Dispõe o Anexo XXI do RICMS/MG (Decreto nº 38.567, de 19.12.96):
"Art. 13. Nas hipóteses de transferência de estoque, previstas nos itens 33 e 34 do Anexo II, o saldo credor porventura existente poderá ser transferido ao adquirente ou destinatário, limitado ao valor do imposto correspondente à mercadoria objeto da operação."
O referido item 33 do Anexo II tem a seguinte redação:
"Item 33. Transferência de estoque de mercadoria, de um para outro contribuinte, em virtude de transformação, fusão, cisão, incorporação ou aquisição de estabelecimento, observado, quanto aos livros fiscais, o disposto no artigo 170 deste regulamento."
Visa o presente estudo a questionar a legitimidade da restrição no que toca especificamente às operações de concentração societária: fusão e incorporação de empresas. Sem embargo, a similaridade lógica que guardam com a transformação, a cisão e a aquisição de sociedades - bem percebida pelo Fisco mineiro, que lhes reservou idêntico tratamento jurídico e as reuniu em um único dispositivo regulamentar - permite a extensão das conclusões aqui obtidas, com as necessárias adaptações de raciocínio, também a estes outros institutos.
No que nos interessa, percebe-se que a Fazenda do Estado de Minas Gerais apenas admite sejam apropriados pela empresa incorporadora (ou resultante do processo de fusão), para fins de compensação com seus débitos futuros, os créditos de ICMS decorrentes da aquisição, pelas incorporadas (ou fusionadas), daquelas mercadorias efetivamente transferidas em virtude da incorporação (ou fusão). Com isto, estaria vedado o aproveitamento dos créditos que as incorporadas (ou fusionadas), por qualquer motivo (predominância de operações imunes, isentas ou com alíquota reduzida em suas atividades, por exemplo), tenham acumulado.
As fusões de sociedades no direito brasileiro são reguladas pela Lei nº 6.404, de 15.12.76 (art. 223 e ss). Apesar de materialmente limitada às sociedades por ações, é cediço na doutrina e na jurisprudência nacionais que a lei referida aplica-se subsidiariamente àquelas por cotas de responsabilidade limitada.
Segundo WALDIRIO BULGARELLI, fusão própria é a que dá origem a uma nova sociedade, com a extinção das fusionadas. Dessa forma, a incorporação caracteriza-se como modalidade imprópria de fusão, já que uma das sociedades envolvidas não se extingue. (1)
A doutrina nacional e d’alhures classifica a incorporação e a fusão stricto sensu como espécies do gênero fusão (lato sensu), compreensivo de todas as formas de concentração societária. Assim, quando a lei brasileira se refere ao fenômeno da incorporação, alude à fusion par absortion do direito francês (2), à incorporazione do direito italiano (3) e à merger do direito americano (4).
O que importa ressaltar é a disciplina legal dos dois institutos no Direito brasileiro. Confira-se o que dispõe a LSA:
"Art. 227. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
(...)
Art. 228. Fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações."
Para BULGARELLI (5), os elementos essenciais aos fenômenos da fusão e da incorporação são:
Dentre os elementos vistos, o que importa ao desate da questão proposta é a transferência, com sucessão universal, do patrimônio das sociedades incorporadas ou fusionadas para a sociedade incorporadora ou constituída. É dizer, processada a concentração, os patrimônios integrais das sociedades extintas passam a compor o patrimônio da remanescente ou criada.
Deste entendimento não discrepa a melhor doutrina estrangeira. Confiram-se as palavras de RIPERT e ROBLOT (6):
"A doutrina e a jurisprudência clássicas apegam-se à idéia de transmissão universal do patrimônio. A incorporação analisa-se, entre nós, em uma dissolução antecipada da sociedade absorvida, com transmissão global do patrimônio para a sociedade incorporadora, sendo o capital aumentado nesta medida."
É esta também a lição do italiano FERRI (7):
"Dá-se, portanto, necessariamente, uma sucessão a título universal da sociedade incorporadora ou que resulta da fusão no patrimônio das sociedades que, em conseqüência da fusão, perdem a sua autonomia."
Resulta demonstrado que, sem reduzir a fusão e a incorporação à mera transmissão patrimonial, pode-se afirmar que este é o seu elemento essencial. Findo o rito procedimental da concentração, dá-se a sucessão in universum ius, de forma que "todos os vínculos obrigacionais, os direitos reais, os direitos sobre bens imateriais, transmitem-se, subsumidos globalmente" (8).
Ultrapassado o enfoque introdutório da questão, aproposita-se a análise dos aspectos fiscais da concentração de empresas, que, segundo OSMAR BRINA CORRÊA LIMA, "assumem nesta seara especial relevo". (9)
O Código Tributário Nacional, lei complementar em sentido material, disciplina os consectários fiscais das fusões, transformações e incorporações de sociedades comerciais. É esta a letra da lei:
"Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até a data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas."
Em consonância com a regra comercial da sucessão universal nos casos de concentração de empresas, o CTN atribui à sociedade remanescente ou criada a responsabilidade pelos tributos devidos pelas incorporadas ou fusionadas.
Em contrapartida, o Direito há de reconhecer-lhe a titularidade dos créditos financeiros adquiridos pelas empresas extintas ao pagarem tributo indevido ou ao suportarem, nas aquisições, ônus de imposto indireto superior ao montante devido pelas saídas promovidas (acumulação de créditos de IPI ou ICMS). Do contrário, mantendo-lhes os débitos e permitindo o confisco de seus créditos, ofenderia a reciprocidade de tratamento entre as suas contas ativa e passiva e agrediria a capacidade contributiva da empresa incorporadora ou constituída por fusão, que nada mais é do que a soma dos dois patrimônios envolvidos.
O pagamento de tributo indevido importa empobrecimento sem causa do contribuinte. Se o ressarcimento, por repetição ou compensação, não é pleiteado ou ultimado antes de sua extinção (por morte, em se tratando de pessoa física, ou pela ocorrência de uma das causas previstas na lei, sendo o caso de pessoa jurídica), nem por isso deixa de ser ilícito o proveito auferido pela Fazenda, que permanece obrigada perante os sucessores, quando os há. Havendo possibilidade jurídica de compensação, e sendo esta a via eleita pelo sucessor, não pode o Fisco exigir-lhe o recolhimento de tributo da mesma espécie, ainda que por fato próprio efetivamente acontecido, antes que a soma de seus débitos se equipare ao valor indevidamente decotado do patrimônio que recebeu.
O raciocínio é equivalente quando a acumulação de créditos financeiros pelo sucedido decorre, não do pagamento de tributo indevido, mas de sua situação particular perante a sistemática da não-cumulatividade do IPI ou do ICMS. É o que se dá com os exportadores, que adquirem créditos ao suportarem o ônus do imposto incidente nas mercadorias entradas e, sendo imunes em suas saídas, não têm débitos em que abatê-los. A situação é também freqüente nos estabelecimentos cujas operações predominantes submetem-se a alíquotas reduzidas. Neste último caso, acumulam-se os créditos que sobejam depois da extinção por compensação do imposto devido em cada período.
Enquanto não realizado este saldo credor, o imposto terá sido economicamente suportado, de forma total ou parcial, pelo contribuinte de direito (o comerciante ou industrial), em flagrante violação à sistemática da não-cumulatividade. Dando-se a sua extinção sem a realização dos créditos acumulados, consolida-se em sua pessoa o peso do imposto, tornando-se definitiva a vulneração do princípio constitucional. A ofensa apenas se evita com a transferência dos créditos a terceiros (gratuita ou onerosa, conforme os dois estabelecimentos pertençam ou não ao mesmo grupo empresarial), ou com o seu resgate pelo Estado, método comum na Europa, mas inexistente entre nós.
Eis o que faz o art. 13 do Anexo XXI do RICMS mineiro: confisca parcialmente à sociedade incorporadora ou constituída por fusão os créditos de ICMS das empresas extintas, sem restringir proporcionalmente a sua responsabilidade tributária por sucessão. A injustiça é manifesta. Se o imposto não-recolhido pelas sucedidas, relativo ou não às mercadorias transferidas à sucessora, pode e deve ser desta exigido, desde que lançado dentro do prazo decadencial de cinco anos, é evidente que também os créditos por aquelas acumulados contra o Fisco, tenham ou não relação com as mercadorias existentes à época da extinção e desde que também não fulminados pelo decurso do tempo, hão de ser integralmente reconhecidos à sucessora sob pena de grave distorção em seu patrimônio.
A validade da conclusão é reforçada pelo exame da disciplina constitucional da não-cumulatividade no IPI e no ICMS. Dispõe o Texto Magno:
"Art. 153, § 3º. O imposto previsto no inciso IV [IPI]:
(...)
II - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.
(...)
Art. 155, § 2º. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal."
Muitos são os países onde o princípio da não-cumulatividade, conquanto plenamente vigente, não é sequer mencionado em sede constitucional. No Brasil, ao contrário, não se conforma a Lei Suprema em ditá-lo concisamente: trata-o em minúcia, já lhe definindo as regras mais importantes.
Ao fazê-lo, estabelece desde logo a única exceção admissível à sua sistemática, restrita ademais ao âmbito do ICMS:
"Art. 155, § 2º, II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores."
Não há na Constituição nenhuma outra restrição à amplitude do princípio da não-cumulatividade. Poderia a legislação infraconstitucional, à guisa de discipliná-lo, na verdade restringi-lo, instituindo exceções suplementares ali não previstas? A resposta é evidentemente negativa.
Como lecionam MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI e SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO (10):
"Demonstra a doutrina atual que não se pode mais argumentar com a idéia de que o princípio da não-cumulatividade, formulado na Constituição, depende de regulamentação livremente posta em lei complementar, porque o legislador não é livre para pôr e dispor, mas somente poderá atuar a partir das bitolas constitucionais. Apesar de o art. 155, § 2º, XII, c, estabelecer que cabe à lei complementar "disciplinar o regime de compensação do imposto", é claro que a regulamentação infraconstitucional não pode restringir, alterar ou prejudicar o princípio da não-cumulatividade, que na própria Constituição tem ampla guarida."
E nem o fez, já que a norma regulamentar em exame carece de qualquer supedâneo legal, como se passa a demonstrar.
Como já se disse, é inconstitucional e iníqua a limitação dos créditos de ICMS apropriáveis pela sociedade incorporadora ou constituída por fusão ao valor do imposto que incidiu sobre o estoque a ela transferido quando da concentração, a menos que sua responsabilidade tributária por sucessão restrinja-se igualmente ao não-recolhimento destas mesmas quantias pelas incorporadas ou fusionadas.
O dispositivo do art. 109 do CTN - "os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários" - não convalida qualquer alteração nos efeitos tributários dos institutos privados, mas, obviamente, apenas as alterações compatíveis com os ditames da Constituição.
Demais disso, o instrumento idôneo para proceder às alterações facultadas pelo CTN é a lei, sendo inválidas de plano, independentemente de qualquer consideração a respeito de seu conteúdo, aquelas estabelecidas em decretos executivos autônomos.
É este exatamente o caso do art. 13 do Anexo XXI do RICMS mineiro. Não se encontra em qualquer texto legal vigorante, passado ou presente, nenhum dispositivo que respalde a restrição regulamentar aos efeitos patrimoniais da concentração de empresas, definidos na lei comercial. São absolutamente silentes a respeito, em sua redação originária ou posterior, o Decreto-lei nº 406, de 31.12.68, a Lei estadual nº 6.763, de 26.12.75, o Convênio ICMS nº 66/88 - lei complementar em sentido material, segundo a jurisprudência consolidada do STJ - e a Lei Complementar nº 87, de 13.09.96. De lembrar que o silêncio da lei, no campo do Direito Público, equivale à proibição da conduta não prevista, diferentemente do que sucede no Direito Comum, em que se tem por facultado tudo o que não vem expressamente vedado.
Quanto à restrição ao aproveitamento de créditos em matéria de fusão ou incorporação, portanto, o RICMS mineiro é regulamento autônomo, ultra legem e absolutamente inválido.
Com efeito, é da essência do Estado de Direito o primado da legalidade. Ao tempo em que alerta para os diversos perfis que o princípio da legalidade assume nos vários países, conformado que é pelo Direito Constitucional positivo de cada qual, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO afirma que, no Brasil, todos os administradores públicos, do Presidente da República ao seu mais modesto subordinado, só podem ser "dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no direito brasileiro" (11). Aduz ainda o Autor (12):
"No Brasil, o princípio da legalidade, além de assentar-se na própria estrutura do Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo, está radicado especificamente nos arts. 5º, II, 37 e 84, IV. Estes dispositivos atribuem ao princípio em causa uma compostura muito estrita e rigorosa, não deixando válvula para que o Executivo se evada de seus grilhões. É, aliás, o que convém a um país de tão acentuada tradição autocrática, despótica, na qual o Poder Executivo, abertamente através de expedientes pueris - cuja pretensa juridicidade não iludiria sequer a um principiante - viola de modo sistemático direitos e liberdades públicas e tripudia à vontade sobre a repartição de poderes."
As precisas e enérgicas observações do Mestre paulista aplicam-se à perfeição à administração tributária, destinatária que é de um quarto dispositivo constitucional institutivo da legalidade (art. 150, I).
Os regulamentos são atos administrativos destinados a dar condições de aplicabilidade à lei, explicitando-lhe as minudências. Não podem ampliar ou restringir os direitos e deveres nela estabelecidos, nem regular além do que ela própria fez. ROQUE ANTONIO CARRAZZA deita fala profunda sobre o tema (13):
"Assim, é corolário natural de tudo o que predicamos que nenhum regulamento, no Brasil, pode modificar ou ab-rogar qualquer lei tributária. Nem, tampouco, suspender ou adiar a execução da mesma.
Demais disso, lhe é proibido estabelecer normas tributárias ou prescrições concernentes a matérias que só devem ser reguladas pela Carta Magna ou que importem no exercício de funções privativas do legislador. Segue-se do considerado que o regulamento, entre nós, não pode invadir os domínios constitucionalmente reservados ao legislador, o que, de resto, reafirma o princípio da superioridade da lei e da Constituição.
O regulamento, em nosso sistema jurídico, deve estar sempre subordinado à lei tributária à qual se refere, devido à proeminência desta sobre ele. Portanto, deve guardar, em cotejo com ela, uma relação de absoluta compatibilidade.
Isto nos reconduz à premissa inicial de que o regulamento não inova originalmente na ordem jurídica, isto é, não cria nem direitos, nem obrigações. Destarte, em matéria tributária, lhe é defeso prever tributos, descrever infrações e impor quaisquer encargos que possam vir a repercutir na liberdade ou patrimônio das pessoas."
A inteligência restritiva do poder regulamentar é da tradição de nossas instituições, estando já assente na obra de PIMENTA BUENO, o grande nome do Direito do Brasil Império (14):
"Do princípio incontestável que o poder executivo tem por atribuição executar, e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que cometeria grave abuso em qualquer das hipóteses seguintes:
1º. Em criar direitos ou obrigações novas, não estabelecidos pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas atribuições, uma usurpação do poder legislativo, que só pudera ser tolerada por câmaras desmoralizadas. Se assim não fora, poderia o governo criar impostos, penas ou deveres, que a lei não estabeleceu, teríamos dois legisladores, e o sistema constitucional seria uma verdadeira ilusão.
2º. Em ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações, porquanto a faculdade lhe foi dada para que fizesse observar fielmente a lei, e não para introduzir mudança ou alteração alguma nela, para manter os direitos e obrigações como foram estabelecidos, e não para acrescentá-los ou diminuí-los, para obedecer ao legislador e não para sobrepor-se a ele.
3º. Em ordenar ou proibir o que ela não ordena, ou não proíbe, porquanto dar-se-ia abuso igual ao que já notamos no antecedente número primeiro. E demais, o governo não tem autoridade alguma para suprir, por meio regulamentar, as lacunas da lei, e mormente do direito privado, pois que estas entidades não são simples detalhes, ou meios de execução. Se a matéria como princípio é objeto da lei, deve ser reservada ao legislador; se não é, então não há lacuna na lei, sim objeto de detalhe de execução.
4º. Em facultar, ou proibir, diversamente do que a lei estabelece, porquanto deixaria esta de ser qual fora decretada, passaria a ser diferente, quando a obrigação do governo é de ser em tudo e por tudo fiel e submisso à lei.
5º. Finalmente, em extinguir ou anular direitos, ou obrigações, pois que um tal ato equivaleria à revogação da lei que os estabelecera ou reconhecera; seria um ato verdadeiramente atentatório".
A jurisprudência de nossos tribunais superiores, igualmente, não transige quanto ao primado da legalidade. Embora o controle de legalidade dos atos administrativos atualmente refuja à competência do STF, não deixa a Suprema Corte de marcar a sua posição na matéria. Confira-se:
"ADIN - SISTEMA NACIONAL DE DEFESA DO CONSUMIDOR (SNDC) - DECRETO FEDERAL nº 861/93 - CONFLITO DE LEGALIDADE - LIMITES DO PODER REGULAMENTAR - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA.
Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizara, sempre, típica crise de legalidade, e não de constitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata.
O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-ia em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada." (15)
O Superior Tribunal de Justiça, a quem ficou deferida a última palavra na matéria, vai na mesma senda:
"PROCESSUAL CIVIL - MANDADO DE SEGURANÇA REQUERIDO POR DEPUTADOS FEDERAIS - INCOMPETÊNCIA DO JUDICIÁRIO PARA INTERFERIR NA ATIVIDADE REGULAMENTAR DO EXECUTIVO - AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO - SEGURANÇA DENEGADA.
FALECE AO JUDICIÁRIO COMPETÊNCIA PARA INTERFERIR DIRETAMENTE NA ATIVIDADE REGULAMENTAR DO EXECUTIVO. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. SEGURANÇA DENEGADA.
Falece ao Judiciário competência para interferir diretamente na atividade regulamentar do Executivo, cujas atribuições estão disciplinadas na Constituição Federal.
Existindo lei a ser regulamentada, cabe ao Poder Executivo fazê-lo, sem que, aprioristicamente, possa o Judiciário avaliar sobre a oportunidade e conveniência do ato regulamentar. O controle do Judiciário, nesses casos, se fará a posteriori, ineficacializando o regulamento extra legal ou que extrapole a legislação regulamentada.
Inexiste direito líquido e certo a proteger, através do mandamus, em relação aos parlamentares, se a portaria regulamentar que inquinam de ofensiva às suas atividades de legisladores (Portaria nº 223 do Ministro de Estado das Comunicações) é ato administrativo transparente, sem eficácia alguma e muito menos o de restringir o direito subjetivo dos Impetrantes ao exercício de sua competência de legisladores.
Segurança denegada. Decisão indiscrepante." (16)
Em síntese, a restrição ao aproveitamento de créditos de ICMS em caso de fusão ou incorporação de empresas é inválida a duplo título, quer porque materialmente contrária à Constituição, quer porque formalmente ilegal, porquanto estabelecida em diploma inapto a modificar originariamente a ordem jurídica.
Apesar de ser cristalino o direito ao aproveitamento integral dos créditos acumulados pelas empresas fusionadas ou incorporadas, tem-se que, caso se pretenda exercê-lo, é prudente que se busque um pronunciamento judicial prévio, tendo em vista a certeira reação do Fisco, que, caso contrário, não deixará de autuar e impor as pesadas multas previstas na legislação. Tais penalidades incidirão, não sobre o total apropriado, mas sobre a parcela deste que já tiver sido efetivamente empregada para fins de compensação.
Com efeito, não cabe à Administração - nem mesmo em seus órgãos de controle interno, como o Conselho de Contribuintes - proceder ao controle de legalidade ou de constitucionalidade dos atos administrativos, deixando de aplicá-los quando viciados.
A atribuição é monopólio do Judiciário, de forma que, salvo decisão judicial em contrário, a Fazenda continua obrigada a aplicar a todos os contribuintes as disposições do RICMS.
Outra alternativa é o aproveitamento unilateral da integralidade dos créditos das sociedades extintas, deixando-se para provocar a manifestação judicial apenas em sede de embargos à execução fiscal. A opção tem o inconveniente de não prescindir da penhora de bens da empresa incorporadora ou constituída por fusão.
1. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades, São Paulo, Atlas, 1996, 2ª ed., pág. 67.
2. GEORGES RIPERT et RENÉ ROBLOT, Traité Élémentaire de Droit Commercial, Paris, LGDJ, 1972, 4ª ed., pág. 566.
3. GIUSEPPE FERRI, Manuale di Diritto Commerciale, Torino, UTET, 1993, 9ª ed., pág. 504.
4. FRAN MARTINS, Comentários à Lei de S/A, vol. 2, Rio de Janeiro, 1979, 1ª ed., pág. 149.
5. op. cit., pág. 63.
6. Traité Élémentaire ... cit., vol. 1, pág. 887.
7. Manuale... cit., pág. 509.
8. WALDIRIO BULGARRELI, op. cit., pág.104.
9. Curso de Direito Comercial, vol. 2, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pág. 217.
10. Direito Tributário Aplicado - Estudos e Pareceres, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, pág. 28.
11. Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 1995, 6ª ed., pág. 48.
12. op. cit., pág. 49.
13. O Regulamento no Direito Tributário Brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, pág. 103.
14. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Rio de Janeiro, 1857, § 326, pág. 237, apud ROQUE CARRAZZA, op. cit., pág. 105.
15. Medida Cautelar em ADIn nº 996 - DF, Pleno, Rel. Min. CELSO DE MELLO, votação unânime, j. em 11.03.94, in DJ de 06.05.94, pág. 10.468.
16. MS nº 4.237/95-DF, 1ª Seção, Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, votação unânime, j. em 14.02.96, in DJ de 18.03.97, pág. 7.498, grifo nosso.