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Autonomia privada e liberdade contratual

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23/01/2010 às 00:00
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7. Igualdade das partes e vinculo contratual

O sistema individualista e liberal levou a criar um modelo abstrato de contratante: o indivíduo, a pessoa física, o bom pai de família. Essa era a principal consequência do princípio de igualdade teórica entre os contratantes, alheio completamente às particularidades próprias de cada caso. E se essa ficção de igualdade entre os contratantes era possível em uma sociedade agrária que, apesar de não ser alheia às desigualdades econômicas e sociais, era-o porque as desigualdades não eram tão acentuadas como as que existem na atualidade por causa das concentrações financeiras e industriais próprias do mundo contemporâneo. Além disso, era uma ficção sustentável porque o arquétipo contratual do Código Civil francês de 1804, apoiado na liberdade individual e a igualdade jurídica dos cidadãos, estava inserido em um sistema de contratos negociados que ainda não admitia com naturalidade a participação das pessoas jurídicas ou morais no tráfico jurídico privado e que deixava fora do Código Civil os contratos celebrados pelos comerciantes.

Atualmente é preciso render-se à evidência: a maior parte dos contratos, nem são contratos negociados, nem se celebram já entre indivíduos, entre pessoas físicas. Existe um grande número de contratos nos quais tem uma parte débil e uma parte forte, geralmente uma pessoa jurídica, de tal modo que querer manter intocado o princípio da igualdade entre as partes do contrato é aceitar sem majores reserva a lei do mais forte. Esta desigualdade é particularmente flagrante nas relações comerciais celebradas com os consumidores, pois, em muitos casos, as empresas fornecedoras são entes abstratos [41] dotados de poder claramente desigual e desproporcionado. Assim, poderia-se dizer, que o desequilíbrio e as relações de dominação são a essência do Direito contratual moderno, que se apoia no reconhecimento incondicional e quase indiscriminado das pessoas jurídicas, na existência do mercado e nos princípios econômicos da livre empresa, a livre concorrência e a busca do maior benefício econômico.

Por isso, o legislador, acompanhando o signo dos tempos, tentou organizar a defesa da parte mais fraca em diversos campos da atividade econômica. Assim surgiram, fora do Código Civil, novos ramos do Direito cuja finalidade exclusiva era consagrar o amparo do contratante débil.

Por este mesmo caminho transitou a jurisprudência brasileira que, com o beneplácito e o apoio da melhor doutrina, não duvidou, seguindo outros precedentes do Direito comparado, em aceitar a existência de obrigações contratuais acessórias a cargo da parte predominante, como as obrigações de informação, ou propondo uma interpretação sistemática e integrada do contrato favorável à parte mais débil e desprotegida.

Por isso, nada mais natural que o próprio Código Civil de 2002, como produto de seu tempo e em coerência com os princípios constitucionais, continue por este mesmo caminho. Particularmente, ao introduzir novas disposições gerais em matéria contratual que tratam de redefinir e reforçar os novos princípios gerais inspiradores do contrato, tais como a função social do contrato, a probidade e a boa fé, e ao ocupar-se expressamente, embora com alguma tibieza, dos contratos de adesão. Com isso se abre a possibilidade, através de cláusulas gerais [42], de que o juiz acuda em auxílio do contratante mais desprotegido ou do contratante que tenha podido ser vitima dos abusos da outra parte. Na verdade, uma das funções destes princípios é facilitar ao juiz uma diretriz geral que permita extrair regras aplicáveis ao caso concreto, sem o apoio de um tipo normativo autônomo previamente definido.

Um exame superficial poderia levar a acreditar que com estas normas e atitudes se trata efetivar o princípio de igualdade substancial em matéria contratual. Por isso é frequente encontrar opiniões doutrinais e pronunciamentos jurisprudenciais que entendem que, através da restauração do equilíbrio contratual entre as partes que celebram um contrato, está-se consagrando, a fim de contas, uma verdadeira igualdade substancial. Entretanto, a realidade é muito mais complexa.

Com efeito, não pode dizer-se que todas essas normas citadas assegurem uma completa efetividade do princípio constitucional da igualdade jurídica em seu aspecto substancial. Unicamente permitem restabelecer a igualdade e o equilíbrio no marco de uma relação contratual existente e concreta. O Direito do trabalho é, com certeza, benéfico para o trabalhador ou para o funcionário empregado, mas nem sempre é tão benéfico para as pessoas desempregadas que estão fora do mercado de trabalho ou que participam da economia informal. As leis de inquilinato, com efeito, serviram em muitos momentos para beneficiar ao arrendatário frente ao proprietário, pois lhe proporcionava segurança e estabilidade na posse do imóvel arrendado; mas em outras ocasiões produziram consequências prejudiciais como o empobrecimento dos pequenos arrendadores, ou consequências perversas para os futuros arrendatários e a sociedade em geral, como a falta de incentivos para produzir imóveis destinados a locação, a retirada do mercado de bens suscetíveis de ser arrendados ou o próprio deterioramento do patrimônio imobiliário. Quanto ao amparo contratual dos consumidores, tão em voga atualmente, e deixando à margem as enormes dificuldades de determinar com precisão que tem que entender-se por consumidor, não devemos esquecer que somente beneficia, restaurando o equilíbrio contratual entre o fornecedor e o consumidor, às pessoas que têm suficiente renda para participar ativamente das relações de consumo, podendo adquirir bens e serviços no mercado, mas em nada afeta ao ingente número dos excluídos sociais.


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Na atualidade, os doutrinadores mais atentos acostumam afirmar que o contrato não é uma simples relação de interesses contrapostos, senão também um instrumento de cooperação social, portanto nos últimos tempos deixou-se de conceber o contrato como um instrumento necessariamente decorrente ou representativo de interesses antagônicos, "em vez de adversários os contratantes passaram, num número cada vez maior de contratos, a ser caracterizados como parceiros, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e eqüitativa, considerando até os ideais de fraternidade e justiça" [43]. Paulo Nalim salienta que o contrato hoje é uma "relação complexa e solidária" [44]. Com efeito, é muito positivo que o Direito contemporâneo tenha sabido perceber com claridade os limite da vontade individual. O contrato, embora nasça da conjunção das vontades individuais, também é um ato social que deve ser respeitoso com os interesses gerais ou coletivos. Por isso, como já visto, em certas condições, o indivíduo pode ser obrigado pelo ordenamento jurídico a assumir involuntariamente compromissos que não tinha previsto inicialmente ou que, inclusive, tinha querido evitar. É assim como aparecem no conteúdo do contrato, junto às obrigações assumidas voluntariamente pelas partes, obrigações similares às que recaiam tradicionalmente sobre a pessoa enriquecida injustamente em prejuízo de outro.

Evidentemente, é normal, e a ninguém pode pensar outra coisa, que os contratantes dêem sempre preferência a seus interesses, porém, enfrente do natural interesse particular que o ordenamento jurídico reconhece e tutela, sempre está presente uma aspiração geral do sistema jurídico dirigida a que cada contratante se esforce por atender o melhor possível os interesses do outro contratante e, inclusive, os interesses gerais da própria comunidade. Portanto, é legitimo que a coletividade, a través do ordenamento jurídico, exija que cada um dos contratantes tenha em consideração outros interesses, sobre tudo se isso não lhe cria nenhum prejuízo.

A meu ver esta tendência, claramente expressa na Constituição e também no vigente Código Civil brasileiro, através da ideia da função social do contrato, é uma recuperação da velha figura romanista da causa do contrato [45]. Uma causa, que não tem que ser entendida como um elemento puramente abstrato, desprovido de função prática, mas sim como um instrumento de que dispõe o juiz para assegurar que os compromissos contratuais assinados pelas partes não estejam desprovidos de contrapartida, e inclusive, para garantir que a contrapartida proporcionada era aquela esperada pelo outro contratante. Uma causa que não se confunde com a função econômica e social de cada concreto tipo contratual. A causa, pois, é a razão de ser das obrigações contratuais, o que permite tomar em consideração a economia do contrato, a finalidade do contrato procurada pelas partes e o móbil determinante da prestação do consentimento contratual.

Ainda mais, a função social do contrato não se projeta só entre as partes do contrato, já que também tem uma eficácia social, um conteúdo genérico "ultra partes" que significa uma quebra de outro dos princípios tradicionais do Direito contratual: o principio da relatividade do contrato [46].

O solidarismo contratual aparece também de maneira manifesta através da interpretação do contrato pelos juizes e tribunais, e encontra amplo eco na doutrina. Durante os últimos tempos, e com apoio no Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência brasileira admite que o contratante em posição dominante tem obrigações secundárias ou acessórias, não previstas expressamente no convenio, que têm como objeto garantir à outra parte a obtenção da utilidade que esperava de contrato (obrigações de informação ou de cooperação), tanto na fase da formação, como na fase de execução do contrato. Por exemplo, dar valor contratual às promessas publicitárias [47], vai muito além de uma simples interpretação contratual. Quer dizer, a aparência de que uma parte assumiu um compromisso com sua atuação, tem a mesma natureza obrigatória que o compromisso verdadeiro, pois a vontade social supre, em certos casos, a ausência de vontade do contratante. Em definitiva, para determinar os efeitos do contrato se toma em consideração, não só o que uma parte expressa no contrato, mas também o que parece ter querido expressar ou os compromissos que usualmente acostuma assumir.

Este solidarismo contratual se manifesta, portanto, na exigência de que ambos os contratantes atuem com probidade e com boa fé objetiva. Quer dizer, com lealdade contratual. A ideia não é nova. A partir de uma re-interpretação de velhas normas constantes no Direito codificado, a doutrina e a jurisprudência comparadas já tinham dado à equidade contratual ou, se preferir, ao princípio da boa fé objetiva, uma amplitude considerável na execução do contrato. Seguindo esta tendência, primeiro o Código de Defesa do Consumidor, e logo o novo Código Civil do Brasil elevaram a ideia à categoria de princípio legal. Por isso, não basta que cada contratantes evite atitudes reticentes que podam induzir a engano à outra parte, mas também cada contratante está obrigado por um princípio geral de lealdade e de coerência contratual. Disso se deriva que ninguém pode exigir compromissos contratuais de outro, se ele mesmo não se comprometer a fazer o necessário para alcançar os objetivos comuns procurados e esperados por ambos.

Entretanto, a ideia da função social do contrato é uma ideia enigmática que não está isenta de ambiguidades e de problemas. Não só por ser um conceito válvula ou conceito indeterminado que possibilita a intervenção discricionária do juiz no âmbito do contrato, alterando o equilíbrio contratual alcançado pelas partes, mas também pela própria indeterminação do próprio conceito. Com efeito, não está nada claro, quando o legislador se refere à função social do contrato como causa e como limite da liberdade de contratar, se está pensando na função do contrato como categoria jurídica general ou função social da instituição contratual, na função social que tem que ter cada tipo contratual ou cada relação contratual em particular ou, ainda, na função social das obrigações que surgem do contrato para cada uma das partes. Do mesmo modo, também há outras incógnitas difíceis de esclarecer que, dada a originalidade da fórmula, não encontram muito auxílio no Direito comparado. Por exemplo, não se deduz da norma que fala da função social do contrato qual dos poderes públicos, o poder legislativo ou o poder judicial, está legitimado para definir em que consiste essa função social e qual é seu conteúdo material concreto. Tampouco é fácil saber se a função social do contrato tem que estar definida antes do momento genético ou criador da relação contratual, ou tem que ser concretizada na fase de interpretação do contrato, uma vez celebrado, com vistas a seu correto adimplemento [48].

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9. Decadência do principio da força obrigatória do contrato

A codificação civil fez da segurança jurídica uma prioridade, e o princípio da força de obrigar do contrato foi um de seus instrumentos principais e mais eficazes. Atualmente a segurança jurídica segue sendo um princípio constitucional [49] e uma exigência primitiva da ordem jurídica, mas no Direito brasileiro atual, tanto o legislador, como o juiz, como a doutrina majoritária insistem em dar maior importância à ideia de equidade ou equilíbrio contratual, a pesar da ambiguidade em que muitas vezes se movem essas opiniões.

O brocardo pacta sunt servanda, foi considerado durante muito tempo paradigma do Direito civil contratual, de tal sorte que, salvo impossibilidade sobrevinda (caso fortuito, força maior), o credor sempre podia exigir a execução forçosa da obrigação contratual. Entretanto, hoje existe uma forte tendência a pôr em questão a irrevocabilidade do vinculo contratual. Em efeito, não só se aceitaram legalmente as teorias, extremamente razoáveis, da lesão e da imprevisão, senão que se geralmente se aceita, usualmente e sem maiores indagações, que a pessoa que se comprometeu contratualmente, pode retratar-se livre e unilateralmente das obrigações contratuais mediante o pagamento dos danos e prejuízos ocasionados. De outra parte, o próprio legislador veio a debilitar ainda mais este princípio, instaurando em alguns contratos especiais uma faculdade de desistência ou de retratação unilateral durante um certo prazo (7 dias em geral) [50]. Assim sendo, que fica então do principio geral da força obrigatória do contrato? Que fica do pacta sunt servanda?

Esta decadência da força obrigatória do contrato é uma consequência indireta da quebra do princípio da autonomia da vontade. Desde que o contrato já não é considerado o resultado exclusivo de um acordo de vontades livres e iguais, senão um processo social complexo no qual intervêm pessoas desiguais e interdependentes, a noção de força obrigatória do contrato é relativa e o Direito das obrigações se transforma. Aparentemente essa transformação deixa passo à equidade e à justiça contratual, que avançam paulatinamente, mas a evolução do Direito contratual a que conduz, no momento, está-se produzindo a costa da segurança contratual em seu conjunto.

Não são alheias a esta transformação as influências que experimenta o sistema jurídico brasileiro procedentes dos sistemas do common law. O poder político e a vitalidade econômica dos países anglo-saxões submetidos ao common law exerce, na vida jurídica, uma influência que se reflete em matéria contratual. Como consequência dessa influência o vinculo contratual já não tem o mesmo significado que no passado, pois em caso de descumprimento contratual a reparação por equivalente tende a substituir à execução in natura. Esta ampliação da noção e do âmbito da reparação pecuniária, em detrimento daquela tradicional da execução forçosa da obrigação, leva a ideia de que o descumprimento contratual não é outra coisa que uma fonte de responsabilidade patrimonial.

Portanto, a colocação no centro da atenção do ordenamento jurídico da justiça do conteúdo contratual, nos situa hoje muito longe do absolutismo do pacta sunt servanda. Porém, esse principio continua sendo, junto à autonomia privada, um principio essencial, desde que não se almejem princípios absolutos. As transformações em curso neste setor levam a uma autonomia marcada por uma proporção, por um equilíbrio, por uma justiça substantiva. Como salienta o professor lisboeta José de Oliveira Ascensão, "o resultado é substancial e enriquecedor. Não matamos o pacta sunt servanda, conjugámo-lo com o rebus sic stantibus. Os factos devem ser observados (principio fundamental de autonomia) rebus sic stantibus (principio fundamental de justiça e de respeito da vinculação realmente assumida)" [51].

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Sobre o autor
J. Miguel Lobato Gómez

Professor Titular de Direito Civil da Universidade de León -Espanha e Professor Visitante na Pos-Graduação em Direito da UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2397, 23 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14238. Acesso em: 28 mar. 2024.

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