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A limitação dos efeitos temporais da decisão declaratória de inconstitucionalidade no controle difuso

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07/12/2009 às 00:00
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3. A MODULAÇÃO DA EFICÁCIA TEMPORAL NO CONTROLE DIFUSO SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Não é de hoje que a comunidade jurídica se preocupa com a repercussão fática da declaração retroativa da inconstitucionalidade no controle difuso-incidental. O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, teve oportunidade de analisar a matéria.

Nessas ocasiões, como veremos adiante, o pretório excelso acabou por não aplicar o princípio da nulidade das normas inconstitucionais em prol de outro princípio constitucionalmente relevante, como, por exemplo, o da segurança jurídica e da boa-fé.

O primeiro precedente encontrado é do ano de 1974, e teve como objeto uma lei do Estado de São Paulo (Lei n. 03 de dezembro de 1971), que autorizava os servidores públicos do Poder Executivo a atuarem como oficiais de justiça.

No caso, a norma em questão teve a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal em 21 de março de 1973, quando do julgamento da representação de inconstitucionalidade n. 832. Posteriormente, uma determinada pessoa argüiu, em um caso concreto, a nulidade de penhora realizada por um servidor irregularmente investido na função de oficial de justiça. O ato processual havia ocorrido antes da declaração da inconstitucionalidade da lei pelo Supremo Tribunal Federal, mas argumentou-se que o ato seria nulo porquanto a inconstitucionalidade operaria efeitos ex tunc, liquidando a lei desde o seu início.

A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal pela via difusa, por meio do recurso extraordinário n. 78.209, julgado em 04 de junho de 1974, no qual os Ministros do Supremo, utilizando a teoria do funcionário de fato, consideraram válida a penhora realizada, em que pese a declaração da inconstitucionalidade da lei [19].

Com isso, os Ministros da Corte Suprema, pela primeira vez, mesmo que de forma indireta, modularam os efeitos da declaração de inconstitucionalidade na via difusa, evitando a aplicação retroativa da lei inconstitucional no referido caso concreto.

O mesmo tema foi enfrentado logo em seguida no julgamento do RE 78.594, realizado em 30/10/1974, chegando-se a conclusão de que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade não poderiam ser aplicados de forma única para todos os casos [20]. Segundo o Ministro relator, Bilac Pinto, a inconstitucionalidade da lei deveria ser verificada em face dos princípios jurídicos do ramo de direito envolvido. Assim, diante da teoria do funcionário de fato, própria do direito administrativo, bem como pela inexistência de prejuízo ao administrado, foi reconhecida a validade dos atos jurídicos praticados sob a égide da lei inconstitucional.

Idêntica situação foi verificada no julgamento do RE 79.628, que também tinha como fundamento a referida lei paulista [21].

O tema foi novamente retomado no julgamento do RE n. 79.343, no qual o Relator, Leitão de Abreu, defendeu a natureza constitutiva da decisão de inconstitucionalidade, sendo possível a modulação de efeitos. Nesse julgamento, em que se discutiu mais profundamente a questão, o relator defendeu expressamente a revisão da teoria da nulidade da norma inconstitucional, adotando-se, em seu lugar, a teoria da anulabilidade, em que os efeitos são ex nunc, como se nota no trecho do voto abaixo indicado [22]:

Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo, que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, a obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade, de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta a nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o "Corpus Juris Secundum", de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabelecerem relações entre o particular e o Poder Público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.

Nova discussão veio a lume no julgamento dos Recursos Extraordinários n. 105.789 e 122.202. No caso, alguns magistrados do Estado de Minas Gerais, utilizando-se do disposto no art. 104 da Constituição daquele estado, obtiveram a averbação de tempo de serviço público prestado em sociedade de economia mista, para o fim de percebimento de determinada gratificação. Esse dispositivo constitucional, todavia, foi posteriormente julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tendo a sua eficácia suspensa pela resolução senatorial n. 84, de 03 de outubro de 1973.

Diante disso, a referida gratificação deixou de ser paga aos magistrados mineiros que, inconformados, ingressaram com ações judiciais para impedir a devolução do que havia sido recebido, bem como para garantir a continuidade do pagamento. A questão chegou ao Supremo via Recurso Extraordinário, oportunidade em que se fixou o não cabimento da devolução dos valores recebidos, tendo em vista o princípio constitucional da irredutibilidade de vencimentos. Com isso, reconheceu-se o caráter prospectivo da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso, uma vez que o reconhecimento da nulidade com efeitos retroativos aniquilaria outro princípio constitucional relevante.

Nesse ponto, vale observar que todos os julgamentos mencionados acima foram realizados em processos distintos daquele em que foi declarada a inconstitucionalidade da lei. Em outras palavras, a relativização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade não foi efetivada no mesmo processo em que ela foi proferia.

Em tais casos, o Supremo Tribunal Federal, com base em artifícios meramente retóricos, acabou mitigando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ao julgar a irresignação de pessoas atingidas pela eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade.

Sob a égide da Constituição Federal de 1988, a preocupação com a produção dos efeitos na declaração de inconstitucionalidade também foi manifestada pelo Min. Maurício Corrêa que, ao proferir seu voto em ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 1.102), assim se pronunciou:

"Mesmo nos Estados Unidos, a Suprema Corte ao julgar o caso LINKLETTER v. WALKER, no ano de 1965, que se transformou em leading case, proclamou o entendimento de que a retroatividade ou prospectividade dos efeitos da declaração judicial relativa à inconstitucionalidade de lei não expressa um comando constitucional, o que significa dizer que os efeitos ex nunc ou ex tunc não têm origem na Constituição americana, senão uma questão do judicial policy, sujeita, por conseguinte, a livre valoração jurisdicional a ser feita em cada caso concreto. E que mesmo antes, já a Corte Americana não reconhecia aos contribuintes de impostos o direito de reaver importâncias que já haviam sido recolhidas ao Erário, até o instante da respectiva suspensão de sua eficácia, consoante demonstrado no texto clássico de O. P. Field, in The effects of na Unconstitutional Statue, Minneapolis, 1935, originariamente publicada na Harvard Law Review, vol. 45, 1932, sob o título The recovery of unconstitutional taxes."

(...)

Creio não constituir-se afronta ao ordenamento constitucional exercer a corte política judicial de conveniência, se viesse a adotar a sistemática, caso por caso, para a aplicação de quais os efeitos que deveriam ser impostos, quando, nesta hipótese, defluisse situação tal a recomendar, na salvaguarda dos superiores interesses do Estado e em razão da calamidade dos cofres da Previdência Social, se buscasse o dies a quo, para a eficácia dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a data do deferimento da cautelar (...) [23].

Apenas em 2004, todavia, o Supremo Tribunal Federal, de maneira inédita, limitou os efeitos temporais da pronúncia de inconstitucionalidade no mesmo processo em que esta foi declarada. Isso ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário n. 197.917, realizado em 07 de maio de 2004, no qual se discutia a inconstitucionalidade da Lei Orgânica n. 226/90 do Município de Mira Estrela, que havia estabelecido o número de vereadores em desacordo com a regra constitucional expressa no art. 29, IV, da CF. Na decisão, o Supremo Tribunal Federal reduziu o número de vereadores do município de 11 (onze) para 9 (nove), mas determinou que a aludida decisão só atingisse a próxima legislatura, ou seja, atribuiu efeitos pro futuro à decisão.

No caso, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública com o fim de reduzir o número de vereadores do Município de Mira estrela, tendo em vista o disposto no art. 29, IV, da CF. O pedido foi acolhido pelo juízo daquela comarca, o qual determinou: a) a redução de 11 (onze) para 9 (nove) o número de vereadores do Município; b) a extinção do mandato do número de vereadores excedentes; c) a devolução ao erário os subsídios indevidamente recebidos na legislatura pelos vereadores excedentes. Em seguida, no julgamento da apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou esta decisão, reconhecendo a constitucionalidade da aludida lei. O caso, então, foi levado ao Supremo Tribunal Federal pela via do Recurso Extraordinário, o qual se posicionou pela inconstitucionalidade da lei municipal. Em face de divergência levantada pelo Ministro Gilmar Mendes, no entanto, modulou-se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade a fim de que os efeitos da decisão só atingissem a próxima legislatura (eficácia pro futuro).

Vislumbrou-se, na hipótese, "situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente", Com isso, afirmou-se a "prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade" [24].

A possibilidade da modulação dos efeitos é bem delimitada no voto-vista proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, no Recurso Extraordinário nº. 197.917:

Nestes termos, resta evidente que a norma contida no art. 27 da Lei 9.868, de 1999, tem caráter fundamentalmente interpretativo, desde que se entenda que os conceitos jurídicos indeterminados utilizados – segurança jurídica e excepcional interesse social – se revestem de base constitucional. No que diz respeito à segurança jurídica, parece não haver dúvida de que encontra expressão no próprio princípio do Estado de Direito consoante, amplamente aceito pela doutrina pátria e alienígena. Excepcional interesse social pode encontrar fundamento em diversas normas constitucionais. O que importa analisar é que, consoante a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade somente deve ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.

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No mesmo voto-vista, o Ministro Gilmar Mendes arremata:

Portanto, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista a análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no direito português, a não-aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio

Posteriormente, em outros julgados, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a possibilidade de limitação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade proferida no controle difuso. È o caso do Agravo Regimental no RE nº 328.232, em que se reconheceu a inconstitucionalidade de lei do estado do Amazonas que conferia gratificações a servidores públicos, mas se determinou que os valores já recebidos não fossem devolvidos, uma vez que percebidos de boa-fé [25]. Outra decisão nesse sentido foi proferida no julgamento do RE nº 442.683, no qual se discutia a desconstituição de ato administrativo que havia promovido servidores públicos. Nesse caso, a corte entendeu que "os princípios da boa-fé e da segurança jurídica autorizam a adoção do efeito ex nunc para a decisão que decreta a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos que adviriam para a administração seriam maiores que eventuais vantagens no desfazimento dos atos administrativos" [26].

Entre os julgamentos mais relevantes, contudo, está o proferido no HC nº 82.959, em que o Supremo Tribunal Federal, por maioria, em caráter incidental, declarou a inconstitucionalidade do art. 2º, parágrafo primeiro, da Lei n. 8.072/92, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento de pena dos crimes hediondos, uma vez que tal vedação viola o Princípio constitucional da individualização da pena (art. 5, LXVI, da CF). Na decisão proferida, o Supremo Tribunal Federal, modulando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal não alcançava as penas já extintas, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão [27].

Mais recentemente, a Corte, no julgamento conjunto de diversos recursos extraordinários [28], proclamou a inconstitucionalidade, por ofensa ao art. 146, III, b, da Constituição Federal, dos arts 45 e 46 da Lei n. 8.212/91, que estabeleciam o prazo decenal de prescrição e decadência para a exigência das contribuições de seguridade social. Contudo, o STF considerou legítimos os recolhimentos efetuados pelos contribuintes nos prazos considerados inconstitucionais, ressalvadas as hipóteses em que houve impugnação antes da conclusão do julgamento. Assim, a Fazenda Pública não poderá exigir as contribuições sociais com o aproveitamento do prazo de 10 (dez anos), mas os contribuintes não poderão pleitear a repetição do que já foi pago, salvo naqueles casos em que já há impugnação da cobrança, na via judicial ou administrativa, até 11/06/2008.

Como se vê, a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de se admitir, excepcionalmente, a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida no controle difuso incidental.

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Sobre o autor
Daniel Ruiz Cabello

Procurador da Fazenda Nacional. Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABELLO, Daniel Ruiz. A limitação dos efeitos temporais da decisão declaratória de inconstitucionalidade no controle difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2350, 7 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13973. Acesso em: 28 mar. 2024.

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