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A competência licenciatória vincula a competência fiscalizatória?

27/12/2009 às 00:00
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O licenciamento ambiental é um importante instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, sendo exigido para as atividades de construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, conforme caput do art. 10 da Lei n° 6.938/81 [01].

Este mesmo dispositivo legal ainda prevê que a competência para tal licenciamento é do órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.

No entanto, o §4° da referida Lei n°6.938/81 também trouxe a competência licenciatória do IBAMA para os casos de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional.

Já a Resolução Conama n° 237/97 [02] dispõe sobre as atividades e empreendimentos sujeitas ao licenciamento ambiental a nível federal, estadual e municipal, trazendo em seus artigos 4°, 5° e 6°, respectivamente, as competências para o licenciamento a cargo do IBAMA, do órgão ambiental estadual ou distrital e do órgão ambiental municipal.

Ao lado dessa competência licenciatória, os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA [03], possuem também a competência fiscalizatória.

Nesse sentido, alerta Paulo de Bessa Antunes [04] que o licenciamento ambiental é, juntamente com a fiscalização, a principal manifestação do poder de polícia exercido pelo Estado sobre as atividades utilizadoras de recursos ambientais.

Assim, cabe a todos os órgãos integrantes do SISNAMA o dever de fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental em vigor, em atendimento ao quanto prescrito no caput art. 225 da CF/88, pelo qual todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações e em consonância com a competência comum estabelecida no art. 23, VI da nossa Carta Magna.

Diante dessas noções, surge uma questão: o poder de fiscalizar se vincula ou se limita a quem detenha o poder de licenciar?

Por exemplo, se cabe ao órgão estadual ou municipal o licenciamento, poderia o IBAMA exercer seu poder de fiscalização e autuar a atividade ou empreendimento?

Tais considerações mostram-se relevantes porque tem sido comum a alegação de órgãos municipais e estaduais quanto à impossibilidade de atuação fiscalizatória do IBAMA, quando o empreendimento tiver impacto local ou for licenciado pelo órgão estadual ou municipal.

Duas situações se apresentam e precisam ser separadas.

Uma situação é quando a atividade ou empreendimento utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como, os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental são implementados ou instalados sem a decida licença ambiental.

Outra situação é quando o órgão ambiental competente realiza o procedimento licenciatório, mas o faz de maneira inadequada, sem observar todos os requisitos e exigências legais ou a implantação/execução da atividade licenciada vem causando danos ao meio ambiente.

Na primeira situação, quando se dá a ausência de licença ambiental, não há razão para vincular o poder de fiscalização a quem possuía a competência de licenciar ou autorizar.

Este é o único entendimento possível quando se observa a competência comum constante do art. 23,VI da CF/88 e do disposto no caput do art. 225 da CF/88 que assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Ademais, neste caso, o meio ambiente não pode ficar à mercê da omissão ou da ausência de uma estrutura operacional de determinado órgão ambiental que seja capaz de viabilizar a devida fiscalização, cabendo a todos os órgãos integrantes do SISNAMA o dever de fiscalizar.

Na segunda situação, deve-se ter em conta que pende em favor do administrado a estabilidade das situações criadas administrativamente, caracterizando-se uma situação jurídica instituída no sentido de dar continuidade à atividade ou empreendimento licenciados, em decorrência do princípio da segurança jurídica.

Nesse sentido, vale a transcrição de trecho do julgamento [05] proferido pela Quinta Turma do TRF 1ª Região em 20/08/2008:

"Ora, se era defeso, no caso, ao IBAMA usurpar, ao arrepio da lei, a competência do órgão estadual, e tendo presente a necessidade de estabilidade das situações criadas no âmbito da Administração Pública, é certo que as obras desenvolvidas pela Agravante, ao levar a cabo o projeto experimental de plantio de cana, estavam todas amparadas em um ato estadual de aparência legal e, além de terem consumido considerável investimento financeiro, criaram mais de 300 empregos, consoante noticiam os autos. Portanto, a sua interrupção ex abrupto pelo IBAMA implicou vulneração ao princípio da segurança jurídica (subprincípio do Estado Democrático de Direito), na medida em que abalou a confiança do administrado na intangibilidade de que se revestem os atos da Administração Pública.

(...)

Por mais que se reconhece ao IBAMA competência supletiva para conceder licenças e fiscalizar atividades potencialmente poluidoras do meio ambiente mesmo em áreas eminentemente a cargo de órgãos ambientais, sua atuação não tem o condão de suprimir ou de sobrepujar a competência do órgão estadual. Afinal, ele não é órgão revisor dos atos estaduais. Se pretende impugnar, de qualquer forma, os atos da NATURANTINS que beneficiaram a empresa ora agravante deve se valer da via judicial ou representar ao Ministério Público."

Em verdade, nesta última situação, o que sobressai é um conflito entre bens jurídicos constitucionalmente assegurados: a proteção à segurança jurídica das situações criadas administrativamente X proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

E qual bem jurídico deve prevalecer nesse conflito ?

Nenhuma dúvida existe quanto à preponderância do bem jurídico meio ambiente, enquanto expressão do próprio direito à vida e reconhecido como direito fundamental.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, mutatis mutandi, enfocando a preservação da integridade do meio ambiente como expressão constitucional de um direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas, no julgamento da ADI-MC 3540/DF, destacou a precedência do direito à preservação do meio ambiente:

E M E N T A: MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvim ento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. (...)

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Outrossim, deve-se ter sempre em mente que todas as exigências do procedimento licenciatório, como a instituição de licença prévia, licença de instalação e licença de operação ou, no caso de intervenção em áreas de preservação permanente, a exigência de procedimento administrativo próprio, nos casos de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, se dão com a finalidade de assegurar a máxima proteção e preservação do meio ambiente.

E quando tais requisitos legais não são observados já há uma vulneração do bem jurídico meio ambiente, máxime em face do princípio da prevenção e da precaução.

Ademais, se a ninguém é dado desconhecer a lei a ausência da observância dos requisitos legais não tem o condão de resultar numa situação que possa gerar um abalo na confiança do administrado diante da intangibilidade de que se revestem os atos da Administração Pública, nem vulnerar o princípio da segurança jurídica, como referido no julgado acima.

Como se vê, não se pode confundir a competência para licenciar com a competência para fiscalizar, sendo que esta última não se vincula ou se limita diante da competência licenciatória.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça no AgRg no Resp n° 711.405-PR em recente decisão, acolheu esse entendimento, senão vejamos excerto deste julgado:

"O nosso pacto federativo atribui competência clara aos quatro entes da federação para proteger o meio ambiente, sendo que o exercício desse poder/dever dá-se baseado no poder de polícia administrativa.

(...)

O poder-dever de fiscalização dos outros entes deve ser exercido quando, apesar de concedida a licença estadual, a atividade esteja, sem o devido acompanhamento do órgão estadual, causando danos ao meio ambiente, uma vez que a irreversibilidade e o perigo da demora do dano aqui tratado ensejam a atuação comum e imediata dos quatro entes da federação."

Ademais, da leitura do artigo 76 da Lei n° 9.605/98 extrai-se a possibilidade do exercício do poder de fiscalização de maneira concomitante pelos órgãos ambientais integrantes do SISNAMA.

No mesmo sentido, o próprio TRF 1ª Região, por sua Quinta Turma, revendo posição anterior, em decisão recente de 08/07/2009, em consonância com o STJ, decidiu pela ampla possibilidade de fiscalização:

DIREITO AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LICENÇA PARA INSTALAÇÃO DE INDÚSTRIA POR ÓRGÃO AMBIENTAL ESTADUAL. OUTORGA. IBAMA. AUTO DE INFRAÇÃO. COMPETÊNCIA FISCALIZATÓRIA. LEI Nº 6.398/81, ART. 10, § 3º. RECURSO PROVIDO. SEGURANÇA DENEGADA.

1. Licença ambiental outorgada por órgão ambiental estadual, não impede o IBAMA de exercer seu poder de polícia administrativa, pois não há que se confundir competência para licenciar com competência para fiscalizar (Lei nº 6.398/81, art. 10, § 3º).

2. "O pacto federativo atribuiu competência aos quatro entes da federação para proteger o meio ambiente através da fiscalização", bem como "a competência constitucional para fiscalizar é comum aos órgãos do meio ambiente das diversas esferas da federação, inclusive o art. 76 da Lei Federal n. 9.605/98 prevê a possibilidade de atuação concomitante dos integrantes do SISNAMA" (AgRg no REsp 711405/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 28/04/2009, DJe 15/05/2009).

3. Recurso de apelação do IBAMA provido. Segurança denegada.

4. Remessa oficial prejudicada.

(AC n° 2000.33.00.014590-2/BA, TRF 1ª Região, Quinta Turma, julgado em 08/07/2009)

Destarte, diante de um dos mais significativos direitos fundamentais, o direito à preservação do meio ambiente, a atividade de fiscalização é ampla por uma imposição da própria Constituição Federal e, portanto, o ente que detém competência para licenciar determinada atividade não detém o poder de fiscalização exclusivo sobre esta atividade.


Notas

  1. O Anexo VIII da Lei n° 6.938/81, incluído pela Lei n° 10.165/2000, traz o rol das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais.
  2. O seu anexo I traz o rol de atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental.
  3. Vide art. art. 6° da Lei n° 6.938/81.
  4. ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Editora Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2000, pg. 142.
  5. Vide Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n° 2008.33.01.034519-2/TO
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Sobre a autora
Caroline Menezes Barreto

Procuradora Federal, especialista em Direito Público pela UNIFACS-Universidade Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARRETO, Caroline Menezes. A competência licenciatória vincula a competência fiscalizatória?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2370, 27 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14089. Acesso em: 19 abr. 2024.

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