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Comentário a acórdão proferido no AgRG no Recurso Especial nº 902.845/SP, do Superior Tribunal de Justiça

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04/12/2009 às 00:00
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I-Ementa

PIS. INCONSTITUCIONALIDADE DOS DECRETOS-LEIS Nºs 2.445/88 E 2.449/88. CORREÇÃO MONETÁRIA. IPC. JULHO/90, AGOSTO/90 E OUTUBRO/90. COISA JULGADA. AFASTAMENTO. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA Nº 239/STF.

I - Ainda que a matéria invocada no Recurso Especial seja de ordem pública, no caso a alegada coisa julgada, é necessário que a mesma esteja devidamente prequestionada, não podendo, nesta instância especial, ser conhecida de ofício. Precedentes: REsp nº 734.904/CE, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 19/09/05; EDcl no AgRg no REsp nº 384.402/PR, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ de 23/05/05 e REsp nº 447.655/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJ de 29/11/04.

II - O mandado de segurança entelado, cujo acórdão transitou em julgado, foi concedido em parte, para reconhecer a inconstitucionalidade dos Decretos-leis nºs 2.445/88 e 2.449/88 relativo a período específico, qual seja, o exercício de 1988.

III - A autuação fiscal relativa a outro período não sofre a irradiação dos efeitos decorrentes da anterior ação mandamental, uma vez que em tal ação não restou declarada a ilegalidade ou inconstitucionalidade da exação para o futuro, de forma genérica, restringido-se o decisum a hostilizar sua cobrança em período financeiro determinado.

IV - Remanesce patente o âmbito fechado observado no aresto ao se referir ao débito que ensejou a autuação do impetrante, ou seja, o exercício de 1988. Com isso, na hipótese dos autos, não há que se falar em efeitos da coisa julgada, mas sim nas disposições constantes da súmula nº 239/STF.

V - Agravo regimental improvido.


II-Síntese do Acórdão

Trata-se de agravo de regimental interposto pela Fazenda Nacional contra decisão monocrática proferida pelo Ministro Francisco Falcão, em sede de Recurso Especial, que ilidiu a ocorrência da coisa julgada.

Nas razões recursais, a agravante insistiu na alegação de que, uma vez admitido o Recurso Especial, ainda que por outro fundamento, o Superior Tribunal de Justiça poderia apreciar todas as questões de ordem pública. In casu, pleiteava a agravante o acolhimento da coisa julgada, alegada a posteriori.

O agravo regimental restou desprovido, mantendo o relator, Francisco Falcão, seu entendimento esposado no Recurso Especial. Consoante suas razões de decidir, entendeu o Ministro que o pressuposto processual negativo da coisa julgada não havia sido suscitado em sede de contestação, nem apelação ou contrarrazões. Afirmou ainda que o acolhimento do referido impedimento em sede de Recurso Especial encontraria dois empeços: a preclusão consumativa e a ausência de prequestionamento.

Ainda em seu voto, o relator afastou a possibilidade de acolhimento das questões de ordem pública nos Tribunais Superiores sem a observância do prequestionamento, colacionando, para corroborar com seu entendimento, jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido.

Portanto, o julgado a ser objeto de análise neste trabalho inclinou-se para afastar a possibilidade de efeito translativo ao Recurso Especial.


III-Do Efeito Translativo – Considerações Iniciais

O efeito translativo é decorrente da interpretação sistemática entre os artigos 267, par. 3º, artigo 515, par. 1º e 3º do CPC e artigo 516, todos do Código de Processo Civil. Em que pese estes dois últimos dispositivos estarem insertos no capítulo referente ao recurso de apelação, este efeito irradia-se às demais modalidades de recursos, ou melhor, a quase os todos os recursos previstos em nosso sistema processual, diferente, portanto, do efeito devolutivo, que é ínsito à natureza recursal.

Por este efeito, depreende-se a possibilidade de conhecimento de matéria de ordem pública pelo Tribunal ad quem, independente de manifestação expressa pela parte recorrente ou pela parte recorrida. Em outras palavras, ainda que a questão não seja suscitada nas razões recursais ou nas contrarrazões recursais, pode o órgão julgador reconhecê-la ex officio, estando autorizado a julgar fora do que fora proposto pelas partes. Portanto, enquanto o efeito devolutivo decorre do princípio dispositivo, o efeito translativo é oriundo da manifestação do principio inquisitório.

Nelson Nery Jr. destaca a importância de diferenciar o efeito devolutivo, em sua dimensão vertical, do efeito translativo. Em relação ao primeiro efeito, sua gênese pauta-se no princípio dispositivo, vinculado, portanto, ao comportamento ativo da parte. Isto quer dizer que o órgão ad quem só está autorizado a julgar o que foi expressamente posto pela parte, sob pena da decisão estar maculada de vício de nulidade (extra, ultra ou citra petita). No que concerne ao efeito translativo, o Tribunal ad quem estaria autorizado a julgar fora do que foi suscitado pelas partes, como ocorrem com as questões de ordem pública, em que não há preclusão pro iudicato (art. 267, parágrafo 3º, CPC). [01]

Por outro lado, Araken de Assis entende que o efeito translativo não se trata de categoria à parte, mas é a própria expressão da profundidade do efeito devolutivo. Para o processualista, respeitando a extensão da matéria impugnada, o órgão ad quem é dado reexaminar ou apreciar de ofício quaisquer questões que, sendo de ordem pública, situam-se no mesmo plano de cognição ou em grau inferior. [02]

Não obstante a controvérsia sobre a classificação do referido efeito, é questão uníssona que o efeito translativo ou devolutivo (quanto à profundidade) autoriza, nos recursos ordinários, o reconhecimento ex officio, pelo órgão ad quem, das matérias de ordem pública, ainda que não expressamente suscitadas pelas partes. A controvérsia gira em torno dos Recursos Extaordinários, como veremos a seguir.


IV- Das Teses Doutrinárias Que Corroboram com a Tese Perfilhada no Acórdão em Comento

Compreendido o espectro do efeito translativo, questiona-se: este efeito também se aplica aos Recursos Extraordinários (lato sensu)?

A matéria é objeto de controvérsias na doutrina e na jurisprudência. Há, contudo, entendimento majoritário em negar a incidência do efeito translativo aos recursos extremos, pelo óbice do prequestionamento.

Na doutrina há vozes autorizadas que se inclinam a ilidir o efeito translativo quando o que está em pauta é o julgamento de um Recurso Especial e Extraordinário.

Desta forma, trazemos a baila novamente a doutrina de Nelson Nery Jr.:

"Opera-se o efeito translativo nos recursos ordinários (apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração e recurso ordinário constitucional), mas não nos recursos excepcionais (recurso extraordinário, recurso especial e embargos de divergência.)" [03].

Afirma o mencionado jurista que o objeto dos recursos extremos, no que se refere à competência recursal, é a defesa do direito objetivo. É o que Piero Calamandrei denominou de função nomofilática. Portanto, os Tribunais Superiores têm como função precípua a guarda do ordenamento jurídico, ou seja, leis federais, referentes ao Recurso Especial, e normas constitucionais, de competência do Superior Tribunal Federal, por meio de Recurso Extraordinário.

Verificando no caso concreto a violação ao direito objetivo, os Tribunais Superiores devem cassar a decisão, ou, como melhor definiu Nelson Nery Jr., exercer o iudicium rescindens, e, posteriormente, aplicar o direito à espécie, como bem delineou a Súmula 456 do STF e o Regimento interno do STJ, artigo 257. Este juízo de revisão seria a expressão da função dikelógica, vez que, diferentemente dos Tribunais de Cassação (vg. Itália, França), os Tribunais Superiores estão autorizados ao rejulgamento da causa, assim como ocorre na Ação rescisória (iudicium rescissorium).

Prossegue Nelson Nery Jr., afirmando que o juízo de cassação exercido pelos Tribunais Superiores deve observar o requisito do prequestionamento. Nas palavras do jurista, "(...) o Tribunal Superior apenas controla a higidez do acórdão ou decisão de última ou única instância recorrida: o que não estiver na decisão ( o que não tiver sido decidido) não pode ser sindicado pelo tribunal superior, ainda que seja matéria de ordem pública (...)." [04]

Para Nelson Nery, o prequestionemento é determinação constitucional, e sua ausência, óbice instransponível para a análise da matéria nos Tribunais Superiores, haja vista que a previsão do efeito translativo é matéria de status infraconstitucional (art. 267, par. 3º, CPC e art. 301, par. 4º, CPC), que deve se curvar às normas constitucionais.

José Garcia Medina acompanha o entendimento acima declinado. Segundo o processualista, se a decisão não se manifesta sobre a questão constitucional ou federal, não será possível o processamento dos recursos excepcionais, mesmo se a matéria ventilada nos recursos envolver questão de ordem pública. Todavia, diferente do que entende Nelson Nery, Medina inclina-se a aceitar que a questão de ordem pública seja apreciada se a parte opôs Embargos de Declaração com fins de prequestionamento, mas o Tribunal não se manifestou expressamente sobre a questão. [05]

Teresa Arruda Alvim perfilha o entendimento de que o efeito devolutivo, nos recursos de estrito direito, é limitado de duas formas: somente se devolve a matéria que estiver no corpo do acórdão ou da decisão e que os vícios apontados nas razões recursais devem ser atinentes à ilegalidade ou a inconstitucionalidade. Acrescenta ainda que, com a admissão dos recursos excepcionais, não se autoriza que a causa seja aberta às demais questões, sejam estas de fato ou de direito. Portanto, somente as questões devidamente prequestionadas poderiam ser objeto de análise dos Tribunais Superiores, ou seja, somente as questões constantes da decisão poderiam ser objeto de recurso. Este entendimento enseja a restrição dos Tribunais Superiores no que concerne ao efeito translativo, e também quanto ao efeito devolutivo em sua dimensão vertical, diante da impossibilidade de reverem fatos e de reexaminarem provas. [06]

Filia-se também a esta corrente Cassio Scarpinella Bueno, pois entende imprescindível que a causa tenha sido decidida e ainda que diga respeito a uma "questão constitucional" ou a uma questão "federal". Explica o jurista que a Constituição outorgou funções taxativas aos Tribunais Superiores, as quais não aceitam quaisquer mitigações, vez que tais funções estão dispostas em nosso ordenamento como regra constitucional e não como princípio. Scarpinella ilide peremptoriamente a função revisora do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. [07]

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado de que as questões de ordem pública devem estar devidamente prequestionadas pelo Tribunal a quo para serem analisadas em sede de Recurso Especial. Como veremos a seguir, este entendimento vem sendo mitigado por alguns julgados, mas é possível asseverar que a maioria dos julgados inclina-se a afastar o efeito translativo dos recursos extremos, acompanhando o acórdão objeto deste trabalho. É o que pode depreender dos seguintes julgados: (Resp 426.397/AC, rel. Min. Franciulli Netto, 05/06/2003; Resp 447.655/PR, rel. Min. Laurita Vaz, 29/011/04; 734.904/CE, rel. Min. Teori Albino Zavascki, 19/09/2005).

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Portanto, com base os argumentos expostos, parcela da doutrina entende não ser possível a aplicação dos efeitos translativos aos Recursos Extraordinários e Recursos Especiais. Por conseguinte, as questões de ordem pública não podem ser reconhecidas pelos Tribunais Superiores, diante de seu regime jurídico diferenciado.


V-Da Possibilidade do Efeito translativo nos Recursos Extraordinários

Como anteriormente mencionado, a questão está longe de ser pacífica. Compulsando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como já relatado, verifica-se que há julgados em ambos os sentidos e todas as decisões estão pautadas em sólida argumentação.

Neste trabalho iremos defender a possibilidade de reconhecimento de oficio das questões de ordem pública pelos Tribunais Superiores, mesmo que não devidamente prequestionadas.

Ainda que a defesa seja pela existência de efeito translativo aos recursos extremos, não se pode olvidar a natureza jurídica diferenciada dos Recursos Especiais e extraordinários. A função nomofilática, evidenciada por Calamandrei, não pode ser afastada a pretexto de rever as decisões das instâncias inferiores. Os recursos de estrito direito devem servir tão-somente ao resguardo do direito objetivo e, somente em consequência da cassação da decisão, aplicar o direito à espécie.

Outro conceito preliminar importante a ser definido, a priori, é o prequestionamento. Este requisito exigido nos Recursos Extaordinários é sinônimo de "causa decidida". Desta forma, para que o Superior Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça desempenhem sua função constitucional de uniformizar a interpretação e aplicação do direito federal e constitucional, é imprescindível que as instâncias inferiores tenham se pronunciado previamente sobre a questão. Somente com o julgamento prévio de outros órgãos jurisdicional será possível verificar a violação ao direito objetivo e uniformizar a jurisprudência das demais instâncias. Portanto, o prequestionamento é decorrência lógica da competência constitucional dos Tribunais Superiores, e não requisitos ou formalidades inventadas para dificultar o acesso a estas instâncias.

Ocorre que, na prática, a questão não se verifica de fácil resolução. Isto porque, ainda que a parte provoque as instâncias ordinárias a se pronunciarem sobre a matéria, muitos julgados afirmam que os órgãos jurisdicionais não necessitam manifestar-se expressamente sobre cada ponto suscitado pelas partes. Mesmo após a oposição de Embargos de Declaração para fins de prequestionamento, a fim de sanar a referida omissão, caso sejam rejeitados, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento de que a diligência não basta para o prequestionamento. [08] A solução para forçar o Tribunal a quo a se pronunciar sobre a questão seria a interposição de Recurso Especial por violação ao artigo 535 do CPC, posição esta que em nada se coaduna com o Princípio da Celeridade e Efetividade, haja vista que, uma vez reconhecida a violação ao artigo 535 do CPC, os autos devem retornar ao órgão a quo para que este manifeste-se expressamente sobre a questão.

Pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça conclui-se que não basta que a parte seja diligente e suscite desde a primeira instância a violação de legislação federal, pois, caso o Tribunal mantenha-se recalcitrante no suprimento da omissão, a matéria não estará prequestionada. Para parte autorizada da doutrina, este entendimento representa a violação do direito do recorrente ao acesso às superiores instâncias. [09]

A questão ganha mais relevo e gravidade caso a matéria posta em questão pela parte seja de ordem pública. Imagine-se o seguinte caso concreto: o réu, em contestação, declina, em preliminar, ilegitimidade ad causam. O juiz de primeira instância silencia sobre a condição de ação levantada, o que enseja a interposição de apelação, insistindo o recorrente no acolhimento da preliminar de ordem pública. O Tribunal sequer se manifesta sobre a matéria, restringindo-se à análise meritória. Os Embargos de Declaração são opostos visando à supressão da omissão, mas logo são rejeitados. Irresignado, o recorrente interpõe Recurso Especial pela negativa de vigência do artigo 267, VI do CPC, tão-somente, mas não diligencia em levantar a hipótese de violação ao artigo 535 do CPC.

Ora, sendo flagrante a ilegitimidade de parte, todavia não observada pelos juízos inferiores, deve o Superior Tribunal de Justiça inadmitir o Recurso Especial, ainda que a parte tenha se desincumbido de todos os seus ônus processuais, inclusive suscitando a referida preliminar incessantemente desde a primeira instância?A resposta negativa vai ao encontro da boa técnica processual e também do formalismo valorativo.

A questão ultrapassa até mesmo as formalidades do prequestionamento. Ou seja, mesmo que a parte não tenha sequer suscitado a questão, todavia, nos Tribunais Superiores tenha sobrevindo a notícia de que há pressuposto processual negativo, qual seja, a coisa julgada, devem o STJ e STF manter-se silentes e sequer se pronunciarem sobre a preliminar trazida a conhecimento?

Ressalte-se que as questões postas em debate estão além dos interesses particulares dos indivíduos, pois têm reflexos perante a ordem pública. No primeiro caso, em que havia ilegitimidade de parte, o Superior Tribunal de Justiça irá ratificar uma decisão em que condena um jurisdicionado a suportar um ônus que não teria legitimidade. Obriga-se a parte a realizar uma prestação, ou suportar um provimento declaratório ou constitutivo, que não era de sua responsabilidade. No último caso, as decisões judiciais afrontam diretamente uma garantia constitucional (art. 5º, inciso XXXVI, CF), rompendo a estabilidade e a segurança jurídica nas relações jurídicas.

As matérias de ordem pública são autorizadas ao acolhimento de ofício pelo órgão julgador diante de sua importância e reflexo perante o interesse público. Por esta natureza pública são outorgados tratamentos distintos, condizentes com sua importância e impedimento de disponibilidade pelas partes.

Os elementos de existência, os requisitos de validade do processo e as condições da ação são a verdadeira base estrutural da relação jurídico processual. Não é por outra razão que a sua inobservância enseja, inclusive, o ajuizamento de ação rescisória ou até mesmo a querela nullitatis.

Há, portanto, um inegável interesse público de que as condições de ação, requisitos de validade e elementos de existência sejam observados. E o interesse evidencia-se no escopo publicista do processo, qual seja, a pacificação social, a qual consubstancia-se na justiça e a segurança jurídica das decisões.

Jose Roberto dos Santos Bedaque destaca a eticidade constante da relação processual, corroborando para a natureza publicista do processo:

"Ressalta a doutrina a natureza institucional do processo, por resultar da reunião de pessoas com objetivos individual e geral, quais sejam, a solução do litígio e paz social. Atingem-se esses fins mediante um modus faciendi, um método de atuação influenciado pelos valores éticos e sociais predominantes. Desenvolve-se segundo procedimentos e formas preestabelecidas, supostamente adequadas à obtenção dos escopos a ele inerentes." [10]

As matérias de ordem pública são, portanto, técnicas processuais, umas mais diretamente ligadas ao direito material, mas todas destinadas a assegurar o processo justo, por meio da efetividade e segurança processual.

A ausência de preclusão pro iudicato para o reconhecimento das questões de ordem pública representa a importância de afastar estes vícios e evitar que todo o procedimento e atos processuais restem maculados. Como destacado, a questão ultrapassa o interesse e debate pelas partes e impõe um poder-dever ao órgão julgador de reconhecer estas irregularidades e evitar que a estrutura e a base da relação jurídico processual permaneça em desarmonia com o escopo do processo justo.

Esta é a doutrina de Vito Antônio Boccuzzi Neto:

"Notadamente, a expressa disposição legal para que o órgão julgador conheça de ofício as questões de ordem pública, contrariando, inclusive o princípio dispositivo, informador do direito processual, decorre do interesse social de que não sejam perpetuadas situações repudiadas pelo ordenamento jurídico." [11]

E desde dever não escapam o Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Federal. Ao contrário, por serem as questões de ordem pública matéria federal e constitucional (veja-se que o efeito devolutivo vinculado deve ser respeitado), devem ser objeto de análise pelos Tribunais Superiores, evitando-se afronta, não somente ao direito objetivo, mas também à estrutura do próprio processo. Concluir de outra forma é afirmar que os Tribunais Superiores estão autorizados a corroborar com vícios que atingem diretamente o interesse da sociedade, vez que a pacificação social, escopo primordial do processo, ficará arranhada.

Obviamente, não se pode descurar o requisito do prequestionamento. Como anteriormente concluímos, há necessidade de que a matéria seja decidida pelas instâncias inferiores para vislumbrar se o julgado incorreu em afronta à legislação federal ou constitucional, respeitando-se, portanto, a natureza de fundamentação vinculada dos Tribunais Superiores.

Contudo, o silêncio, para as questões de ordem pública, pode significar efetiva violação à ordem jurídica pátria. Isto porque, de sua natureza publicista, emerge o dever para os órgãos julgadores de sanar os vícios processuais, com o reconhecimento da matéria de ordem pública. Como ora declinado, olvidar em reconhecer estes vícios, pode comprometer o próprio escopo do processo.

Portanto, o prequestionamento é imprescindível quando a questão trata-se de matéria disponível e privada, suscitadas pelas partes. Neste caso, realmente seria necessário aos Tribunais Superiores analisarem o conteúdo da decisão prolatada pelo juízo a quo, e, estando a matéria definitivamente julgada, vislumbrar se houve afronta ao direito objetivo, partindo-se, portanto, daquela decisão em análise. Como anteriormente declinado, trata-se de uma questão lógica, pois, sem decisão, não é possível averiguar se o julgado afrontou ou não o ordenamento jurídico pátrio.

As questões de ordem pública, contudo, não precisam constar expressamente das decisões. Em outras palavras: para verificar eventual afronta ao direito objetivo (constitucional e federal), quando a questão versa sobre matéria de ordem pública, não é necessário uma decisão afastando ou acolhendo a preliminar. Neste caso, a própria omissão em reconhecê-la já representa uma violação à Constituição Federal ou à legislação federal. Isto porque as demais instâncias jurisdicionais olvidaram em exercer o seu poder-dever, representado pelo efeito translativo, proveniente da natureza recursal.

Para se colimar a esta conclusão, basta pensar que o prequestionamento é um óbice lógico ao julgamento pelos Tribunais Superiores. Uma vez ausente este óbice, não há razão para exigi-lo. Verifica-se se os juízos a quo afrontaram o direito objetivo tão-somente com o a decisão constante da sentença ou do acórdão. Mas, com as matérias de ordem pública, o julgamento inserto no corpo da decisão é prescindível, pois a omissão na análise da matéria representa uma verdadeira afronta ao direito objetivo, sanável por meio dos recursos extremos, os quais devem aplicar o direito à espécie (Súmula 456 STF).

Como bem delineou Cassio Scarpinella, o prequestionamento não se trata de princípio, mas de regra. Ocorre que as regras também comportam interpretações e, neste caso, a melhor exegese é a interpretação teleológica.

Portanto, exigir que as questões sejam objeto de prequestionamento, sob pena de não acolhimento da matéria de ordem pública, verifica-se formalismo puro e sem qualquer valor. Neste caso, o prequestionamento passa a significar verdadeiro mecanismo para filtrar os recursos extremos, o que, todavia, não pode ser admitido.

A toda evidência, as conclusões acima alcançadas devem observar o efeito devolutivo extensivo: somente se aplica o efeito translativo aos capítulos de sentença devidamente devolvidos aos Tribunais Superiores, vinculados, obviamente à matéria federal ou constitucional. Os demais não podem ser objeto de análise, pois estes transitam em julgado no momento em que expira o prazo recursal.

A doutrina proclama ainda que os Recursos Extaordinários não prestam à correção de injustiça. Ocorre que as matérias de ordem pública não são simples questões de justiça para as partes. Elas refletem, como insistentemente afirmado, no interesse público. Daí a justificativa para a aplicação do efeito translativo aos recursos extremos.

Rodolfo Camargo Mancuso também reconhece a possibilidade de dar ao Recurso Especial e Extraordinário efeito translativo:

De fato, parece-nos que em questões de ordem pública, que por sua natureza, não precluem e são suscitáveis em qualquer tempo e grau de jurisdição, além de serem cognoscíveis de ofício, em bem assim em tema de condições de ação e de pressupostos – positivos e negativos – de existência e validade da relação jurídica processual (CPC, art. 267, par. 3º), o quesito do prequestionamento pode ter-se por inexigível, até em homenagem à lógica do processo e à ordem jurídica justa. [12]

Sobre a importância do reconhecimento das matérias de ordem pública pelos Tribunais Superiores, mormente diante da gravidade de perpetuar o vício processual, obtempera Almeida Santos que o requisito do prequestionamento deve ser repensado em termos mais liberais. Afirma ser absurdo entender pela impossibilidade de reconhecer da coisa julgada e da arguição da incompetência absoluta, bem como de questões do mesmo peso e relevo em sede de recursos extremos pelo óbice do prequestionamento. [13]

Na linha de intelecção de Almeida Santos, acrescenta Nelson Luiz Pinto que o reconhecimento da matéria de ofício, ainda que nas instâncias superiores, evita-se o trânsito em julgado da decisão viciada, que poderá ensejar a propositura de ação rescisória (art. 485, V, CPC). [14] Gleydson Kleber Lopes Oliveira também se inclina a estes argumentos. [15] Há, portanto, contradição nos próprios termos: os vícios de ordem pública não podem ser sanados nos Recursos Extaordinários, mas o podem em ações autônomas e desconstitutivas da coisa julgada, as quais deveriam ter tidas como instrumentos muito mais excepcionais.

Por fim, vale citar a certeira doutrina de Hubert Vernon L. Lowill:

O princípio de ordem pública, quando informa o conceito de constitucionalidade, é muito mais ostensivo do que quando impregna, por exemplo, o de decadência, e, neste caso, o mesmo STF já espancou, para conhecer do apelo extremo, a questão do prequestionamento, decidindo, à unanimidade de seus Ministros, em sessão plenária, no RE 66.103, que a decadência é matéria de ordem pública e pode ser declarada em qualquer fase processual, mesmo no recurso extraordinário, e ainda que não prequestionada (RTJ 56/42 e RT 430/290). [16]

Fredie Didier perfilha um entendimento, em determinado ponto mais restritivo, e em outro mais extensivo do que a tese defendida neste trabalho. Segundo ele, as matérias de ordem pública podem ser reconhecidas de ofício uma vez admitido o recurso por uma outra questão, devidamente prequestionada. Melhor explicando: não se pode dispensar o prequestionamento para admitir os recursos extremos. Contudo, uma vez admitido, a jurisdição alarga-se para abranger outras questões, sejam de ordem pública ou matéria privada, atinente ao julgamento da causa. [17]

A autorização para o rejulgamento da causa, segundo o processualista, encontra-se na Súmula 456 do STF e no artigo 257, RISTJ e art. 324, RISTF. A referida súmula e os referidos artigos referem-se ao juízo de rejulgamento da causa, que em nada se relacionam com o juízo de admissibilidade. Para este último, o prequestionamento é admitido, mas para o primeiro juízo, não há qualquer necessidade, dispensando-se, portanto, que a matéria seja expressamente decidida em "última instância".

Perfilhando o seu entendimento, Fredie Didier transcreve as palavras de Bernardo Pimentel Souza:

Segundo o artigo 105, inciso III, da Constituição Federal, e o art. 257 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, conhecido o recurso especial julga-se a causa com a aplicação do direito à espécie. Os textos constitucional e regimental revelam que o Superior Tribunal de Justiça uma corte de revisão, e não de mera cassação – própria dos sistemas italiano e francês. Sendo corte de revisão, e após o conhecimento do recurso especial, tudo indica que o Superior Tribunal de Justiça pode examinar questão de fato – frise-se – ainda não solucionada, e cujo exame é essencial para o julgamento do caso concreto."

Como dito, Fredie Didier tem um posicionamento mais flexível quando assevera que a causa de pedir será aberta quando o Recurso Especial ou Extraordinário é admitido, mas, em contraposição, entende ser necessário ultrapassar o juízo de admissibilidade, com o prequestionamento de determinada questão, para só então aplicar o efeito translativo.

Como anteriormente relatado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se flexibilizando quanto ao entendimento de afastar peremptoriamente o efeito translativo do Recurso Especial. Há, portanto, a aplicação do efeito translativo temperado, como declinou o Ministro Castro Meira no Recurso Especial 789.937/GO.

Na verdade, trata-se do entendimento perfilhado por Fredie Didier, restritos à matéria de ordem pública. Desta forma, as matérias de ordem pública podem ser conhecidas de ofício pela Corte Superior quando o Recurso Especial foi conhecido por outro fundamento.

Neste sentido, parte do voto proferido pela Ministra Eliana Calmon do Resp 569.015/RN:

A rigidez da observância veio a ser flexibilizada por alguns acórdãos que entendem possível adentrar-se o STJ em matéria de ordem pública de ofício se, após ser o especial conhecido, com o prequestionamento de tese jurídica pertinente, deparam-se os julgadores com uma nulidade absoluta ou com matéria de ordem pública e que pode levar à nulidade do julgamento ou a sua rescindilidade.

Prossegue a Ministra afirmando não ser possível afastar o prequestionamento do Recurso Especial porque, caso contrário, deixaria de ser um recurso técnico para transformá-lo em um recurso de revisão, descaracterizando, por completo, a finalidade constitucional do próprio STJ.

Por outro lado, justifica que o entendimento do efeito translativo temperado encontra arrimo na Súmula 456 do Superior Tribunal Federal, ou seja, sobre o dever dos órgãos superiores de aplicar o direito à espécie uma vez admitido os recursos extremos.

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Sobre a autora
Sabrina Nasser de Carvalho

Defensora Pública do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Sabrina Nasser. Comentário a acórdão proferido no AgRG no Recurso Especial nº 902.845/SP, do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2347, 4 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13961. Acesso em: 18 dez. 2024.

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