso VII, do caput). É fora de dúvida que não existe no Brasil o crime de associação em organização criminosa. Mas também é certo que a Convenção de Palermo nos forneceu o conceito de organização criminosa. Assim, sem qualquer violação ao princípio da legalidade penal (art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição c/c o art. 1º do Código Penal), e desde a integração da UNTOC ao ordenamento jurídico brasileiro (o que ocorreu mediante o Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004), já se pode adequadamente interpretar e aplicar o inciso VII do art. 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro.
Por conseguinte, para os fins da Lei n. 9.613/98, haverá lavagem de dinheiro sempre que o agente ocultar ou dissimular valores decorrentes de crimes (jamais de contravenções) que tenham sido praticados por uma organização criminosa, entendendo-se como tal o crime cuja pena máxima não seja inferior a 4 anos de reclusão ou detenção (infração grave) e por organização criminosa o grupo estruturado de três ou mais pessoas, de natureza estável, que cometa infrações graves, com o fim de obter uma vantagem material. Nesta linha de idéias, delitos não inseridos no rol taxativo da Lei de Lavagem de Dinheiro (art. 1º), podem ser considerados crimes antecedentes, desde que gerem alguma vantagem, proveito ou produto passível de valoração econômica. É o exemplo dos crimes de homicídio cometidos mediante paga, dos crimes de sonegação fiscal e de vários delitos patrimoniais como o furto, o roubo e o estelionato, que, sem esta regra, estariam fora do campo da lavagem de ativos. Para que sejam lidos no rol, basta que os delitos ora enunciados sejam cometidos por um grupo criminoso organizado, no sentido convencional, e sejam também crimes-produtores, isto é, gerem ativos ilícitos.
O segundo momento de conexão legislativa da lavagem de ativos e da criminalidade organizada está no art. 1º, §4º, da Lei n. 9.613/98, que prevê uma causa especial de aumento de pena para o caso de o agente cometer o crime de reciclagem de forma habitual ou por meio de organização criminosa. Em tal situação, a pena de 3 a 10 anos de reclusão e multa será aumentada de um terço a dois terços. Esse aumento de pena só incidirá em relação aos agentes que realmente sejam membros de organizações criminosas, não se podendo agravar a sanção penal daqueles que componham meras quadrilhas.