Qual o tratamento legalmente correto para um profissional do ramo jurídico? Senhor ou Doutor?
Como acabei de apresentar monografia de conclusão de curso (2009) na Universidade Federal de Juiz de Fora e, também, de prestar exame de seleção da OAB/MG, obtendo aprovação em ambos os casos, não tardaram as designações de "doutor" a mim dirigidas. Um pouco estranho isso, devo confessar.
Uns disseram para eu já ir me acostumando com isso. Mas eis aí uma coisa difícil para mim!
De minha parte, mesmo como reles estagiário, nunca me dirigi a juízes, promotores ou advogados como doutores, apesar da tradição reinante no ambiente forense. Com toda a reverência que esses profissionais merecem no exercício de seus necessários ofícios, sempre os tratei com um positivo "senhores". E fora do meio profissional, "excelência" ou "meritíssimo" são palavras que jamais encontram espaço no meu linguajar.
Para me convencerem de que eu "merecia" (ou "devia") ser tratado como um doutor, lançaram mão de um argumento jurídico. E a referência legal utilizada foi a vetusta lei do império de 11 de agosto de 1.827 (leia a íntegra). Eu já tinha tomado conhecimento dessa pérola da história brasileira e é exatamente sua vetustez que faz com que eu me rebele contra a tradição. Na verdade, eu defendo que somente os que possuem diploma de doutorado podem ser denominados doutores e isso apenas dentro do ambiente acadêmico. Fora daí, não.
Mas eu não pude ficar inerte diante do desafio e decidi firmar meu entendimento. Fui pesquisar e verifiquei que com o referido diploma, criaram-se dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. No bojo da lei, determinou-se que os acadêmicos que concluíssem o curso seriam titulados bacharéis. O título de doutor seria destinado exclusivamente aos bacharéis habilitados segundo futuros estatutos. Ademais, segundo essa antiguidade jurídica, somente os doutores poderiam ser lentes, ou seja, professores.
Velejando através do mar que é a internet, deparei-me com largas discussões em torno desse tema. Fiquei deveras surpreso com o que vi aqui e acolá. Colacionarei as argumentações mais consistentes logo abaixo.
Antes, porém, encontrei um silogismo pretensioso que gostaria de mencionar. Assim fora dito:
"[...] tendo o acadêmico completado seu curso de direito, sido aprovado e estando habilitado em Estatuto competente teria o Título de Doutor. Então, Advogado é DOUTOR."
A base dessa conclusão estaria na consideração de que um dos estatutos futuros exigidos pela lei para a titulação de doutor seria o Estatuto da OAB. Dessa forma, legalmente falando, o Advogado, habilitado segundo o Estatuto da OAB, seria doutor. Por analogia, poderia o tratamento se estender a magistrados e promotores.
Trata-se de um absurdo, derivado de uma manipulação inescrupulosa do texto legal. No século XIX não havia sequer estatuto da OAB, algo que só surgiu em 1963. Usou-se o vocábulo "estatuto" desnaturando seu correto sentido. O legislador imperial nem sequer imaginava tal coisa.
Confiram-se alguns dispositivos da lei em comento:
"Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos por Lentes.
Art. 10.º - Os Estatutos do VISCONDE DA CACHOEIRA ficarão regulando por ora naquilo em que forem aplicáveis; e se não opuserem à presente Lei. A Congregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que serão submetidos à deliberação da Assembléia Geral."
Pela finalidade da própria lei e pela redação do art. 10º da mesma, chega-se facilmente à clara conclusão de que o "estatuto" é um regimento elaborado pelos professores da instituição acadêmica que tem por finalidade disciplinar o aprendizado daqueles que pretendiam obter o grau acadêmico máximo, que é o de doutor. Naquela época, isso era possível, já que não havia MEC nem Lei de Diretrizes e Bases para a Educação. O Brasil estava começando a ter suas primeiras faculdades.
Dessa maneira, só quem obteve grau acadêmico (e não inscrição em alguma sociedade de classe) é que seria chamado de doutor.
Prosseguindo, elenco judiciosas argumentações que pude encontrar.
"[...] a terminologia doutor vem sendo usada internacionalmente para designar os que têm o máximo grau acadêmico (em qualquer área) desde antes do tal decreto imperial no Brasil, e desde antes de médicos/advogados receberem o tratamento de doutor fora do Brasil. Aliás, naquele decreto, a palavra doutor não foi escolhida aleatoriamente. Foi escolhida porque era uma palavra internacionalmente conhecida e usada para se referir aos intelectuais de grau mais avançado na academia.
[...]
Historicamente, o doutorado corresponde ao GRAU MÁXIMO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA. Nos primórdios da Universidade, havia uma quase coincidência entre grau máximo e grau. Eram pouquíssimos os que entravam para a universidade e estes se rachavam de estudar por quanto tempo fosse necessário, e saiam de lá com o GRAU MÁXIMO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA existente. Não havia meio termo. Aos poucos que concluíam esse percurso, era concedido o título de DOUTOR. Isso quer dizer que os médicos de antigamente eram doutores, assim como os filósofos, os matemáticos, etc. Este título de doutor habilitava o indivíduo a formar novos doutores.
[...]
Depois, com a expansão do conhecimento, com certas mudanças na dinâmica da sociedade, com a necessidade de se ter mais e mais gente formalmente educada trabalhando em vários campos, com o aumento gradativo do número de pessoas que passaram a ter acesso às Universidades, e o aumento gradativo do próprio número de Universidades, o sistema acadêmico foi incorporando níveis intermediários, que acabaram prolongando o tempo necessário para se chegar ao tal grau máximo de formação acadêmica."
"[...] não havia em tal época curso de doutorado, o que justificaria, naquele momento, a utilização do título de doutor conforme dispunha a Lei Imperial. Resta evidente que o contexto atual difere bastante do de então.
[...] O art. 9º da Lei do Império de 1º de agosto de 1825 foi tacitamente revogado pelo art. 53, VI da LEI DE DIRETRIZES BÁSICAS, que garante às universidades a atribuição de conferir graus, diplomas e outros títulos. [na verdade, o nome correto do diploma é LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL - Lei 9.394/96; vale conferir, também, o que diz o art. 44, III – nota do autor]
[...]
E aos que argumentam que é um costume conceder a honraria aos advogados e que costume é fonte do Direito, não esqueçam que tal fonte é secundária e, portanto, não pode contrariar a lei ou a Constituição.
Assim, só é doutor quem tem um diploma universitário de doutor, já que só as universidades, conforme o ordenamento jurídico atual, podem conferir tal título." [Na verdade, conforme o ordenamento jurídico pretérito – bem pretérito – somente as universidades conferiam o título de doutor, à igualdade do que sucede atualmente – nota do autor]
Por fim, como bom advogado que pretendo ser, não poderia deixar de indicar jurisprudência favorável à aqui esposada. Vejamos:
"PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE NITERÓI – NONA VARA CÍVEL
Processo n° 2005.002.003424-4
SENTENÇA
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de ''senhor''.
Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ''Doutor'', ''senhor'', ''Doutora'', ''senhora'', sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos.
DECIDO. ‘O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter''(Noberto Bobbio, in A Era dos Direitos, Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito. Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida.
''Doutor'' não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário.
Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de ''doutor'', sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que ''professor'' e ''mestre'' são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado.
Embora a expressão ''senhor'' confira a desejada formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir. O empregado que se refere ao autor por ''você'', pode estar sendo cortês, posto que ''você'' não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social. O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe ''semi-culta'', que sequer se importa com isso.
Na verdade ''você'' é variante - contração da alocução – do tratamento respeitoso ''Vossa Mercê''.
A professora de lingüística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas freqüências do pronome ''você'', devem ser classificados como formais. Em
ualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de ''seu'' ou ‘dona'', e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente.
Na edição promovida por Jorge Amado (Crônica de Viver Baiano Seiscentista), nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que ''você'' é tratamento cerimonioso (Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de ''você'' e ''senhor'' traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa.
P.R.I.
Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito"
Correta a sentença. Seus fundamentos são inquestionáveis.
Como se pode notar, não há amparo legal para o tratamento de "doutor" que hoje é dispensado a juízes e advogados, entre outros tantos. Muito ao contrário, a lei o veda. Ademais, entender o contrário seria um desrespeito para com aqueles que se dedicam com afinco aos estudos na academia para alcançarem o doutoramento.
Com base nos argumentos apontados, advogados (e juristas em geral) não podem exigir para si um tratamento que não lhes corresponde. O termo "doutor" é título acadêmico de alto grau e em nada é influenciado pelo aspecto profissional.