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"Justiça do crédito": tribunal de exceção

31/12/2009 às 00:00
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O Estado criou para o empresariado nacional uma Corte Especial, que se pode denominar de "Justiça do Crédito".

Este "Tribunal", diferentemente da Justiça Comum, funciona sem morosidade, ao revés, destacando-se pela celeridade; dispensa, para dizer o direito, de maiores delongas, a exemplo de instrução de processo ou do contraditório; ademais, não reclama estrutura semelhante à da Justiça Comum, pois conta apenas com funcionários e com tecnologia avançada para possibilitar-lhe aplicação de pena para o consumidor, inadimplente ou não, de todo o país, em tempo real.

O empresário, único favorecido com a criação da "Justiça do Crédito", não precisa de advogado para apresentar sua queixa, porque basta servir-se de seu próprio quadro funcional, simplesmente comunicando à Corte para que seja inserido o nome deste ou daquele cidadão no rol de maus pagadores. A penalidade contra o cidadão é imediata. A comunicação é recebida pela SERASA – Centralização dos Serviços Bancários S/A -, empresa privada, criada por bancos e instituições financeiras ou pelo SPC – Serviço Nacional de Proteção ao Crédito –, CNDL - órgão da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. Além destes, há outros esteios da "Justiça do Crédito", a exemplo do CCF – Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo -, operacionalizado pelo Banco do Brasil e que guarda dados de emitentes de cheques sem fundos, o SCR – Sistema de Informações Crédito do Banco Central do Brasil –, que analisa riscos do crédito a ser fornecido, o CADIN – Cadastro de Inadimplentes -, que possui dados dos devedores de tributos.

Para se avaliar a importância da SERASA para o empresariado basta informar que se constitui no maior banco de dados sobre consumidores de toda a América Latina, e participa de quase todas as decisões no oferecimento de crédito, no Brasil, respondendo por aproximadamente quatro milhões de consultas diárias.

Toda a estrutura da "Justiça do Crédito" é sustentada fundamentalmente nesses órgãos que armazenam dados cadastrais de empresas e de cidadãos, apontamentos, noticiando dívidas vencidas e não pagas, protestos de títulos, ações judiciais, cheques sem fundos, além de outras anotações, advindas de órgãos públicos e oficiais, enfim possuem todas as informações que necessitam para transmitir as penas aplicadas aos bancos, às lojas, às pequenas e grandes empresas, às escolas, às concessionárias, etc. Isto não evita o cometimento de frequentes enganos na negativação do nome de cidadãos que não são inadimplentes e, por vezes, nunca compraram ou nunca tiveram conta com a empresa ou com o banco fornecedor das informações negativas.

O "Tribunal de Exceção" manda inserir o nome do cidadão no cadastro de maus pagadores e a consequência imediata, independentemente de ser verídica ou não o apontamento, é a negação de crédito, o fechamento do mercado de trabalho para o inadimplente, assim considerado pelo empresário. Dali em diante, a pessoa que foi apenada pela "Justiça do Crédito", passa por restrições de toda ordem, ficando com pretensões comerciais obstruídas, além de impossibilitada de acesso ao mercado de trabalho. Este é princípio condenatório conferido à Corte dos empresários.

À "Justiça do Crédito" é conferida competência, intrínseca do Judiciário, consistente na pena de fechamento de todas as portas do sistema financeiro, do comércio, além de impedir o "inadimplente" de obter vaga no mercado de trabalho.

E tudo isto acontece sem que seja oferecida oportunidade ao consumidor para defender-se, apesar de preceito legal garantir o contraditório, tanto em processo judicial quanto administrativo, inciso LV, art. 5º da Constituição.

O mesmo Estado que criou a "Justiça do Crédito" também editou a Lei n. 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, no qual afirma ser necessária prévia consulta/notificação do inadimplente para aplicação da penalidade, art. 43, § 2º, além da Portaria nº. 5 de 27/08/2002, na qual o Ministério da Justiça reforça a determinação consumerista para considerar abusiva a cláusula que "autorize o envio do nome do consumidor e/ou seus garantes, a bancos de dados e cadastros de consumidores, sem comprovada notificação prévia".

A comunicação, exigida pela lei e reclamada pelo consumidor, objetiva fundamentalmente oferecer melhores condições para negociação entre o credor e o devedor, além de possibilitar tempo para correção de eventuais erros.

Nesta situação, como fica o correntista negativado por devolução de cheques emitidos por terceiro que serviu de documentação falsa para abrir a conta corrente e soltar cheques em nome do correntista?

Como acomodar a situação do trabalhador que perdeu o emprego não podendo cumprir o compromisso assumido, e agora fica bloqueado de ter acesso ao mercado de trabalho, face à negativação?

Enfim, como explicar a situação do consumidor que não deve, mas teve seu nome negativado, em virtude de engano cometido pela empresa?

E o pior é que, muitas vezes, não se trata de restrição ao crédito, pois concessionárias de serviços públicos, a exemplo das telefônicas, empresas de energia, água, escolas TV, consórcios e outros, não operam com a concessão de crédito, como acontece com as financeiras que emitem moeda. Mesmo assim, são punidos pelo "Tribunal do Crédito".

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É de se indagar: como pode ser o cidadão impedido de comprar, de contratar um serviço, de arrumar um emprego somente porque constam informações, às vezes erradas, imputando-lhe a pecha de mau pagador?

Há, induvidosamente, claro desrespeito ao principio constitucional do devido processo legal, anotado no art. 5º, incisos LIII e LIV, com abrangência ampla.

Agrava-se ainda mais a situação, quando se sabe da dificuldade que o consumidor enfrenta para retirada do nome do banco de dados. É que o "Tribunal de Exceção", por meio do SERASA e SPC, cria embaraços de toda natureza, alegando, por exemplo, ser mero repassador de informações oferecidas pelas empresas.

Por tudo isto, chega-se à conclusão de que os grupos comerciais e financeiros possuem uma Corte, "Tribunal do Crédito", destinada a proporcionar-lhes maiores lucros, porque evita riscos, sem respeitar as garantias constitucionais e os princípios democráticos do país; a ação desses grupos provoca danos materiais, morais e de ordem social ao cidadão comum, criando maiores obstáculos para os pobres, que mais necessitam do comércio, do crédito e do emprego.

A situação ganhar maior perplexidade depois que o STJ ratificou o entendimento do "Tribunal de Exceção", admitindo correta a negativação, sem comprovação de comunicação prévia, modificando assim decisões anteriores do próprio STJ e violando a compreensão sobre a matéria por parte dos Tribunais, dos Juízes, do Ministério Público, dos órgãos de proteção ao consumidor, da lei e do próprio governo.

Editou-se a Súmula n. 404, dispensando a notificação prévia para negativação do nome do consumidor.

A Súmula foi vazada nos seguintes termos:

"É dispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros".

Esta pode ser classificada como uma das decisões mais duras praticadas contra o consumidor, no ano de 2009, exatamente pelo chamado Tribunal da Cidadania.

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Sobre o autor
Antonio Pessoa Cardoso

Ex-Corregedor das Comarcas do Interior do Tribunal de Justiça da Bahia. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Antonio Pessoa. "Justiça do crédito": tribunal de exceção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2374, 31 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14119. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Título original: "Tribunal de exceção".

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