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A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

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24/01/2010 às 00:00
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2 OS CRIMES DE TRÂNSITO

O revogado Código Nacional de Trânsito, instituído pela Lei nº 5.108, de 21 de Setembro de 1966, não trazia preceitos penais sobre ilícitos ocorridos no trânsito. Assim, toda a matéria relativa aos crimes de trânsito era regulada pelas disposições penais comuns. Em regra, esses crimes resumiam-se em infrações penais culposas apenadas de forma insignificante.

Nesse contexto, a sociedade brasileira assistiu assustada ao aumento das tragédias no trânsito, que destruíam vidas e traziam consigo um alto custo social. Segundo o Departamento Nacional de Trânsito, em 1997, ano em que entrou em vigor o novo Código de Trânsito Brasileiro, 35.636 pessoas morreram em decorrência de acidentes de trânsito. [03]

Dados do Conselho Nacional de Trânsito, disponíveis na Resolução nº 166, de 15 de Setembro de 2004 [04], que institui a Política Nacional de Trânsito, indicam que, a cada ano, mais de 33 mil pessoas são mortas e cerca de 400 mil tornam-se feridas ou inválidas em ocorrências de trânsito e esses números representam uma das principais causas de morte prematura da população economicamente ativa do Brasil.

Essa mesma resolução faz menção ao estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, que estima o custo social total anual decorrente de acidentes de trânsito na ordem de 10 bilhões de reais.

O desembargador Rizzardo (2007) considera que o crescimento da violência no trânsito decorreu principalmente da impunidade que vigorava e da ausência de instrumentos ágeis para a sua repreensão.

Diante desse trágico quadro, surgiu a Lei nº 9.503, de 23 de Setembro de 1997, que revogou o antigo Código Nacional de Trânsito, e instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro – CTB.

Essa lei trouxe a previsão de severas penalidades aos infratores de trânsito, como multas pecuniárias de elevado valor, apreensão do veículo e a suspensão do direito de dirigir. Essa severidade revela a preocupação social em se coibir a insuportável violência vivenciada no trânsito.

A necessidade urgente de se implantar uma legislação penal específica sobre delitos de trânsito fez com que o legislador destinasse um capítulo para esse fim e inserisse no Capítulo XXI as disposições relativas aos crimes de trânsito.

Nesse capítulo foi inserida e disciplinada uma série de novos crimes no panorama penal brasileiro. Simples infrações administrativas e contravenções penais foram transformadas em crimes com severas sanções, tipificando inclusive condutas que não geram resultado lesivo, porém que revelam perigo ao trânsito seguro.

Com a criação desses novos tipos penais, os chamados crimes de automóvel, que eram sempre enquadrados nas modalidades culposas do Código Penal Brasileiro, deixaram de se submeter às penas insignificantes do Código Penal e passaram a ser regulados pelo severo Código de Trânsito Brasileiro.

Aproveitando-se das definições contidas no próprio Código de Trânsito Brasileiro, Pires e Sales (1998, p.22) fornecem o conceito de crimes de trânsito:

[...] são os fatos praticados por condutores de veículos automotores nas vias abertas à circulação de pessoas e de veículos que provocam dano real ou potencial à vida e à integridade física do ser humano, à segurança do trânsito e à administração da justiça na persecução de seus autores, para os quais o Código de Trânsito Brasileiro comina sanções penais.

As disposições penais do Código de Trânsito, apesar de serem uma resposta aos anseios sociais, receberam diversas críticas devido às suas inúmeras imperfeições técnicas.

Segundo Stoco (1997), essas disposições penais mostram-se repletas de equívocos, incoerências e algumas padecem do vício da inconstitucionalidade e melhor teria sido o veto de todo o Capítulo XXI da lei, posto que suas disposições penais mais confundem do que disciplinam.

Entretanto, Rizzardo (2007) sustenta que, apesar das inúmeras imprecisões técnicas, mais grave seria a omissão do legislador frente ao quadro de abusos, atrocidades, e irresponsabilidades vivenciadas no trânsito.

2.2 O trânsito seguro como bem juridicamente tutelado

O caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O direito à segurança compreende também a garantia a um trânsito seguro, devido a enorme importância do trânsito para a sociedade moderna. Assim, tutela-se o direito ao trânsito seguro, organizado ou planejado, não apenas visando preservar a vida ou a incolumidade física humana, mas também o próprio trafegar, de modo a facilitar a condução dos veículos e a locomoção das pessoas.

Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

Segundo o expresso no art. 1º, § 2º da Lei nº 9.503/97, o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.

Os crimes de trânsito, introduzidos no sistema penal brasileiro pelo Código de Trânsito Brasileiro, visam tutelar o direito ao trânsito seguro. Jesus (2006) sustenta que, nos delitos de trânsito, a objetividade jurídica principal pertence à sociedade, interessada no trânsito em condições seguras, reconhecendo que a objetividade jurídica secundária, aquela atingida pela via indireta, é a proteção à vida, à integridade física e à saúde.

Conclui-se que a segurança do trânsito está sendo tutelada visando proteger de forma indireta a vida, a integridade física e a saúde. Busca-se antecipar a punição dos fatos que, de acordo com a experiência comum, conduzem à lesão dos bens juridicamente relevantes para a sociedade. Ou seja, a tutela da segurança do trânsito é um instrumento para a proteção da vida, da integridade física e da saúde.

2.3 Os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

A preocupação do legislador ordinário e a pressão da sociedade brasileira com a situação caótica do trânsito no país, marcado pela elevada taxa de mortalidade, motivaram a criação de tipos penais especiais para casos de homicídio culposo e de lesão corporal culposa, respectivamente, nos artigos 302 e 303, do Código de Trânsito Brasileiro – CTB:

Art. 302.

Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.

Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.

Assim, dividiu-se o homicídio culposo em dois tipos distintos: um primitivo e outro dele derivado, cada qual com pena própria: o homicídio culposo genérico (Código Penal Brasileiro, art. 121, § 3º) e uma nova espécie de homicídio culposo, qualificado por ser praticado na direção de veículo automotor (CTB, art. 302). Esse mesmo fato aconteceu com o crime de lesão corporal culposa, que passou a ser um tipo genérico (Código Penal Brasileiro, art. 129, § 6º), com a criação de um novo tipo qualificado (CTB, art. 303), também por ser praticado na direção de veículo automotor.

Esses tipos qualificados passaram a ter penas mais severas do que aquelas descritas no Código Penal Brasileiro, conferindo desvalor maior às ações ocorridas no trânsito, aumentando a pena de ambos os crimes se comparados às formas genéricas.

Ambos os casos de homicídio culposo têm o mesmo objeto jurídico (a vida humana), o mesmo tipo objetivo e o mesmo tipo subjetivo. A diferença reside apenas no fato de que o homicídio culposo de trânsito possui um elemento normativo especializante de modo. Algo semelhante ocorre com o delito de lesão corporal, em que ambos os casos o objeto jurídico é a incolumidade física.

Por força do princípio da especialidade, aplicam-se as disposições contidas nos artigos 302 e 303 do CTB, caso o fato típico ocorra na direção de veículo automotor, não se aplicando mais o disposto nos artigos 121, § 3º e 129, § 6º, ambos do Código Penal.

2.3.1 Críticas ao modo de tipificação desses crimes

Jesus (2006) aponta que nunca houve maneira mais estranha de descrever delito, pois o verbo, que tecnicamente representa o núcleo do tipo, refletindo a ação ou omissão, não menciona a conduta principal do autor. O comportamento do autor no homicídio culposo, para fins de definição típica, não consiste em "praticar homicídio culposo", e sim "matar alguém culposamente". O sujeito é punido porque matou alguém, não porque praticou.

Da mesma forma, o comportamento do agente no crime de lesão corporal culposa, não consiste em "praticar lesão corporal culposa", mas em "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem".

Da maneira como foram descritos, os delitos tipificados nos artigos 302 e 303 do CTB ferem ao princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade, que impõe que o conteúdo do tipo legal deva ser formulado de forma clara e precisa para uma mais perfeita descrição do fato típico, evitando-se incertezas na lei.

O ideal seria se o tipo descrito no art. 302 do CTB fosse descrito como "causar a morte de alguém, culposamente na direção de veículo automotor". De forma semelhante, o art. 303 deveria expressar: "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, culposamente, na direção de veículo automotor".

Outra crítica apresentada contra esses crimes diz respeito ao limite das penas fixadas in abstracto.

O homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, previsto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, estabelece as margens da pena in abstracto entre dois e quatro anos de detenção.

A mesma figura, prevista no art. 121, § 3º do Código Penal estabelece a pena de um a três anos de detenção. Segundo Stoco (1997), essa diferenciação apresenta-se inconstitucional, pois fere ao princípio constitucional da isonomia e ao direito subjetivo do réu a um tratamento penal igualitário, pois o que deve ser considerado é a maior ou menor gravidade da conduta erigida à condição de crime e não as circunstâncias em que esse fato foi praticado ou os meios utilizados.

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Assim, presume-se que os crimes culposos cometidos na direção de veículo automotor são sempre de maior potencial ofensivo que os crimes culposos descritos no Código Penal.

Roesler (2004, p. 02) afirma ser legítima essa distinção, pois "o legislador pretendeu que o condutor de veículo automotor agisse com maior cuidado objetivo no trânsito do que em outros atos da vida diária".

O mesmo ocorre com o crime de lesão corporal culposa praticado na direção de veículo automotor, em que a pena prevista é a de detenção, de seis meses a dois anos, enquanto que a pena prevista no art. 129, § 6º do Código Penal é a de detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano.

Nesse caso ainda reside uma enorme incongruência jurídica, pois se o agente, condutor de um veículo automotor, atropela culposamente um pedestre, causando-lhe lesões corporais leves, sujeita-se à pena citada, porém se esse mesmo agente alegar que agiu dolosamente, ou seja, que desejava atropelar o pedestre, causando-lhe lesões corporais, sujeitar-se-á a uma pena menor, a prevista no art. 129, caput, do Código Penal: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

2.3.2 Elementos objetivos e subjetivos

A conduta típica descrita no art. 302 do CTB é a de matar alguém, culposamente, na direção de veículo automotor.

O art. 303 do CTB trata da lesão corporal culposa de trânsito e a sua conduta típica consiste em atingir, culposamente, a integridade corporal ou a saúde física ou mental de outrem na direção de veículo automotor.

Em ambos os tipos penais há o mesmo elemento normativo, que é o fato da conduta típica ocorrer na direção de veículo automotor. Assim, se o fato não se deu na direção de veículo automotor, a conduta é atípica.

Segundo o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro, veículo automotor é todo o veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende também os ônibus elétricos.

Então, se o fato ocorreu enquanto o autor conduzia uma bicicleta ou uma charrete, não há tipicidade.

O sujeito ativo é qualquer pessoa, seja motorista habilitado ou não, que esteja na condução de veículo automotor.

O elemento subjetivo culpa está presente nos dois delitos. Assim, haverá um crime culposo de trânsito sempre que o evento (morte ou lesão corporal) decorrer de uma conduta humana voluntária de dirigir veículo automotor com a inobservância do cuidado objetivo necessário por parte do autor mediante conduta imperita, negligente ou imprudente. Deverá haver também a previsibilidade objetiva das conseqüências do ato e a ausência de previsão por parte do agente, que não quis ou não assumiu o risco de provocar o resultado.

A imprudência é a prática de um ato perigoso, sem precaução, imponderado. Por exemplo: avançar o sinal vermelho; trafegar pela contramão.

A negligência é a ausência de precaução ou indiferença em relação ao ato praticado. O agente não adota o comportamento devido na situação. Exemplos: não dar revisão no veículo; não conferir se os passageiros estão com o cinto de segurança.

E a imperícia é a demonstração de inaptidão técnica em profissão ou atividade, constituindo na falta de aptidão para dirigir veículo automotor. Reconhece-se haver imperícia quando o motorista perde o controle direcional do veículo e causa acidente de trânsito, sem que tenha ocorrido qualquer motivo para justificar esse evento.

2.3.3 Causas de aumento de pena

O art. 302, parágrafo único, e o art. 303, parágrafo único, ambos do CTB, elencam hipóteses em que as penas sofrerão acréscimo de um terço até a metade. Assim, no homicídio culposo e na lesão corporal culposa de trânsito, a pena é aumentada, se o agente:

a)Não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

b)Praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

c)Deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

d)No exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros;

2.3.4 Ação Penal

No homicídio culposo de trânsito a ação penal é pública incondicionada, seguindo-se o procedimento comum ordinário descrito no Código de Processo Penal, pois a nova redação do art. 394 do CPP, instituída pela Lei nº 11.719/08, determina a adoção desse rito, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 04 (quatro) anos de pena privativa de liberdade.

Já, na lesão corporal culposa de trânsito, a ação penal é pública, mas condicionada à representação do ofendido ou de seu representante legal. Por ser infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita-se às disposições da Lei nº 9.099/95.

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Sobre o autor
Gabriel Costa de Jesus

Policial Rodoviário Federal. Bacharel em Direito pela UNIMONTES. Pós-graduado em Ciências Criminais pela UNAR. Presidente de JARI e secretário de Comissão de Defesa de Autuação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Gabriel Costa. A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2398, 24 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14231. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Título original: "A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, ambos definidos no Código de Trânsito Brasileiro".

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