Foi publicada em 12.12.2009 a Emenda Constitucional n. 62/2009, que modifica a sistemática de pagamento por via do precatório.
Conquanto seja uma alteração recentíssima, colocam-se algumas questões a fim de que todos aqueles que atuam no âmbito jurídico possam examinar as ponderações e verificar criticamente a validade do seu conteúdo jurídico.
Antes de se iniciar o exame do conteúdo da aludida emenda, é imperioso que se fixem alguns conceitos e situações jurídicas, para que se possa compreender a reflexão que se buscará realizar e que seja indicado um norte na interpretação do sistema jurídico.
O precatório:
O precatório consiste no modo encontrado pelo sistema jurídico brasileiro para que pudessem ser cumpridas, observada a ordem do requerimento, as decisões judiciais transitadas em julgado que condenam os entes públicos ao pagamento de importâncias pecuniárias.
Anote-se que, neste trabalho, não será feita qualquer referência às Requisições de Pequeno Valor, a fim de facilitar a compreensão do sistema de cumprimento das decisões judiciais pela Fazenda Pública por meio do precatório.
A sistemática do precatório visou garantir a impessoalidade, a efetividade e a moralidade no cumprimento das obrigações oriundas de sentenças judiciais condenatórias, eis que pelo modelo anterior era possível ao Administrador escolher aqueles que teriam seus créditos satisfeitos, o que ensejava a preferência do cumprimento de determinadas obrigações fixadas pelo Poder Judiciário em favor de uns em face do adiamento do pagamento de outras obrigações fixadas pelo Poder Judiciário em favor de outros.
Importante se faz consignar que o precatório é apenas um meio necessário ao cumprimento das decisões judiciais que condenem a Fazenda Pública , e não um título autônomo desvinculado da obrigação que o originou.
A confirmação desta premissa decorre da constatação de que, nas situações em que a decisão condenatória da Fazenda Pública ao pagamento de determinado montante é desconstituída, o precatório perde a sua razão de ser e não é efetivado o respectivo pagamento.
Anote-se, ainda, que pelo sistema anterior à Emenda Constitucional n. 62/2009, não havia qualquer fixação de montante mínimo das receitas estatais a serem vinculadas ao pagamento de precatórios, existindo somente a determinação para que o pagamento em conformidade com a ordem cronológica, sob pena de seqüestro de verbas públicas, com alguns temperamentos estabelecidos pela Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.
Ao mesmo tempo, o valor do precatório era atualizado por índice indicado em lei ordinária, que podia ser distinto daquele fixado no título que deu origem ao precatório. Outrossim, os juros moratórios somente incidiriam a partir o término do prazo ânuo para o pagamento da obrigação estatal, contados da inclusão do precatório até o dia 1º de julho do ano anterior.
Fixadas as bases do sistema anterior, passo a confrontá-las com as inovações apresentadas pela Emenda Constitucional 62/2009, a fim de que seja a verificada a constitucionalidade – ou não – do sistema implantado.
Da compensação entre o débito existente entre o titular do crédito a ser requisitado por meio de precatório e a Fazenda Pública contra a qual será expedido o precatório:
Com efeito, a novel disposição do art. 100, §§9º e 10, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 62/2009, determina que, após o trânsito em julgado de eventual decisão relacionada aos embargos à execução, seja requisitado à Fazenda Pública devedora informações acerca de eventual débito que o beneficiário do crédito possua com o referido ente público, devendo este apresentar o valor discriminado do débito no prazo de 30 dias, ainda que não inscrito na Dívida Ativa, a fim de que seja promovido o abatimento do crédito favorável à Fazenda Pública, para posteriormente ser expedido precatório em relação ao saldo remanescente.
Buscou o legislador, por meio deste expediente, impedir que o cidadão que possua débitos com a Fazenda Pública receba os créditos que possui em relação a ela, sem que proceda ao pagamento dos créditos fazendários constituídos.
O disposto no citado artigo tem o mesmo teor normativo que a disposição do art. 19 da Lei 11.033/04, considerado inconstitucional no bojo da ADIN 3453, cuja relatora foi a Ministra Carmen Lucia.
É certo que a disposição do art. 19 da Lei 11.033/04 era mais agressiva que a nova disposição, eis que exigia a apresentação de todas as certidões negativas para que pudesse ser promovido o levantamento da importância relacionada ao pagamento do precatório, mas o efeito é exatamente o mesmo, ou seja, impedir que o indivíduo que possua débitos com a Fazenda Pública, ainda que não jurisdicionalizada a sua cobrança, possa receber o valor que o Poder Judiciário considerou ser-lhe devido pelo ente público.
Pretendeu-se, deste modo, promover-se a efetivação da intenção do legislador por outra via, eis que nos termos expressos do voto da eminente Ministra Carmen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade citada, não se poderia admitir outro meio de restringir a expedição do precatório que não aquele indicado no art. 100 da Constituição Federal.
Assim, visando atender ao indicado no entendimento do E. Supremo Tribunal Federal, promoveram a mesma iniciativa antes buscada pela Lei 11.033/04 por meio da Emenda Constitucional n. 62/09.
A pretensa efetivação de compensação pela Fazenda Pública sem o necessário contraditório é absolutamente inconstitucional, porque acaba por violar diversos preceitos constitucionais.
O primeiro deles refere-se à impossibilidade de ser restringido o cumprimento de decisão judicial da qual não cabe qualquer recurso à existência ou não de crédito unilateralmente fixado pela Fazenda Pública. Isto porque tal condição não foi imposta pelo Magistrado ao examinar a causa que ensejou a condenação da Fazenda Pública e a fixação de tal condição para o cumprimento das decisões judiciais acaba por impedir a plena eficácia da decisão exarada pelo Poder Judiciário, o que permite verificar a violação ao princípio constitucional da separação dos poderes e da disposição constitucional da imutabilidade da coisa julgada.
Viola, ainda, a nosso sentir, a isonomia, eis que não existe razão suficiente para que o crédito fazendário possa ser exigido antes de ser requisitado o pagamento de decisão judicial, sem que o cidadão que possa exigir o pagamento do crédito que possua com a Fazenda Pública antes de realizar o pagamento de dívida que possua com a mesma.
Existe, ainda, interessante ponderação à violação ao devido processo legal, eis que ausente qualquer indicação do titular do crédito insurgir-se contra a comunicação da existência dos créditos devidos por ele.
Pondere-se, ainda, que estes fundamentos encontram-se expressamente aludidos nos votos dos Eminentes Ministros Carmen Lucia, Ricardo Lewandoski, Cesar Peluso, Carlos Brito, na decisão indicada.
Por estes motivos, possível se faz apontar a inconstitucionalidade da referida disposição.
A cessão do precatório a terceiro:
Com efeito, a nova sistemática autoriza a cessão do valor total ou parcial contido no precatório independentemente da concordância da Fazenda Pública devedora, considerando tal situação como simples cessão de crédito, total ou parcial.
Questão interessante é saber como será efetivado o controle do valor das cessões, a fim de que as mesmas não ultrapassem o valor total do crédito do precatório.
A ponderação de tal situação é especialmente relevante porque cabe ao Juiz de Primeiro Grau expedir o precatório e ao Presidente do Tribunal ao qual está vinculado o Magistrado que determinou a sua expedição a atualização e a determinação do pagamento.
Assim, a cessão de crédito deveria ser examinada pelo Juízo de Primeiro Grau ou pela Presidência do Tribunal de Justiça? Entendo que deve a mesma ser examinada pelo Juízo de Primeiro Grau, eis que a transmissão do crédito existente no precatório equivale à cessão de parte do direito exeqüendo, o qual permite ao cessionário habilitar-se no Juízo da Execução como titular do crédito.
Posteriormente, caberá ao Juízo Monocrático comunicar ao Presidente do Tribunal para que anote a ocorrência da substituição da titularidade total ou parcial do precatório.
Entretanto, para que possa o Magistrado Singular examinar viabilidade da promoção da substituição do polo ativo da execução, ainda que parcialmente, imprescindível se faz verificar perante a Presidência do Tribunal se ainda existe crédito em nome do titular original a fim de que se possa apurar se a substituição pode ser efetivada validamente.
Isto porque a cessão do direito inerente ao precatório pode ser efetivada de forma parcial, de modo que o direito ao crédito pode acabar sendo titularizado por terceiros, e é necessário o controle de tais cessões a fim de que não seja cedido valor superior ao crédito existente por ocasião da cessão.
Deste modo, embora exista a novidade de não ser necessária a anuência da parte requerida, é imprescindível que a mesma seja notificada e comunicado o Juízo que expediu o precatório para que se possa promover validamente, com a consignação no instrumento junto à Presidência do Tribunal, nos termos do art. 100, §14, da Constituição Federal.
O regime especial para pagamento de precatórios:
A grande novidade apresentada pela Emenda Constitucional está na possibilidade de ser estabelecido regime especial de cumprimento dos precatórios a ser efetivado na forma do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, nos moldes da redação conferida pela Emenda Constitucional 62/09, enquanto não editada lei complementar para estabelecer outra forma de regime especial de cumprimento dos precatórios.
Na forma do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, resta suspensa a aplicação do disposto no art. 100, no que tange à obediência da ordem dos precatórios, em relação aos precatórios cujo prazo para pagamento tenha expirado, bem como com relação àqueles que vencerem no curso de sua efetivação.
Em verdade, o denominado regime especial determina a suspensão da obediência da ordem dos pagamentos dos precatórios em relação a qualquer ente público, bem como torna letra morta a possibilidade da parte requerer o seqüestro de verbas públicas no caso de descumprimento da ordem dos precatórios. Subverte, assim, completamente, o regime anterior dos precatórios.
No que respeita ao Regime Especial, os entes federativos poderão optar por duas formas, à escolha do respectivo Poder Executivo: a) promover o depósito de determinada quantia mínima por ano para pagamento dos precatórios; ou b) efetivar um regime especial com o depósito de determinado montante em conta especial, devendo 50% do valor ser destinado para o pagamento dos precatórios segundo a ordem dos precatórios na forma do art. 100, da Constituição Federal e 50% do valor destinado ao pagamento dos precatórios a ser realizado em leilão, sendo adimplido o credor que oferecer o maior deságio em relação ao débito – a norma determina o depósito do valor do saldo total dos valores devidos a título de precatórios em uma conta especial, acrescido de juros de mora e correção monetária, sendo necessário o depósito anual equivalente ao total do valor devido reduzidas as amortizações realizadas e dividido pelo número de anos em que faltam para completar 15 anos do início da efetivação do regime especial.
O primeiro questionamento que pode ser indicado contra quaisquer dos regimes especiais é que o precatório constitui forma de instrumentalizar o pagamento das dívidas do ente público a fim de que sejam respeitados os princípios da moralidade, impessoalidade e até mesmo de eficiência, e não forma de o ente público ser beneficiado pela demora do cumprimento da obrigação ou reduzida a obrigação determinada pelo Poder Judiciário.
Por se tratar o precatório de obrigação devida pelo Estado, não poderia ele promover o oferecimento de cumprimento mais célere da obrigação caso a parte considerasse possível reduzir parte do benefício econômico que lhe foi garantido pelo Poder Judiciário.
A modificação da forma do pagamento dos precatórios, a fim de que seja respeitada a ordem cronológica apenas em relação a 50% dos valores depositados para atender aos débitos da Fazenda Pública, acaba por reduzir drasticamente a força normativa das decisões do Poder Judiciário, eis que de nada adiantará ao Poder Judiciário fixar determinada obrigação ao Estado, pois o credor, para ver seu crédito pago de forma célere, o que deveria ser sempre realizado, deve se submeter à redução do valor que lhe foi garantido por Poder do próprio Estado.
Deste modo, o enfraquecimento das decisões do Poder Judiciário, de modo a torná-las insuficientes para que as partes possam ter satisfeitas as suas pretensões, nos exatos limites em que estabelecida pelo próprio Estado, enseja a consideração de que, no caso, ocorreria verdadeira violação à separação dos Poderes, eis que o direito assegurado pelo Poder Judiciário não poderia ser plenamente implementado.
Por este singelo motivo, ambos os regimes especiais são incompatíveis com a própria razão da existência do precatório e a sua compreensão como forma de cumprimento da decisão judicial em desfavor da Fazenda Pública.
Ainda que assim não se entenda, existe flagrante ilegalidade na fixação de diferentes percentuais de comprometimento da receita líquida, dependendo da localização geográfica dos Municípios e Estados, especialmente porque tal preceito fere a isonomia entre as unidades federativas não abarcada pelo art. 18 da Constituição Federal, salientando-se que existe a necessidade de tratamento isonômico entre todos os entes federativos, não cabendo beneficiar alguns em prejuízo de outros.
Por esta razão, a fixação de alíquotas de comprometimento da receita é inconstitucional, eis que não poderia a União Federal ou o Constituinte Derivado estabelecer qualquer benefício em prol de alguns entes federativos em detrimento de outros.
Conclusão:
Por estes motivos, parece ser este novo sistema implementado inconstitucional por qualquer ângulo que se verifique a questão, mas cumprirá ao Supremo Tribunal Federal examinar a questão dentro em breve, devendo-se aguardar as ponderações dos Senhores Ministros.