4. Diversidade de sistemas. O problema do pre-trial discovery.
A diversidade de ordenamentos jurídicos entre os Estados sempre foi um grande empecilho para a efetividade da cooperação judicial internacional, nomeadamente no que tange a obtenção transnacional de prova.
A doutrina debateu muito a dificuldade de cooperação judicial transfronteira entre os países de civil law e common law e até o momento não há perspectivas de se resolver o problema. M. Edwards demonstra a gravidade do problema:
"Some of the difficulties which were encountered during the Conference resulted from the basically different approach to this subject by the civil law countries on the one hand and the common law countries on the other. Much greater freedom in the collection of evidence for use in foreign proccedings is found in the United Kingdom, the United States and other common law countries than in most civil law countries. The reasons for this are principally twofold. First, civil law countries regard taking of evidence as an act of the parties to the proceedings and in these circunstances such countries consider that the taking of evidence by diplomatic or consular agents or by commissioners constitutes an infrigement of their judicial sovereignty. Secondly, consuls or commissioners can lead to abuse." [36]
Isso não bastasse, a possibilidade de opor reserva a alguns procedimentos contidos, tanto na Convenção de Haia de 1970, quanto na Convenção Interamericana de 1975, é mecanismo utilizado pelos Estados contratantes para se proteger sob a égide do antigo conceito de soberania.
Na Convenção de Haia de 1970, de maneira expressa, o artigo 33 disciplina que um Estado deve, no tempo da assinatura, ratificação ou adesão, excluir no todo ou em parte a aplicação ou previsão do parágrafo 2.º do artigo 4.º e do Capítulo II, sendo que nenhuma outra reserva será permitida. [37].
Porém, há mais uma possibilidade de reserva no âmbito da Convenção de Haia de 1970. O artigo 23 disciplina que um Estado Contratante pode, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, declarar que não executará nenhuma carta rogatória para obtenção de "pre-trial discovery" de documentos, como conhecido nos países de common law.
Num primeiro momento, poder-se-ia pensar que existe uma incongruência no texto convencional, pelo fato de não existir no âmbito do artigo 33 a reserva contida pelo artigo 23, uma vez que o próprio artigo 33 proíbe a possibilidade de outras reservas. Contudo, a explicação dada pelos autores do projeto da Convenção é plausível, pois o artigo 33 trata da reserva de matérias contidas no âmbito da Convenção de Haia de 1970, enquanto o artigo 23 prevê uma reserva que não é disciplinada pelo instrumento multilateral.
É mister definir o que venha a ser o procedimento chamado de "pre-trial discovery" de documentos comumente utilizado nos países de common law. Philip Amram, em relatório explicativo à Convenção, ensina que o "pre-trial discovery" de documentos se refere a um "procedure by which one of the Parties to an action may obtain access, before trail, to documents in the possession of his adversary, to aid him in the preparation of his pleadings or in preparation for trial." [38]
Esse tipo de procedimento é completamente desconhecido nos países de civil law.
Antes de partirmos para as minúcias do conceito e formas de pre-trial discovery, devemos nos atentar para o desenvolvimento do processo civil nos países de sistema common law. Como exemplo, veremos o sistema utilizado pelos Estados Unidos da América.
David Gerber explica que o processo de litigância nos Estados Unidos consiste em dois componentes estanques, porém interdependentes: o estágio "pre-trial" e o "trial" propriamente dito [39].O renomado professor da Chicago-Kent College of Law argumenta no sentido de que a forma do processo civil norte-americano respeita o conceito de devido processo legal, pois as partes possuem diversas garantias que são respeitadas, principalmente na fase do "trial" ou julgamento, tais como o contraditório e a ampla defesa.
A fase "pre-trial" existe para que se possa, entre outras coisas, reduzir o crescimento vertiginoso de "trial" e para esclarecer os fatos e argumentos que serão instruídos no julgamento. Essa fase possui duas modalidades de busca de provas, que, nesta altura, são consideradas evidências ou indícios, quais sejam: o "discovery" e o "deposition", que corresponde à tomada de depoimento de qualquer pessoa em qualquer momento e por qualquer interlocutor.
Lembramos que o "discovery" trata de todas as matérias que não se relacionem com a prova verbal, tendo como incidência principal os documentos.
O "trial", ou julgamento propriamente dito, é o componente central do processo de litigância nos Estados Unidos, o qual é necessariamente contínuo. Isso significa que há, geralmente, mínimas possibilidades para se descobrir novos fatos, ou produzir novas provas, durante o curso do julgamento. Por decorrência lógica, cada parte deve estar com seu "caso" preparado antes do "trial".
O sistema jurisdicional norte-americano é formado pela figura do júri, no número de 12 (doze) pessoas, devendo a decisão ser unânime, sendo o conselho de jurados o verdadeiro juiz da causa, detentor do poder de dizer o direito. O seu papel é decidir questões de fato e aplicar o direito ao caso concreto de acordo com as instruções do juiz presidente, que não participa da decisão dos jurados.
O magistrado norte-americano age como um mediador entre as partes, no julgamento. Raramente questiona testemunhas, ou participa na apresentação de fatos no processo. Ele define as normas processuais que serão aplicadas, porém possui poucos poderes na determinação dos fatos.
Voltando à questão central, o "pre-trial discovery" é disciplinado pelo Federal Rules of Civil Procedure, precisamente pelos Rules 26, 29, 34, 35, 36 e 37. Tendo isso em conta, podemos definir "pre-trial discovery" (de documentos, como chamado na Convenção de Haia de 1970) como um procedimento inquisitório em que as partes, sem a interferência do juiz, têm possibilidades, antes do início do julgamento, de colher, sem coerção, determinado tipo de evidências ou indícios, nomeadamente documentos, que estejam em poder da contra-parte ou de terceiro, possibilitando a preparação para o julgamento, o qual é contínuo e impossibilita a "descoberta" de novas provas que possam interessar ao deslinde da causa.
Caso a parte requisitada para apresentar um documento não o faça, a parte requisitante pode pedir ao juiz que determine a apresentação do documento desejado. O procedimento "pre-trial discovery", também conhecido como "fishing expedition", caracteriza-se como uma "aventura" em que a parte requisitante "lança a isca", ou seja, a requisição à outra parte e não tem certeza do que irá obter, ou "pescar".
Por razões óbvias, o procedimento de "pre-trial", como conhecido nos países de common law, é completamente desconhecido aos países que adotam o sistema civil law, sendo, em nossa opinião, incompatível com os procedimentos utilizados nesses Estados.
O artigo 23 da Convenção de Haia de 1970 foi proposto pela delegação do Reino Unido, a qual advertiu os países de "civil law" para o problema do "pre-trial discovery", alertando para seus perigos e demonstrando a incompatibilidade com o sistema romano-germânico.
D. Edwards afirma que "the majority of delegates of civil law countries therefore failed to appreciate, despite efforts by the United Kingdom delegation to explain the dangers, that it is essential that countries should be able to refuse a request for pre-trial discovery of ‘fishing’ nature or for the production of documents not directly required by a foreign court." [40]
Luigi Fumagalli leciona que "le possibilita di abuso che tali procedure affrono, mancando un necessário legame fuzionale tra assunzione della prova e sua utilizzazione all’udienza nonché un immediato controlo del giudice. La parte può essere cioè tentata di iniziare l’azione senza avere prove a sostegno della própria posizione e che possano giustificare la richiesta di tutela giurisdizionale, avendo in mente altri scopi, non ultimo il compimento di un’impresa concorrente, dando luogo a una sorta di ‘spionaggio industriale’." [41]
A possibilidade de buscar prova da parte ex adversa, com a facilidade autorizada pela lei processual dos países anglo-saxônicos, sem a intervenção do órgão jurisdicional, poderia a princípio parecer uma idéia bastante interessante, pois, com boa-fé objetiva recíproca e lealdade processual, privilegiaria o alcance da verdade.
Entretanto, é notório que, em grande parcela dos casos, uma das partes não está interessada em resolver seu litígio, ou de solvê-lo por boa-fé, aplicando, dessa forma, subterfúgios e ardis para obter vantagens de forma ilícita ou imoral da outra parte. Levando isso em conta, o procedimento do "pre-trial discovery" mostra-se como uma ferramenta pouco adequada para ser utilizada na cooperação internacional, principalmente nos Estados em que sua previsão não existe, tais como os de tradição "civil law".
A maioria esmagadora dos Estados Contratantes da Convenção de Haia de 1970 decidiu pela reserva nesta matéria. Apenas os Estados Unidos, Israel, Bielorrússia, República Tcheca, Eslovênia, Barbados, Kuwait, Seychelles e Letônia não reservaram a prática de cartas rogatórias para obtenção de documentos pelo procedimento "pre-trial discovery".
O maior problema do artigo 23, segundo os doutrinadores norte-americanos, é a forma com que a reserva foi feita. A fórmula utilizada pela maior parte dos países de civil law é a reserva geral, ou seja, o Estado Contratante, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, declara que, de acordo com o artigo 23, não cumprirá cartas rogatórias com o propósito de obter "pre-trial discovery" de documentos, como conhecido nos países de common law. Isso causa imensos prejuízos para a obtenção de prova de origem norte-americana. Os doutrinadores defendem que pela inexistência do procedimento do "pre-trial discovery" nos países de civil law, deveria existir uma reserva detalhada, que explicasse e relacionasse num rol taxativo ou exemplificativo, o que estaria reservado e o modo como a prova poderia ser obtida no Estado requerido.
Na 19ª (décima nona) reunião da Comissão Especial da Convenção de Haia para obtenção de provas em matéria civil ou comercial, que ocorreu de 28 de Outubro a 4 de Novembro de 2003, o problema da reserva foi levantado pela delegação norte-americana, e a Comissão Especial concluiu [42] que os Estados Contratantes deveriam rever suas reservas gerais com relação ao artigo 23 da Convenção de Haia de 1970 e fazer uma declaração de reserva particularizada, tal qual o exemplo da reserva do Reino Unido ou o artigo 16 do Protocolo adicional à Convenção Interamericana de 1975 para obtenção de provas no exterior.
Isso posto, entendemos que o objeto do artigo 23 é a recusa de cartas rogatórias que requisitem a obtenção de evidências ou indícios – na fase "pre-trial" de um processo civil do sistema common law – que estejam contidos em documentos em poder da parte adversa ou de terceiro, no Estado requerido. Salientamos, por conseguinte, que o objeto do artigo 23 trata, apenas, dos documentos em poder da parte contrária ou de terceiro, não possuindo reserva nenhuma com relação ao "pre-trial deposition", ou seja, a obtenção de depoimento de um particular, sendo tomado por outro, não juiz ou não investido de autorização legal para tal [43].
4.1. O caso Aérospatiale
Como resultado de todos os problemas relatados é óbvio que vários conflitos surgiram na aplicação da Convenção de Haia de 1970 [44].
Os Estados Unidos é o Estado que mais reclama da impossibilidade de produzir provas no exterior conforme as regras de seu ordenamento processual. Diversos estudos apresentam as complicações sofridas em diversos processos por conta das disputas interestatais para a obtenção de prova, tais como o caso "Justizkonflikt", o caso "Westinghouse", o caso "Volkswagen", dentre outros [45].
Mas o caso com maior repercussão foi o de uma empresa francesa construtora de aeronaves chamada Société Nationale Industrielle Aérospatiale, que teve, em meados da década de 80 (oitenta), uma ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada no Estado de Iowa, pela queda de um avião, nos Estados Unidos, de sua fabricação. O processo foi instaurado sob as regras e regime jurídico da Federal Rules of Civil Procedure, sendo que nenhuma das partes se opôs a este procedimento.
Com base nisso, os autores da ação/reclamação notificaram a empresa francesa para produção de uma série de interrogatórios e de documentos, nos Estados Unidos e na França, conforme a previsão do procedimento de "pre-trial" contido na Federal Rules. Ato contínuo, a sociedade francesa apresentou uma monção ao juiz da causa opondo-se à execução do pedido de "pre-trial" dos autores, sustentando a exclusividade da Convenção de Haia de 1970 e a necessidade de se aplicar o procedimento francês para obtenção da prova requisitada na França. Aduziram que o ordenamento jurídico francês possuía uma lei bloqueio, Loi n° 68-678 du 26 juillet 1968 modicada pela Loi 80-538 du 17 juillet 1980 [46], que impedia a produção e comunicação das informações requisitadas fora do procedimento civil clássico.
O juiz norte-americano recusou a monção do requerido, sustentando que o regime jurídico aplicável era o da Federal Rules of Civil Procedure e que a Convenção de Haia de 1970 não tinha exclusividade sobre a matéria.
Inconformados com a decisão, os requeridos recorreram à Corte de Apelo do Oitavo Circuito, da qual faz parte o Estado de Iowa. Depois de uma análise principiológica, a Corte concluiu e decidiu que a Convenção de Haia de 1970 não se aplicava ao caso, nem mesmo a parte em que se requisitava a produção de prova na França, uma vez que os Estados Unidos exerciam jurisdição sobre o processo, e que os documentos e informações não seriam produzidos em país estrangeiro, pois a produção deles dar-se-ia com a juntada aos autos dos papéis que instruem as provas. Tendo isso em conta, a requisição dos documentos e informações por parte dos autores não é para produção dos documentos em território estrangeiro, mas sim a produção de atos preparatórios que possibilitarão a produção das provas, pois o ato instrutório tem lugar nos Estados Unidos.
Contra essa decisão, a empresa francesa apresentou recurso à Suprema Corte Norte-americana em 9 de Junho de 1986, tendo sido proferido o acórdão pouco mais de 1 (um) ano depois.
Antes do julgamento do recurso, diversas entidades, tais como o Governo dos Estados Unidos, bem como o Departamento de Estado e a Comissão de Segurança e Exterior, a Câmara de Comércio Itália-EUA, a Suíça, a França, a República Tcheca, a Alemanha e a Grã-Bretanha, intervieram no processo como amici curiae [47].
A Suprema Corte entendeu que a Convenção não era meio exclusivo e obrigatório para obtenção de documentos e informações situados num Estado estrangeiro contratante. Aduziram os juízes da Suprema Corte que a interpretação literal e sistemática da Convenção não leva a crer sua obrigatoriedade exclusiva. Na opinião da Corte, o acolhimento de uma interpretação diferente traria grande prejuízo à ordem interna e ao procedimento interno do "discovery", pelo simples fato do Estado contratante estrangeiro declarar a reserva contida no artigo 23 da Convenção.
Luigi Fumagalli, reportando a decisão da Suprema Corte, afirma que "La tesi dell’esclusività darebbe così alla parte straniera uno straordinário vantaggio: Essa si potrebbe giovare delle liberali procedure americane contro l’avversario statunitense, rifugiandosi dietro le piú restritive procedure convenzionali, atraverso le quali dovrebbero essere canalizzate i filtrate le richieste ad essa rivolte." [48]
Por outro lado, a Suprema Corte condenou a peremptória conclusão a que chegou a Corte de Apelo do Oitavo Circuito, ou seja, que a Convenção somente aplica-se a confrontos ou conflitos de pessoas que não estão sujeitas à jurisdição norte-americana. Tal afirmação, além de não possuir base jurídica, é um atentado aos princípios de direito internacional, principalmente à cooperação judicial transfronteiriça.
A Corte Suprema Norte-americana concluiu que a Convenção de Haia de 1970 aplica-se à obtenção de provas em Estado estrangeiro, porém não existe obrigatoriedade em sua aplicação, mormente quando não haja correspondência dos procedimentos nas legislações internas.
Andreas Lowenfeld afirma que "an individualized or case-by-case analysis would be appropriate only when it appeared that it would be futile to employ the Convention or when its procedure had proved unhelpful." [49]
Contudo, a empresa francesa recorreu da mencionada decisão. Nesta oportunidade, a Suprema Corte alterou seu posicionamento e acabou por decidir pela aplicação dos instrumentos contidos na Convenção de Haia de 1970 em prejuízo ao procedimento contido na Federal Rules of Civil Procedure. [50]
Ironicamente no caso Aérospatiale, as partes acordaram em realizar a requisição das informações pelo procedimento previsto no Capítulo II da Convenção, ou seja, por agente diplomático, consular ou comissário, sem coerção.