5 DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS: LIBERDADE X PATRIMÔNIO
Tanto o direito à liberdade quanto o direito ao patrimônio são assegurados por nossa Lei Máxima, exigindo, portanto, efetiva proteção. Ambos se encontram erigidos em um mesmo patamar constitucional e necessário se faz a utilização de outros princípios norteadores do direito, a fim de que se possa melhor valorar a proteção de cada qual e a forma pelo qual deve recair a tutela jurisdicional.
Do princípio da insignificância, retiramos a importância do instrumento de limitação da abrangência do tipo penal às condutas realmente consideradas nocivas à sociedade, resguardando-se, assim, o ideal de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação ao bem ofendido. Assim, dúvidas não restam quando o bem violado possui valor ínfimo, não se devendo privar o agente que comete o delito de sua liberdade.
Do princípio da legalidade, depreende-se de que este impõe limites ao arbítrio do poder; da intervenção mínima, tem-se a limitação do legislativo na criação desenfreada de normas penais.
De toda sorte, o que se observa é que a pena criminal, por mais bem elaborada, jamais conseguirá reparar a situação em sua totalidade, posto que os bens jurídicos tutelados, quando confrontados, sempre imporão um sacrifício maior para um dos lados.
Da fragmentariedade do direito penal, retira-se que tão somente as condutas mais gravosas carecerão do rigor do direito penal.
Ocorre que, na grande maioria das vezes, o legislador, ao prever o tipo penal, tem em mente apenas o prejuízo suportado na esfera social e jurídica, deixando de vislumbrar que estas tipificações podem também atingir casos de lesões leves, o que acarreta na desproporcionalidade.
Isto é o que ocorre no crime de furto. Ao privar a liberdade o agente que viola tão somente o patrimônio, nos parece um tanto exagerado. De toda forma, não se quer dizer que o ilícito do furto não mereça uma reprimenda. Por óbvio que sim, mas esta deve ser entendida na exata medida e no sentido de que aquele que comete o ilícito seja verdadeiramente ressocializado. A solução poderia advir da aplicação de penas alternativas, como por exemplo, a prestação de serviços comunitários.
Segundo Beccaria:
"Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, igualmente, menos cruel no corpo do culpado." [10]
6 A Lei 9.099/95 e o art. 94 da Lei 10.741/03
Inspirada na Common Law há muito defendida por juristas pátrios, e por força do art. 98, I [11], o legislador instituiu no cenário jurídico nacional a Lei 9.099/95.
Com o advento da lei, observa-se uma idéia reformista no modo de atuação do poder Judiciário, principalmente no que se refere à aplicação da justiça.
Como todo novo instituto, esta lei também recebeu inúmeras críticas no sentido de ser uma aberração jurídica, criada sob o pretexto de se desafogar as prateleiras do Judiciário.
Entretanto, em um aspecto houve unanimidade, qual seja: o de que penas privativas de liberdade, ao contrário do que se imaginava, não trouxeram os resultados almejados na prevenção de condutas delitivas, bem como eram ineficazes quanto à ressocialização dos agentes delitivos.
A falência do sistema penitenciário e as diretrizes político-criminais urgiam em busca de uma nova ordem que fosse capaz de adequar, equilibrar e satisfazer os anseios sociais.
E esta busca por soluções muitas vezes demonstra o contra-senso existente em nosso ordenamento quando observamos que, num curto espaço de tempo, foram editadas duas leis contraditórias do ponto de vista político-criminal. De um lado a Lei 9.099/95 prevendo penas alternativas, despenalizadoras e de outro, a Lei 8.072/90, que trata dos crimes hediondos, cominando punições mais severas e uma intervenção maior. Ressaltamos: ambas foram propostas pelo então Deputado Michel Temer.
Inicialmente a Lei 9.099/95 previa que esta seria aplicada a todos os crimes em que a pena máxima cominada fosse de um ano. Com a entrada em vigor da lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Federais, esta foi alterada, comportando a sua aplicação para os crimes em que a pena máxima cominada não ultrapassasse 02 anos.
Nova controvérsia se instalou com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso – Lei 10.741/03, uma vez que a redação contida em seu art. 94, para muitos teria derrogado a pena máxima de 02 anos, então prevista na Lei 9.099, senão vejamos:
"Art. 94 – Aos crimes definidos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, no que couber, as disposições do Código Penal e Código de Processo Penal" (Grifos nossos) [12]
De um lado, alguns defendiam a idéia de que as disposições da Lei do Idoso não teriam o condão de derrogar os preceitos estabelecidos na Lei 9.099/95, uma vez que sua aplicação seria específica aos crimes do próprio Estatuto do Idoso, que, por disposição expressa, em seu art. 94 determina que se deva aplicar tão somente aos crimes definidos nesta Lei.
De toda sorte, outros, como o Ilustre Promotor de Justiça, Dr. Alexandre Couto Joppert [13], afirmam que este argumento é falho e inaceitável, haja vista a Constituição consagrar a chamada igualdade substancial ou real em nosso ordenamento, bem como o princípio da isonomia que dispõe que devam ser tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as distintas, sob pena de ferir este princípio.
Quanto à igualdade substancial ou real, CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO afirmam que:
"a absoluta igualdade jurídica não pode, contudo, eliminar a desigualdade econômica; por isso, do primitivo conceito de igualdade, formal e negativa (a lei não deve estabelecer qualquer diferença entre os indivíduos), clamou-se pela passagem à igualdade substancial. E hoje, na conceituação positiva da isonomia (iguais oportunidades para todos, a serem propiciadas pelo Estado), realça-se o conceito realista, que pugna pela igualdade proporcional, a qual significa, em síntese, tratamento igual aos substancialmente iguais. A aparente quebra do princípio da isonomia, dentro e fora do processo, obedece exatamente ao princípio da igualdade real e proporcional, que impõe tratamento desigual aos desiguais, justamente para que, supridas as diferenças, se atinja a igualdade substancial [14]".
Assim entendido, não há como se estabelecer diferenciações em matéria processual penal de modo a se fixar um conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para os crimes cometidos contra os idosos, e outro diverso aplicado aos demais delitos.
Sob o ponto de vista da valoração da pena, inexiste diferença, vez que em ambos a cominação é de 01 a 04 anos. A diferença reside na gravidade dos fatos, e esta é que deve ser observada pelo legislador ordinário.
Assim, para aqueles que concordam com os argumentos supra, ainda que involuntariamente, o legislador teria promovido sim um alargamento na conceituação de menor potencial ofensivo.
Soma-se a isso o que expõe a Dra. Ada Pellegrini Grinover, no que concerne à aplicação da pena de multa:
"Quando houver previsão alternativa de pena privativa de liberdade ou de multa, deve se levar em conta a pena pecuniária para a caracterização da infração como de menor potencial ofensivo, podendo ser assim considerada ainda quando a pena privativa seja superior a um ano. Leva-se em conta o fato de que a previsão de multa, mesmo de forma alternativa, indica não ser intenção do legislador punir o crime com a privação da liberdade, não o estimando como delito a ensejar maior reprovação social." [15]
Claro resta que, sempre que o tipo penal cominar pena de multa isolada ou alternativamente à privativa de liberdade, não prevendo a lei procedimento especial, há que se considerar, em princípio, que a infração correspondente será considerada de menor potencialidade ofensiva.
Vejamos o que dispõe o § 2º. Do art. 155 do CP, in verbis: "Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente multa."
Percebe-se que a verdadeira intenção da Lei foi a de caracterizar o furto privilegiado como de menor potencialidade ofensiva. Como conseqüência legal, uma vez preenchidos os requisitos, o procedimento a ser adotado não é outro senão o de ser aplicado o art. 69 e ss da Lei 9.099/95, com o oferecimento de Transação Penal.
7 A DESPENALIZAÇÃO DO CRIME DE FURTO
Explicando as medidas despenalizadoras, o Dr. Gevan Almeida [16] assim classifica todas aquelas que possibilitem dificultar ou mesmo evitar a imposição de uma pena privativa de liberdade, ou ainda, a de abreviá-la em último caso.
Quanto ao furto simples, é uníssona a aprovação da doutrina e da jurisprudência pela possibilidade da aplicação de medidas alternativas; entretanto, em se tratando das modalidades qualificadas, não encontramos um posicionamento pacífico.
De toda forma, no desenvolvimento do presente artigo, demonstramos que muitos doutrinadores comungam do entendimento de que a pena restritiva de liberdade deve ser reservada tão somente quando necessária e citamos, dentre estes, o Dr. Paulo Rangel, Dr. Gevan Almeida, Dr. Maurício Antônio Ribeiro Lopes, Dra. Ada Pellegrini Grinover, Dr. Alexandre Couto Jopper dentre tantos outros.
Face a cominação de penas de delitos similares ao crime de furto, claro resta a desproporcionalidade das penas, o que não pode ser aceito por violação a princípios garantidos em nossa Constituição.
Em excelente pronunciamento que recebeu consagração nacional, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Francisco de Assis Toledo, que foi relator da reforma da parte geral do código penal – 1984 -, manifestou uma nova concepção sobre a cominação e a aplicação de sanções penais, que ora destacamos a título de ilustração:
"a cominação e a aplicação das sanções penais deveriam ser previstas em lei e impostas segundo a natureza do crime cometido. Para os denominados crimes de violência, valeria a manutenção da pena de prisão, em face da brutalidade e estupidez reveladas na conduta do delinquente. Por sua vez, nos delitos de astúcia, outras deveriam ser as sanções cominadas para o crime, adequando-se o tipo de pena, como por exemplo as pecuniárias, as de interdição e atuais penas alternativas, ao tipo do crime praticado." (grifos nossos)
8 CONCLUSÃO
Por derradeiro, comungamos do entendimento de que ao Direito Penal deve ser reservada uma função realmente fragmentária, subsidiária e mínima, objetivando garantir a tutela social, haja vista que lhe é conferida a tarefa de proteger os bens de relevante valor social.
Entendemos, ainda que as penas privativas de liberdade devam ser aplicadas tão somente quando a violação o bem jurídico se dê face à pessoa humana e não mais quando esta se dá face ao objeto como ocorre nos crimes de furto, seja em sua modalidade simples ou qualificada.
Quando observamos que o ilícito de ameaça, previsto no art. 147 do CP – que é crime subsidiário e pode se materializar em ilícitos de extrema gravidade - merece a tutela da Lei 9.099/95, resta claro que a valoração dada ao bem jurídico tutelado por parte do legislador não é outra senão a de manter o patrimônio acima da vida humana, o que não mais pode ser aceito.
Certo é que o sistema penitenciário brasileiro clama por soluções práticas. Não há no sistema capacidade para receber a quantidade de detentos, o que acarreta na impossibilidade total da ressocialização de agentes que cometem ilícitos de maior gravidade.
Como mencionado no curso do presente artigo, detentos são levados ao cárcere sem o mínimo critério, haja vista a falta de vagas que impossibilita a seleção. Com isso, a reincidência no furto é alarmante, levando os que praticam tal delito ao sistema de reclusão, haja vista a expressa e clara literalidade do art. 33, § 2º. do CP.
Ainda que encontremos certo abrandamento na jurisprudência, que visa não estabelecer o regime mais severo como obrigatório ao reincidente, na prática tem-se que o crime responsável pelo segundo maior número de prisões é o furto, perdendo apenas para o crime de roubo. Tem-se, portanto, que as prisões por furto contribuem sobremaneira para a superlotação carcerária.
Ao possibilitar a aplicação de penas alternativas ao furto, teríamos uma solução prática e eficiente, principalmente no que concerne a aplicação de um sistema ressocializatório mais eficaz, vez que se evitaria que àqueles que incorrem nesta prática delitiva não mais se sujeitariam ao convívio com detentos de maior periculosidade.
Resta claro que a aplicação de pena privativa de liberdade não se revela como remédio eficaz para ressocializar o homem preso, conforme comprova o elevado índice de reincidência dos criminosos oriundos do sistema carcerário. Embora não haja números oficiais, calcula-se que no Brasil, em média, 90% dos ex-detentos que retornam à sociedade voltam a delinqüir, e, conseqüentemente, acabam retornando à prisão.
Não fosse somente isso, inúmeros casos de prisões provisórias por furto terminam por ficar no esquecimento, transformando-se em prisões ilegais, chegando alguns a permanecer encarcerados por tempo infinitamente superior às suas condenações, seja pela própria desídia estatal, seja pela impossibilidade dos trabalhos das Defensorias ligadas às Varas de Execuções penais se encontrarem, da mesma forma, assoberbadas.
De tudo, o que resta, é que as penas privativas de liberdade demonstram que o que se pratica é um flagrante desrespeito aos direitos humanos. A sociedade, tanto quanto as autoridades competentes, precisam sair de um estado de indefinição e traçarem juntas, diretrizes de atuação concretas, que possibilitem a aplicação de penas mais severas quando o ataque se dirigir aos bens jurídicos de maior relevância. O que por certo possibilitará um melhoramento no sistema carcerário de nosso país.
Os direitos humanos não podem mais ser encarados como simples enunciados formais, e sim, devem ser encarados como as únicas e verdadeiras premissas de um direito penal efetivo e justo.
Finalizando, fazemos nossas as brilhantes palavras do penalista emérito e ex-Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence: "A prisão não recupera ninguém e não evita crime nenhum. Só serve hoje para uma coisa: segregar a fera. Tudo o mais é ilusão".
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Gevan. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 2.ed. São Paulo: Editora Martin Claret – 9ª. Reimpressão, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal – parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
FRANCO, Alberto Silva, apud GRECCO, Rogério in Curso de Direito Penal – parte geral. 4.ed. revista ampliada e atualizada: Rio de Janeiro, 2008.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
THOMPSON, Augusto. A Questão penitenciária. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 3. ed. Castelhana. Trad. da 12. Ed. AL. Juan Bustos Ramirez e Sérgio Yáñeza Pérez. Santiago, Ed. Jurídica de Chile, 1987.
Notas
- GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003. p. 28
- THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. Pág. 75
- LEAL, João José. Direito Penal Geral. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1998. p. 39
- FRANCO, Alberto Silva, apud GRECCO, Rogério in Curso de Direito Penal – parte geral. 2.ed. revista ampliada e atualizada: Rio de Janeiro, 2008. p.82
- BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 2.ed. São Paulo: Editora Martin Claret – 9ª. Reimpressão, 2009. p.68.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de Direito Penal – parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p.32
- BRASIL, Código Penal, art. 155 e 156.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 647
- Dano simples.: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa; Dano qualificado.: Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
- BECCARIA, Cesare. Op. Cit. p.49
- BRASIL, Constituição Federal. Arty. 98, I " A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante o procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação penal e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau."
- BRASIL, Lei 10.741/03 – Art. 94.
- JOPPERT, Alexandre Couto. Direito em Debate. http://www.amperj.org.br/artigos/view.asp?ID=24. Acesso em 24/05/2007.
- CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 53-54.
- GRINOVER, Ada Pellegrini et AL. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 70/71.
- ALMEIDA, Gevan. Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.