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O sofisma do ciclo completo proposto pela Polícia Militar

05/01/2010 às 00:00
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Recentemente, foi objeto de debate na 1ª Conferência Nacional sobre Segurança Pública – CONSEG a proposta de criação de um sistema ostensivo-persecutório denominado "ciclo completo", que concentrará, em uma mesma instituição, as atividades de policiamento ostensivo e investigação criminal.

Segundo os proponentes dessa tese, caberá à Polícia Militar, além do patrulhamento preventivo, a adoção das medidas de Polícia Judiciária nas ocorrências em que atuar, pois, no entender deles, esse sistema unificado trará mais celeridade e eficiência no atendimento e na resolução da ocorrência na medida em que tudo será resolvido no âmbito de uma única instituição, não havendo necessidade de apresentá-la para o delegado de polícia, membro de outra instituição.

Os proponentes desse sistema argumentam que ter de apresentar toda ocorrência à Polícia Civil prejudica o serviço de patrulhamento ostensivo na medida em que se perde muito tempo na delegacia de polícia para o registro da ocorrência, fato esse que, segundo eles, repercute no aumento da criminalidade.

Apesar de os argumentos apresentados serem aparentemente convincentes, considero-os essencialmente incoerentes. Não haveria economia de tempo, pois o fato, obrigatoriamente, deverá ser levado a registro pela Polícia Militar, que disponibilizará recursos e policiais, que foram treinados para patrulhar, para o desempenho de atividades cartoriais, em prejuízo do policiamento preventivo.

Todavia, antes de se ponderar acerca dos malefícios desse sistema à preservação dos direitos fundamentais do cidadão, que perderá a garantia de ser conduzido à presença de um delegado de polícia juridicamente capacitado e sobretudo imparcial, mister se faz avaliar se a Polícia Militar tem condição estrutural e profissional para desempenhar as funções pretendidas.

Evidentemente, devido à complexidade da propositura, torna-se imprescindível, como medida preliminar, a realização de um minucioso estudo sobre a estrutura interna da instituição militar a fim de verificar a viabilidade do sistema proposto. Esse estudo, a ser realizado por uma comissão interdisciplinar, composta por expertos independentes, deverá analisar a estrutura material da instituição, se o quadro de pessoal é suficiente e capacitado, a atual dotação orçamentária e a perspectiva de impacto financeiro com a mudança, bem como a relação custo-benefício para o Estado e à sociedade.

Com relação ao quadro de pessoal da Polícia Militar, é imprescindível verificar o número exato ou aproximado de policiais militares que realmente estejam na atividade fim da instituição. Informes oficiosos relatam que há muitos policiais militares aquartelados no cumprimento de tarefas burocráticas, que poderiam perfeitamente ser desempenhadas por auxiliares administrativos; há muitos policiais militares presidindo inquéritos policiais para apurar "crimes impropriamente militares", que poderiam estar afetos à Polícia Civil; há muitos policiais militares cedidos a outras instituições ou poderes apenas para atender a interesses políticos da própria instituição; há muitos policiais militares "presos disciplinarmente" em razão de estarem submetidos a um regulamento remanescente da ditadura; há muitos policiais militares que ao invés de proteger a sociedade estão tocando instrumentos musicais, escovando cavalos em cocheiras, cortando grama ou assentando tijolos nos batalhões e, até mesmo, fazendo segurança em eventos particulares mediante o pagamento de uma taxa insignificante.

No que concerne à eficiência do serviço prestado, a Polícia Militar, diferentemente da Polícia Civil, tem a seu favor o fato de ser impossível mensurar quantas infrações penais ou violações à ordem pública foram evitadas com o policiamento ostensivo; pelo contrário, de um modo geral, as estatísticas comparativas de períodos apontam, quase sempre, aumento nos registros criminais.

Portanto, é necessário "passar a limpo" a Polícia Militar antes de lhe conferir qualquer outra atribuição, pois uma instituição que não consegue cumprir a contento a função para a qual foi criada e estruturada evidentemente não terá condições de cumular o desempenho de uma função essencialmente intelectual, jurídica e extremamente complexa.

O "ciclo completo", se aprovado, será uma grande afronta aos direitos fundamentais do ser humano, que ficará absolutamente à mercê da Polícia Militar na medida em que perderá a garantia, a segurança, de ter a sua situação jurídica analisada, com imparcialidade, por um delegado de polícia, que, também, concomitantemente, exerce controle de legalidade sobre os atos dos policiais militares. Trata-se de um retrocesso para o processo penal e conseqüentemente à justiça, que será a destinatária final do procedimento militarizado, e um contributo para o aumento da criminalidade, visto que tornará a Polícia Militar ainda mais burocratizada.

Se, com o atual sistema bipartido (policiamento ostensivo, Polícia Militar, e atividade investigativa, Polícia Civil), há registros de arbitrariedades e equívocos, que dirá se as duas funções policiais foram exercidas pela mesma instituição, no caso a Polícia Militar, cuja atuação deixará de ser indiretamente fiscalizada pelos delegados de polícia por ocasião do registro da ocorrência na Delegacia de Polícia.

O delegado de polícia, no ordenamento jurídico pátrio, é o primeiro operador do direito a quem é comunicado um fato supostamente criminoso. É à presença do delegado de polícia que é conduzido um indivíduo suspeito de ter praticado alguma infração penal.

Por conta disso, o delegado de polícia tem de ser o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo, não pode se autoritário e tampouco complacente com arbitrariedades. Não raramente pessoas inocentes são conduzidas para os distritos sob acusações infundadas, muitas vezes até "forjadas", e cabe ao delegado de polícia agir com bom senso e equidade para não referendar uma arbitrariedade.

Desse modo, em que pese às vezes algum delegado de polícia não cumprir a contento esse papel, qual seja, de fiscalizar a atuação da Polícia Militar e tutelar os direitos fundamentais do indivíduo, por não ter consciência da importância de sua função, ainda assim é preferível manter-se o atual sistema bipartido como forma de resguardar a sociedade contra eventuais arbitrariedades.

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A redução da criminalidade, pela Polícia Militar, e da impunidade, pela Polícia Civil, certamente não serão resolvidas com a adoção do "ciclo completo", mas sim com políticas públicas e legislativas que reconheçam à importância de ambas as instituições à manutenção da segurança pública e à realização da justiça, além da conscientização de seus próprios membros.

Não se trata de um entendimento meramente corporativista, ou classista, fundamentado no egoísmo institucional de não compartilhar atribuições, mas sim de um alerta à sociedade sobre os malecífios desse sofisma chamado "ciclo completo".

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Sobre o autor
Wagner Bordon Tavares

delegado de Polícia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Wagner Bordon. O sofisma do ciclo completo proposto pela Polícia Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2379, 5 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14136. Acesso em: 24 nov. 2024.

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